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Infiel de Ayaan Hirsi Ali: um mergulho dentro do Islã

Não faltam obras, ficcionais ou não, que abordam a suposta inconciliabilidade entre o Oriente e o Ocidente, entre o mundo árabe e o dos países desenvolvidos, como Estados Unidos e a França. A autobiografia da somali Ayaan Hirsi Ali, Infiel: A História da Mulher que Desafiou o Islã, é mais um dos textos a estabelecer que o Islã tal como é torna impossível uma convivência pacífica entre esses polos.

O livro de Ayaan Hirsi Ali inicia com o relato sobre o assassinato do cineasta Theo Van Gogh, holandês de quarenta e sete anos, cometido pelo marroquino-holandês Mohammed Bouyeri, em 2004. O motivo do crime foi o curta-metragem Submissão, dirigido por Gogh e escrito por Ali, que retrata a violência cometida contra as mulheres em nome da lei islâmica e foi recebido por muitos muçulmanos como uma ofensa gravíssima. Ayaan Hirsi Ali então regressa à suas memórias para retratar sua infância em uma família tradicional na Somália dos anos 1970, seus conflitos com a doutrina religiosa até seu exílio na Holanda, onde se tornou deputada, ateia, crítica do islã, do multiculturalismo e defensora da emancipação das mulheres muçulmanas.

A violência atravessa a vida da narradora e sua família de diversas formas ao longo da narrativa confessional. Além dos confrontos entre os diferentes clãs somali que, por vezes, lançavam mão da violência para defender seus interesses, o pai de Ali era um opositor do ditador Siad Barré e as ameaças a sua segurança fizeram com que a família fugisse para a Arábia Saudita, depois Etiópia e, por fim, Quênia. No entanto, é contra a opressão das mulheres que a autora destina a feitura dessa obra. Ayaan Hirsi Ali é uma sobrevivente, como a mesma dá a entender ao final do livro:

“A decisão de escrever este livro não foi fácil para mim. Para que expor ao mundo estas memórias tão particulares? Não quero que meus argumentos sejam considerados sacrossantos pelo fato de eu ter tido experiências horríveis; não as tive. Na verdade, a minha vida sempre foi marcada por uma sorte enorme. Quantas moças nascidas no Hospital Digfeer, em Mogadíscio, em novembro de 1969, ainda estão vivas? E quantas têm voz, realmente?” (pg. 315).

Ayaan Hirsi Ali usa sua voz para condenar valores islâmicos que destinam às mulheres o lugar de subserviência ao homem, lançando mão de sua experiência subjetiva para exemplificar como é a vida da mulher dentro do Islã. A autora narra diferentes momentos do seu passado para construir sua identidade e, sobretudo, sua relação com a religião. De devota convicta a Alá, se cobrindo dos pés à cabeça e condenando aqueles que não seguiam as leis islâmicas tal como nas escrituras, Hirsi Ali se transforma, renegando a religião ao ponto de condená-la, advogando a favor de uma reforma urgente e profunda do Islã.

infiel

O leitor acompanha sua trajetória por meio do desnudamento da vida da autora e de questões da religião islâmica que impactam na vida cotidiana e contemporânea. Ayaan Hirsi Ali divide sua obra em duas partes: “Minha Infância” e “Minha Liberdade”. A primeira dá conta da sua vivência islâmica numa família tradicional de Somali, em conformidade com os dogmas religiosos, ainda que seu pai fosse um militante de esquerda. É, sobretudo, nesta primeira parte que o leitor tem contato com as ideias que tornam o Islã um instrumento de repressão contra as mulheres, a vista de que todas as violências cometidas contra elas são feitas em nome de Alá:

“Um toque-toque de saltos altos no chão podia evocar no homem a imagem e pernas bem torneadas; para evitar o pecado, elas deviam usar sapatos baixos e não fazer barulho […] o uso de qualquer fragrância agradável […] afastava a mente dos homens da adoração de Alá, entregando-o a fantasias pecaminosas. Ao que tudo indicava, a maneira mais segura de não causar dano a ninguém era evitar totalmente o contato com os homens e não sair de casa. Neles, as ideias eróticas, pecaminosas, surgiam sempre por culpa da mulher que as incitou.” (pg.108)

Mas foi ainda na juventude que a autora iniciou, ainda que tímidos, seus questionamentos quanto a essa realidade, pois o desconforto com a desigualdade sempre existiu, seja dentro de casa ou nos espaços públicos. No entanto, havia sempre uma barreira, a própria religião: “Não se podia de modo algum questionar a palavra de Alá. O islamismo era submissão” (pg.128).

Depois de diversas diásporas, “Minha Liberdade” dá conta da mudança mais radical na vida de Hirsi Ali, que ocorre  com sua chegada ao Ocidente. O contato com os valores ocidentais na Holanda é o que provoca a ruptura definitiva com o mundo islâmico, pois apenas fora dele é que seu maior desejo pode ser concretizado:

“Eu sabia que outra existência era possível […] Queria tomar as minhas próprias decisões. Queria ser uma pessoa, um indivíduo com existência própria.” (pg.177)

É neste ponto que a autora desenvolve mais profundamente sua crítica ao Islã que a colocou como figura polêmica. De um lado, despertou a fúria de muitos muçulmanos que viram suas opiniões como uma ameaça, do outro, provocou incerteza em ocidentais progressistas, receosos que uma postura tão dura como a da autora os fizesse parecer preconceituosos. A visão de Ayaan Hirsi Ali é clara: as mulheres só serão livres dentro do Islã se a religião sofrer uma profunda reforma, o que significa renunciar os preceitos islâmicos vigentes:

“Quando se diz que os valores islâmicos são a compaixão, a tolerância e a liberdade, olho para a realidade, para as culturas e os governos reais, e simplesmente vejo que não é assim. No Ocidente, as pessoas engolem tais mentiras porque aprenderam a não ser excessivamente críticas ao examinar as religiões ou cultura das minorias, por medo de ser acusadas de racismo. E ficam fascinadas porque não tenho medo de fazê-lo.” (pg. 315)

A ausência de medo tornou a autora um alvo, ao ponto de, como referido na contracapa, ter uma autobiografia precoce, aos 37 anos. A morte ronda a narrativa de Infiel e, mesmo sabendo do destino de Ayaan Hirsi Ali, tememos por ela, principalmente após o assassinato de Gogh. Do ponto de vista do Ocidente, sua obra é de fácil assimilação, acostumados como estamos a encarar o Islã sempre acompanhado da violência e da repressão às muçulmanas. Ainda que a autora deixe claro que está narrando uma experiência individual, há de se ter dificuldade de enxergar, de fato, tempos conciliáveis com os Islã tal como ele é hoje. Para a própria autora, sua completa emancipação  só foi possível ao se desconectar totalmente com a religião. Mesmo que não se concorde com todos os posicionamentos de Hirsi Ali, sua história nos é um relato envolvente das terríveis consequências do fundamentalismo.

“Esta é a história da minha vida. Um registro subjetivo das minhas lembranças pessoais, tão próximas da exatidão quanto me é possível […] Trata-se da história que vivenciei, do que vi e de por que penso como penso. Cheguei à conclusão de que é útil e talvez até importante conta esta história. Quero deixar claras algumas coisas, retificar certos relatos e também falar em outro tipo de mundo, contar como ele é.” (pg.13)


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1 comentário

  1. Tem um movimento feminista no mundo islâmico que quer acabar com o controle masculino sob o corpo das mulheres.
    E tem também um contra-feminismo islâmico que defende o direito das mulheres de escolher o veu, defender a poligâmia e a lei islâmica como superior às outras. Esse ai é como o Opus Dei do Islã: o importante para o contra-feminismo é o poder do dinheiro e ter embaixo um grupo de inferiores (geralmente não-muçulmanos) encarregado dos trabalhos mais pesados. O contra-feminsmo rejeita toda crítica do Islã porque considera que é uma religião perfeita, e que todos os problemas do mundo islâmico são responsabilidade dos não muçulmanos, principalmente judeus, ocidentais, hinduistas, budistas, chineses e outros.

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