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Porque Esta é a Minha Primeira Vida, e ela é um drama

Na vida real, podemos chamar de drama os fatos de difícil resolução ou causa complicada, ou ainda aqueles que causam sofrimento ou dor. Também dizemos que drama é um exagero desse sofrimento. Já no entretenimento, existem definições diversas para a palavra drama: um texto a ser encenado ou ainda a encenação de tal texto; narrativas em que haja conflito ou atrito; textos ficcionais para cinema, TV, rádio ou teatro compatíveis com a realidade e que não sejam de caráter cômico.

Para quem tem familiaridade com entretenimento fora do eixo Europa-Estados Unidos, a televisão asiática pode já ter apresentado mais um conceito de drama. Uma das definições de drama que guia esse texto é encontrada na Wikipedia:

“Drama coreano (em hangul: 한국드라마; romanização revisada: hanguk drama) ou nomeado também como K-drama. É a designação dada aos dramas televisivos em língua coreana realizados pela Coreia do Sul. Possui principalmente o formato de minissérie, com características distintas que o diferencia das séries de televisão e das telenovelas feitas no ocidente, sendo, contudo, semelhante aos dramas televisivos realizados por outros países da Ásia.”

Os dramas coreanos não têm esse nome à toa. Embora esse tipo de entretenimento consiga com muita naturalidade e coerência transitar com maestria entre gêneros diferentes (quem nunca assistiu um k-drama de romance que tenha te feito chorar de rir ou uma comédia cuja trama é entrecortada por uma investigação policial?), a proposta deles costuma incluir a discussão sobre algum aspecto da vida real, mesmo em contextos de fantasia. Em algum ponto, os temas abordados nas tramas receberão algum tratamento de seriedade, por mais que o gênero principal possa ser outro.

Essa espécie de telenovela asiática aborda, como as nossas, temas distintos e diversos da realidade. Assim como temos públicos específicos para cada faixa de horário das nossas novelas, existe também tal divisão nas faixas de exibição dos dramas coreanos. Também existem nichos específicos ou gerais que cada gênero busca contemplar. Existem dramas médicos, policiais, de época, familiares e muitos outros tipos. Existem, ainda, certas tramas direcionadas a faixas etárias distintas, que costumam ser produzidas com certa frequência e normalmente discutem as questões mais comuns às épocas específicas da vida.

Os dramas escolares são bastante comuns, já que o público adolescente também consome esse tipo de entretenimento. Também existem aqueles que são menos voltados especificamente para o público adolescente, mas ainda assim preferem discutir com certo distanciamento aquela idade. Um exemplo é a série School (sendo as versões mais recentes as de 2013, 2015 e 2017) abordando as dificuldades do fim da adolescência e da convivência entre estudantes, professores e pais dentro do contexto escolar, que tem suas particularidades relacionadas ao sistema de ensino do país. Tratando de outra faixa etária, Hello My Twenties (alternadamente conhecido como Age of Youth) é um exemplo popular de série que aborda o começo da vida adulta e acompanha as cinco moradoras de uma república passando pela faculdade, primeiros empregos, transição para a vida adulta e todos os dramas que acompanham esses marcos da vida.

Quem está acostumado a consumir dramas já se deparou com muitos protagonistas na faixa dos 30 anos, independentemente do gênero daquele entretenimento. Por essa razão, muitos dramas acabam esbarrando nas questões relativas à essa idade, direta ou indiretamente. Um desses dramas em específico pode chamar a atenção dos recém-chegados a essa faixa-etária, onde esperamos estar ainda com a força da juventude, mas com um pouco menos de esperanças e disposição. Aos 30 já se espera que estejamos maduros, independentes e prontos para lidar com os obstáculos da vida e uma das maiores expectativas para essa faixa etária é que já estejamos com nossas vidas encaminhadas, planos concretizados ou em andamento.

Porque Esta é a Minha Primeira Vida

Atenção: este texto contém spoilers

Porque Esta é a Minha Primeira Vida (Because This is My First Life, no original), é um drama de 2017 disponível na Netflix. Logo no primeiro episódio, Ji Ho (Jung So-Min), que acaba de chegar aos 30 anos, é duramente confrontada com os supostos fracassos de sua vida: ela escreve dramas, mas ainda é uma roteirista assistente, longe de realizar o sonho de ser bem-sucedida e independente financeiramente; ela nunca teve nenhum relacionamento romântico e seu irmão mais novo está casado com a namorada grávida. Como não deseja dividir a casa com os recém-casados, a protagonista decide encontrar um novo lugar pra morar e aí surge um terceiro fracasso para se somar aos anteriores: a dificuldade de se encontrar moradia. Aqui, na Coreia do Sul e provavelmente na maior parte do mundo, não temos acesso a moradia própria e os aluguéis são caros e consomem a maior parte dos nossos salários com cada vez menos valor. E como, para uma mulher, algumas camadas de dificuldades costumam se somar a qualquer situação que já possa ser complicada, Ji Ho sofre um assédio no trabalho e se depara com uma estrutura que deseja silenciá-la e proteger seu abusador de uma forma supostamente cordial, mas definitivamente opressora.

A única escolha entre proteger seu abusador em silêncio e ter que conviver com ele diariamente é abandonar seu sonho de escrever um drama próprio e inovador, já longe de ser realizado antes que esta última situação acontecesse. Ji Ho deixa o emprego, e agora precisa de um aluguel ainda mais barato, condizente com sua vida de desempregada e, depois, de atendente em uma cafeteria, trabalho abaixo de suas expectativas e qualificações, mas que acaba sendo a possibilidade encontrada para que se sustente. Ji Ho acaba encontrando um quarto barato na casa de Se Hee (Lee Min-ki), que ela pensava, até então, ser uma mulher. Mesmo depois que o mal entendido se resolve, os dois adultos entram em um acordo para continuar vivendo sob o mesmo teto. Desse acordo acaba se desenvolvendo uma relação de companheirismo e futuramente romance, a partir do casamento falso dos dois, que serve para ambos como uma forma de lidar com as questões financeiras e ao mesmo tempo escapar de algumas pressões que a sociedade coreana, representada pelas famílias do casal, acaba impondo sobre eles.

Se Hee propõe o casamento, mesmo que não existam sentimentos entre eles, por razões práticas. Primeiro, os dois se dão bem coabitando o apartamento. Segundo, Ji Ho precisa de um aluguel barato e em terceiro lugar, Se Hee quer se livrar da pressão da família para que ele se case. Ele já está mais próximo dos 40 anos e vive se esquivando dos encontros as cegas que sua mãe tenta arranjar na esperança que ele se case com uma mulher de boa família e reputação. A trama nos revela que seu sonho era ter uma casa, mas ele está preso ao pagamento dela por muitos anos. Embora sua família tenha condições de ajudá-lo, por algum desentendimento passado que mais tarde acaba voltando à tona, ele não aceita a ajuda deles nem as propostas de ir aos encontros com as desconhecidas, que inclusive são instrumentos de negociação entre a família. Em certos momentos, são feitas propostas para que ele aceite dar chances a esses relacionamentos que a mãe tenta arranjar para o filho, em troca da quitação do financiamento do apartamento. Se Hee prefere viver sozinho com seu gato, economizando para que seu sonho seja de fato concretizado, mas está sempre em conflito com os inquilinos do quarto até encontrar Ji Ho, com quem a divisão de tarefas funciona perfeitamente. Por isso o casamento parece uma solução prática que funciona para ambos e é também uma maneira de firmar aquele vínculo de maneira mais formal.

Porque Esta é a Minha Primeira Vida

Paralelamente ao romance principal, a trama ainda acompanha o relacionamento de Ji Ho com
suas amigas do tempo da escola, Woo Soo Ji (Esom) e Yang Ho Rang (Kim Ga-eun). O conflito central de Ho Rang também se relaciona ao casamento, mas é completamente diferente. O sonho da garçonete é se casar com o namorado de sete anos, Shim Won Seok (Kim Min-Suk), e se tornar uma esposa e dona de casa. Ao longo dos episódios, ela quer fazê-lo entender o quanto ser pedida em casamento e se tornar uma mãe de família é importante para ela. Embora os dois se gostem e Won Seok eventualmente entenda o desejo da namorada, ele precisa antes ter sucesso em sua carreira como programador. Só assim ele pode ser um marido capaz de sustentar a esposa, algo que nunca havia sido parte dos planos dele. Como ele ama a namorada, acaba incorporando aquela nova meta a seus objetivos, mesmo que essa mudança não venha sem conflito.

As oportunidades de trabalhar em empresas surgem, mesmo que Won Seok desejasse antes ter sua própria empresa, ser seu próprio chefe, e ao longo dos anos, acumulou fracassos em inúmeras tentativas de lançar um produto digital que o permita ter sucesso. Ele não é bem sucedido em seu próprio caminho, mas isso não quer dizer que ele se torne plenamente feliz com a carreira estável que um emprego formal lhe oferece, mesmo que com aquilo esteja mais perto de ter dinheiro para ser o marido que Ho Rang deseja. Por isso, o drama dos dois acaba sendo alinhar os ideais e expectativas que o casal tem em relação ao casamento e também fazer com que o relacionamento funcione para os dois em uma realidade na qual ambos abrem mão de parte de seus desejos.

Outra personagem com obstáculos em relação à sua carreira é Soo Ji. A terceira integrante do trio de amigas é uma mulher livre em relação à sua sexualidade, desprendida de convenções em relação aos relacionamentos e padrões esperados de uma mulher na tradicional sociedade coreana. Seus sonhos nunca incluíram relacionamentos, mas sim realização financeira para que sua mãe solteira e com uma deficiência física possa ter mais conforto. A personalidade ousada e destemida de Soo Ji entra em conflito com o ambiente de trabalho em que ela se encontra. Cercada de homens, Soo Ji tem que lidar com assédio moral e sexual e a incompreensão constante dos colegas de trabalho. Diante de tais conflitos, ela não consegue ascender em sua carreira, mas também não consegue ser o que verdadeiramente deseja: dona de um negócio próprio e bem-sucedido. Como suas ambições são relacionadas ao trabalho, sua vida sexual livre e sem amarras amorosas cai bem, até que o chefe de Se Hee se apaixona por ela e se torna determinado a construir com ela uma relação romântica. Soo Ji passa o drama tentando conciliar todas essas forças que parecem guiá-la em direções sempre opostas e distintas.

Porque Esta é a Minha Primeira Vida nos mostra personagens na faixa etária dos 30 anos lidando com expectativas que não se concretizam. Em paralelo à realidade das pessoas nesta idade, a protagonista narra como todos esses conflitos acabam sendo geracionais. Nascidas em 1988, a geração das três amigas passou a primeira parte da infância crescendo em um país com dificuldades financeiras e depois tiveram uma adolescência mais próspera e promissora. Os pais delas não tiveram acesso a ensino superior, mas as três tiveram condições de tomar esse rumo na carreira. Elas cresceram com esperança e puderam ter sonhos ambiciosos, bem maiores que os das gerações anteriores, que meramente buscavam sobreviver. No entanto, o mundo evoluiu de um modo que, no presente, todas as altas expectativas para aquele grupo de idade são inalcançáveis. Outras crises financeiras, políticas e sociais abalaram o país, e embora nenhum dos personagens tenha uma vida miserável, é difícil para eles se imaginar conquistando de fato algo que seja mais do que o básico. Aos 30 anos eles já esperavam ter o que ambicionavam, mas ainda estão muito longe de conseguir o que desejam.

Esse paralelo é fácil de ser feito para uma média de brasileiros nascidos no fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990. Nossas famílias conseguiram nos dar o que não tiveram, e fomos chegando cada vez mais longe do que os nossos ancestrais poderiam imaginar. Alguns de nós tiveram acesso a curso superior, vida acadêmica, bem-estar social e esperanças de um futuro melhor. Mas agora, nós que estudamos num país onde as universidades tinham capacidade de nos levar para estudar no exterior, estamos desempregados ou relegados ao mercado informal, sem perspectiva de trabalho correspondente às nossas qualificações, sem casas, fadados ao aluguel e presos em um país cujas fronteiras se encontram fechadas porque nosso governante nos nega o básico para sobrevivência em meio a uma pandemia. É desesperador.

Mas, exceto em relação à pandemia, que poderia ser considerado um delírio muito improvável em 2017, Porque Esta é a Minha Primeira Vida oferece esperanças. A trama acolhe com paciência e compreensão a geração de 1988. De certo modo, a abordagem do drama é acolhedora desde o princípio, mostrando logo no primeiro episódio que irá ajudar os personagens a encontrar um caminho possível para a felicidade, mesmo que seja muito distante dos sonhos idealizados por deles. “Não é porque passamos pelo dia de ontem que saberemos lidar bem com o dia de hoje”, diz Se Hee a Ji Ho, quando a roteirista desabafa ao até então estranho todas as suas frustrações em um ponto de ônibus. Todo mundo tem o direito de fracassar e não saber lidar bem com isso, porque esta é a primeira vida de todos nós. Somos ainda aprendizes, e ouvir isso de um dos personagens que já passou por toda a década dos 30 anos é um afago. Agridoce, mas um afago.

Sim, iremos fracassar. Nossos sonhos não irão se realizar sempre. Ainda mais porque muitos deles não são só nossos: são dos nossos pais, da nossa sociedade e nos foram permitidos graças a um contexto coletivo muito maior do que nós. A década dos 30 anos é provavelmente aquela em que começamos a entender quem somos, o que realmente é possível e o que não é. Acontece que raramente entendemos isso. Crescemos esperando sucessos na vida amorosa, social, financeira e familiar. Pensamos que aos 30 seremos adultos e que adultos sabem tudo e lidam com as coisas bem. Crescemos achando que adultos não sofrem. Que quando formos maiores, todas as dificuldades desaparecerão. Mas a vida adulta é um drama. Mas os conflitos dos dramas se resolvem e acabamos, eventualmente encontrando novos sonhos, mais possíveis, ou outros meios de chegarmos ao que desejávamos.

2 comentários

  1. Achei que depois da minha primeira aventura em doramas com Crash Landing on You eu nunca mais ia achar nenhum outro dorama bom, até esbarrar nesse texto meses atrás e colocar Because this is my first life na lista de séries para assistir. Seu texto reflete muito bem o quão profunda e sensível a série é e eu não entendo porque aparentemente se fala tão pouco dela.
    Achei que tudo ornou: o roteiro é bem escrito, revelando as coisas no tempo certo, mostrando uma criação de vínculos que só podia acontecer com o tempo, principalmente pelo passado e a personalidade de Se-Hee. Fora que os atores estavam muito bem em seus papeis, o que é essencial pra gente comprar a história de duas pessoas que moram juntas e que nada acontece por um bom tempo. Acho incrível como Se-Hee, que é propositalmente caricato, foi mudando lentamente e ficando crível graças ao ótimo trabalho do ator.
    Só acho que a série pecou um pouco quando tentava inserir comédia, fiquei com a impressão de que algumas cenas eram muito exageradas e com efeitos sonoros bem chatinhos… Mas nada que comprometa a experiência de assistir uma série tão bem feita 🙂
    Obrigada pelo texto!

  2. Obrigada pelo texto, eu amei esse drama e confesso que no início não chamou minha atenção, mas no desenrolar dos primeiros episódios já estava apaixonada pelo casal e amando cada desenvolver da relação. 👏🏾👏🏾💝💝💝💝

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