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We Belong: o pertencimento em Trinkets

Em Trinkets navegamos pelos traumas, vícios e descobertas de Elodie Davis (Brianna Hildebrand), Moe Truax (Kiana Madeira) e Tabitha Foster (Quintessa Swindell), três adolescentes que se encontram em uma reunião dos Cleptomaníacos Anônimos. Criação de Kirsten “Kiwi” Smith, escritora de 10 Coisas que Odeio em Você e Ela é o Cara, o seriado inicia alguns debates necessários que são deixados sem conclusão quando a Netflix, novamente, decide encerrar a produção antes da hora.

Atenção: esse texto pode conter spoilers!

Após a morte de sua mãe, Elodie Davis se muda para Portland para viver com seu pai, a madrasta e seu meio irmão. Em algum momento entre a trágico acidente e a sua mudança, Elodie encontra no furto uma válvula de escape e uma forma de dissociar do mundo, o que acarreta em um flagra. Sendo assim, Elodie faz um acordo com o seu pai de frequentar as reuniões do C.A, Cleptomaníacos Anônimos, para tentar melhorar.

Em sua primeira reunião ela encontra Moe e Tabitha, duas garotas da sua nova escola que não poderiam ter mais cara de poucos amigos. As duas já possuem alguma história que ainda não sabemos, mas o encontro espontâneo é o necessário para as três embarcarem em uma competição de quem rouba o objeto mais caro de uma loja de roupas.

“É como se existissem forças aleatórias que levam as pessoas embora, deveria haver forças aleatórias para nos dar coisas de graça.”

A cleptomania é um transtorno comportamental em que as pessoas não conseguem resistir ao impulso de furtar algo. Diferente do furto intencional, que é motivado pelo valor do objeto ou o propósito do roubo, uma das características da cleptomania é a guarda desses objetos furtados enquanto dificilmente são utilizados por quem os roubou. Na série, Elodie mantém seus objetos dentro de uma mala azul escondida embaixo de sua cama, organizados como se fossem verdadeiros tesouros, intocáveis.

Apesar das três se encontrarem em uma reunião dos Cleptomaníacos Anônimos é possível perceber que Elodie é a única que sofre com o transtorno. Nas cenas em que se encontra em lojas de conveniências no meio de uma crise, conseguimos ver sua angústia ao pegar item atrás de item sem controle algum junto com um sentimento de alívio e felicidade ao ter aquela fagulha de prazer momentânea ao tomar tal item como seu. Diferente de outras produções que tratam sobre pessoas que furtam, Trinkets trata a cleptomania como é e as consequências que isso causa na vida das pessoas. O transtorno afeta não só a vida de Elodie após a morte de sua mãe, mas também a de sua família, no relacionamento que ela não tem com o seu pai, na relação com suas amizades, na sua imagem própria e nos seus relacionamentos amorosos.

Na primeira temporada, Elodie conhece Sabine (Kat Cunning), uma cantora em ascensão que toca em bares de Portland. É interessante analisar o contraste da vida de Elodie e de Sabine, a vida boêmia e desconstruída de artista de uma e a vida adolescente perdida no mundo, ainda dependente dos pais, da outra. Quando Sabine descobre que Elodie faz parte do C.A, ela assume que Elodie é uma rebelde como ela e a faz furtar um óculos de sol em uma pequena loja. A glamourização de furtos não é novidade nas produções da cultura pop — afinal já assistimos Bling Ring: A Gangue de Hollywood e Oito Mulheres e Um Segredo — e Sabine nos traz essa face da sociedade: a que acha que furtar é sexy e uma afirmação de rebeldia.

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Enquanto a primeira temporada é sobre Elodie se perdendo em busca de um carinho que ela acredita não ter mais desde a morte de sua mãe ao se envolver com o espírito livre que é Sabine, vivendo o primeiro momento do vício (a emoção e empolgação), a segunda temporada foca em devolver a Elodie a normalidade e o nível de emoção adequado para uma adolescente em seus anos finais do Ensino Médio.

Focada em sua recuperação após fugir de casa com Sabine, Elodie precisa se curar de algo que ela nunca pensou com que teria que lidar: a perda de sua mãe. É encontrando uma madrinha de reunião, rompendo laços com Sabine e iniciando um novo romance, dessa vez mais saudável, e focando em sua amizade com Moe e Tabitha, que Elodie encontra forças para iniciar um novo capítulo em sua vida.

“A primeira regra do furto é ser invisível. Mas… mas não é mais ou menos isso que fazemos todo o tempo? Nós filtramos nossas vidas para caber nos ideais que outras pessoas têm sobre como nós supostamente somos. Quem supostamente devemos namorar. Ou como nós supostamente lidamos com o coração partido. Mas… e se você encontrar pessoas que… sem nem mesmo tentar, te vê. E se as pessoas que você menos espera pudessem se tornar as suas pessoas… Se você deixá-las.”

Entre as três amigas, Moe Truax tem a fama de ser a subversiva do grupo. Condenada a frequentar as reuniões do C.A por ordem judicial, Moe na verdade é o motivo de orgulho da família, agora formada apenas pela mãe. Enquanto carrega a imagem de quem não se importa com a escola, ela espera a sua carta de aceite para um intercâmbio na Coreia do Sul para um programa de S.T.E.M. (termo em inglês para o grupo de disciplinas de Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática).

Após o pai ser preso, Moe começa a trabalhar para ajudar a sua mãe, que é enfermeira. É no emprego que ela conhece Noah (Odiseas Georgiadis), o jogador de futebol amigo de todo mundo, e eles percebem que existe um clima no ar. Por algum tempo, os dois decidem manter o relacionamento escondido sem algum motivo convincente, mas que fica claro que é uma decisão mais de Moe do que de Noah.

O caminho de Moe na série é sobre estar confortável com a sua realidade. Quando o seu pai foi preso, as pessoas inseriram em sua narrativa que ela deveria ser problemática e uma pessoa ruim, e, ao invés de negar essas afirmativas, Moe absorveu essas opiniões como uma verdade para ela. Sendo mais fácil se encaixar na visão que as pessoas tinham dela do que ser sua própria pessoa e lutar contra essas opiniões. É por isso que ela transforma Noah em seu segredo.

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Um ponto importante que margeia toda a narrativa do casal é a forma como Moe preza muito pelas suas amizades e não sabe muito bem como se encaixar no papel de namorada. Uma discussão muito presente nas cenas deles é como Moe larga tudo para ajudar Elodie e Tabitha, até o próprio namorado na cama. É interessante ver como Moe não é o tipo de personagem que larga as amigas para viver o seu primeiro amor. Ao mesmo tempo, é importante assistir Noah sendo o namorado que apoia a namorada. Quando Moe conta para ele que o seu amigo é um agressor, Noah não tenta diminuí-la ou abafar o caso, ele acredita nela desde o primeiro momento. Em um meio em que produções adolescentes tendem a retratar relacionamentos problemáticos, é importante ter o exemplo de um relacionamento saudável em que todos os envolvidos acreditam uns nos outros.

É por isso que a série falha ao insistir no enredo de ciúmes e traição com a questão do “era um término ou estávamos dando um tempo?”. Na primeira temporada, Noah fica com Kayla (Jessica Lynn Skinner) depois do baile, quando ele e Moe haviam brigado, porém na mesma noite Moe liga para ele, se declarando. Ao longo da temporada eles lidam com a questão da confiança e os sentimentos que eles sentem um pelo outro. Tudo isso para que na próxima temporada eles passem pelo mesmo enredo, agora com Moe que é beijada por Chase (Nik Dodani). Assistir a essa trama novamente desperta um certo cansaço pela repetição de eventos — não apenas na série, mas em produções adolescentes como um todo.

Moe e Noah tem todo o potencial de serem o grande exemplo de relacionamento saudável na cultura pop. Apesar de serem jovens, ambos já passaram por muitas coisas que os amadurecem e os tornam menos impulsivos do que os outros adolescentes. Muito cedo, eles desenvolvem um relacionamento maduro que é construído com o diálogo e a compreensão e, apesar das inseguranças de Moe no início, não parece ter espaço para tanta desconfiança como o enredo tentou sugerir.

“Não importa como é ruim, nem como é difícil ficar rolando a pedra montanha acima, você sempre pode se libertar, encare suas ações e conserte o que der. Isso é reparação.”

Na última ponta do trio, Tabitha tem tudo para ser o estereótipo da garota rica popular que namora o veterano igualmente popular e furta batons em lojas caras por diversão. Ao encontrar Moe e Elodie na reunião do C.A, ela se faz de superior e ignora o fato de que ela e Moe costumavam ser melhores amigas no ensino fundamental. No entanto, a necessidade de Tabitha de escapar da vida que está levando é maior e logo ela encontra refúgio na amizade com as duas garotas.

Antes de se conhecerem formalmente na reunião, Elodie presencia uma discussão entre Tabitha e Brady (Brandon Butler), seu namorado, em que ele a segura com força. Sendo o casal modelo da escola, Tabitha vive o desequilíbrio de estar em um relacionamento abusivo entre quatro paredes e o relacionamento perfeito que ganha diversas curtidas nas redes sociais. Ao longo da primeira temporada presenciamos momentos e detalhes que montam esse relacionamento abusivo ao juntarmos todos os sinais que, isolados, podem quase passar despercebidos: a forma como Tabitha fica receosa ao receber um café dele em seu carro; Brady quebrando o celular de Tabitha; a negligência dele ao ignorar quando Tabitha se sente desconfortável durante o sexo; a forma como ele sempre consegue lhe convencer de que ele é um bom namorado e ela está sempre exagerando.

Brady é o abusador clássico que, ao perceber que o término com Tabitha é oficial, está determinado a ser o mocinho da história e convencê-la de que ele mudou. Quando a tentativa é frustrada, ele eleva o nível de sua persuasão, faz com que as pessoas achem que Tabitha é agressiva e de que ele é a vítima da situação, fazendo com que a sua reputação não seja ferida enquanto Tabitha muda todo o seu comportamento para apenas sobreviver no ambiente escolar.

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Em casa, sua família é basicamente a família propaganda de margarina, mas apenas superficialmente: bem sucedida, influenciadora e com contatos enquanto, na realidade, descobrimos que seu pai está traindo a sua mãe e ambos decidem, silenciosamente, ignorar tudo. Quando Tabitha se aproxima de Elodie e Moe, ela encontra outra realidade e outro tipo de suporte que a segura e lhe dá coragem de acabar com o status quo tanto de sua família quanto de seu relacionamento.

Um ponto interessante do desenvolvimento de Tabitha é perceber seu humor e o que ela está sentindo por meio de seu estilo e a forma como se porta em cada cena. Após o seu término nada saudável com Brady, observamos a garota trocar as suas roupas estilosas por um cabelo preso e um casaco discreto. Ao perder o grupo de amigos que tinha junto com o término, Tabitha está perdida e desorientada e o seu visual expressa externamente o que está acontecendo internamente. É nessa linha que acompanhamos na segunda temporada Tabitha se encontrar e virar a sua própria pessoa. Com a ajuda de Marquise (Austin Crute), ela vai em busca de sua identidade enquanto uma mulher jovem negra e vemos o seu estilo mudar novamente com as roupas e o cabelo.

Existe na segunda temporada uma importante discussão sobre o racismo que é vivido por Tabitha ao visitar uma loja com a sua mãe. Ao ser acusada de roubar algo, Tabitha e sua mãe (Joy Bryant) compartilham experiências que é um abrir de olhos para a adolescente que se sente irritada, triste e frustrada para ir atrás do seu pertencimento e se sentir orgulhosa de quem ela é e de onde ela veio.

Infelizmente, a discussão racial e a busca pela identidade dura apenas dois episódios e temos a sensação de que Tabitha completou a sua jornada e todas as questões estão resolvidas porque ela mudou o seu cabelo, quando, na verdade, ela está apenas começando a explorar e a conhecer pessoas que realmente entendem a sua dor e a celebrar quando ela conquista um pouco mais da sua identidade. A conversa entre ela e Marquise também não é aprofundada e nos dá uma sensação de que eles estão lendo o roteiro com falas robotizadas para deixar marcado que naquele momento a série tocou em questões atuais como o movimento Vida Negras Importam. A série peca demais ao não desenvolver melhor a história de Tabitha após o seu término e mostrar que a sua existência não é simplesmente ser uma vítima e sobrevivente de abuso, quando, na verdade, ela é única e uma jovem que precisa descobrir qual é o seu lugar no mundo e como decide navegar por ele.

“A parte mais pesada sobre furtar não são as coisas. São as mentiras. E eu não quero carregá-las mais.”

É evidente como a série foi prejudicada por ter apenas duas temporadas. Temos uma primeira temporada que tem o seu próprio ritmo e em cada cena somos apresentados com detalhes a emoções e sentimentos do momento com tons característicos de produções de Kiwi Smith. A trilha sonora é uma parte importante do seriado, somos transportados para uma outra dimensão dentro da série no segundo que escutamos a voz hipnotizante de Kat Cunning ou ao nos divertir com o trio cantando “Fast Slow Disco”. Sentimos falta justamente desses momentos na segunda temporada quando a produção precisa apressar os acontecimentos para nos entregar um final digno de suas protagonistas.

A sensação que fica é de de que a Netflix anunciou a segunda temporada como a final apenas para não ser acusada de cancelar prematuramente outra série LGBTQIA+ — que dessa vez conta com atores não-binários, lésbicas, queer e gays, além da representatividade nos personagens — e a produção teve de adaptar um roteiro dentro de dez episódios apenas. E, apesar de faltar certos desenvolvimentos, a sensação que fica após o encerramento do último episódio é de dever cumprido.

A amizade de Elodie, Moe e Tabitha é o grande triunfo do seriado. De algo inesperado, nasce uma amizade mais forte do que os traumas vividos pelas garotas. Elas encontram nas outras um porto seguro, o espaço para serem quem elas são com suas inseguranças e defeitos, e um movimento em que elas pertencem não importa onde o trio está. Trinkets nos acolhe em seus vinte episódios e nos transporta para um universo em que a aceitação é a chave, que existem passos para a cura e que retrocessos fazem parte do processo. A lição é que todos somos dignos de amor e que nossos medos, traumas e dores não nos definem e que não somos menos merecedores de felicidade por causa disso. Todos nós pertencemos.