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A experiência feminina nas músicas de Paris Paloma

Se você é uma mulher no TikTok (em especial, no lado mais alternativo), é provável que já tenha se deparado com Paris Paloma. Um trecho da música “labour”, lançada em março deste ano, rendeu milhares de vizualizações e respostas de mulheres cantando sobre o excesso de trabalho imposto sobre os ombros femininos.

As canções de Paris gravitam em torno de um folk meio pop com uma estética um tanto medieval ou feérica. A temática é bem notória. A jovem cantora britânica traduz a experiência feminina em canções, refletindo sobre carreira, trabalho doméstico, relacionamentos, desigualdade, solidão, religião. As letras cheias de lirismo e metáforas bonitas trazem a complexidade de viver na sociedade patriarcal, machista e repressora na qual ainda estamos imersas. O tom doce de sua voz carrega muito bem a intensidade de suas palavras e ecoa o grito, a dor e a revolta que milhões de mulheres já sentiram e sentem, na esperança de que, em breve, deixem de sentir.

A grande popularidade de “labour” nas redes sociais impulsionou ainda mais a cantora, mas uma outra música já havia sido o som embalando uma trend antes. A música “the fruits”, lançada em 2022, marca o início de uma aproximação do estilo musical de Paris com um perfil mais combativo e forte, tanto em conteúdo quanto em formato.

“The fruits” usa o imagético religioso de anjos e demônios para refletir sobre os estereótipos da mulher como “virgem santa” ou “pecadora original”. No início, elas nos mostra a mulher vista como a pura enquanto passeia “nua pelo jardim de volta ao início” (“naked in the garden / back at the beggining”, no original). Com um tom de aviso, Paris questiona se o amante que a admira conhece o pecado, pois ao compará-la à Deus, ele a escolhe. (“You’re faithless for you’ve pitched me / against your Holy Father / and it seems that I am winning”).

A imagem da mulher posta em contraponto à religião não é nova. Por exemplo, traçando um paralelo com uma obra audiovisual recente, podemos recuperar a segunda temporada da série Fleabag. Em seu romance com o Hot Priest (Andrew Scott), a protagonista de Phoebe Waller-Bridge tem consciência da comparação, mesmo que a escolha tenha sido por Deus nas telas.

A narrativa que atribui à Eva a corrupção de Adão estabeleceu que a total castidade e obediência seriam o preço para a dignidade feminina. Nesse sentido, atender seus próprios desejos, atrever-se a buscar o conhecimento e viver suas próprias regras seriam tendências malignas a serem combatidas e reprimidas a todo o custo. Do contrário, seria reforçada a retórica da mulher como causadora da perdição dos homens. Tal imagem também está presente na mitologia grega com Pandora, cuja curiosidade liberta todos os males sobre a humanidade e a condena à uma vida de sofrimento.

Assim, no segundo verso da música, Paris inverte a lógica com um amante que a chama de demônio. Agora, ele se aproveita dos frutos do trabalho dela e reverte a sua feminilidade em uma serventia para ele (“When he stole my virtue / I’m glad it seems to serve you / that I was born a daughter and not a son”). Na ausência de um herdeiro homem, a sociedade patriarcal precisava dar utilidade às filhas e designou que o papel delas era servir. Nas palavras de Paris, eles nos querem ajoelhadas para satisfazê-los ou para rezar pelo perdão dos pecados herdados ao se nascer mulher. Um reflexo da objetificação que a existência feminina sofreu ao ser moldada por mãos masculinas como uma posse, apenas um corpo a ser explorado.

“My body and my soul you’ve claimed
so come drink it up 
and there’s no need to be concerned 
about what is left when you’re done”

“Meu corpo e minha alma, você reivindicou 
então venha tomar tudo 
e não precisa se preocupar 
com o que irá sobrar quando você estiver satisfeito”

Amplificando e complexificando a ideia das mulheres em posição de servidão, Paris produz “labour”. A revolta feminina frente às intermináveis demandas da sociedade se materializa nos versos que contam as múltiplas atribuições da mulher como “terapeuta, mãe, empregada doméstica, amante, virgem, enfermeira e serva”.

O imaginário social determinou que, em relacionamentos heteronormativos, o homem seria o provedor, o responsável por trabalhar fora e manter a saúde financeira da casa, enquanto seria tarefa da mulher se preocupar e se ocupar com todo o resto. Garantir a subsistência com água e comida, a manutenção do bem-estar, da limpeza e da saúde, ser fonte de sentimentos, empatia e cuidados inesgotáveis. Mesmo sendo o pilar de sustentação da família, a recompensa por todo esse trabalho doméstico costuma vir na forma de palavras duras, reprimendas e mais demandas. Um esquema de tortura emocional em que a mulher doa o máximo e mais um pouco de si, mas nunca é boa o suficiente. Aquele que nunca levanta um dedo para realizar as tarefas tem sempre uma correção ou reclamação a fazer.

Segundo Simone de Beauvoir, intelectual e ativista feminista, os homens criaram a representação do mundo e descreveram tudo a partir de seu ponto de vista. A escritora explica que a construção de um “eu” pressupõe também o estabelecimento de um “outro”. Historicamente, como o patriarcado se posicionou como o protagonista, a mulher se consolidou à sombra da definição masculina como o Outro, como um homem com algo de menos. A partir dessa construção, as mulheres foram convencidas que o casamento era a maneira de se tornarem completas e conquistarem validação. O refrão de “labour” resume essas questões ao dizer que seu suposto salvador a obriga a trabalhar até a exaustão (“For somebody I thought was my saviour / You sure make me do a whole lot of labour”).

Além disso, Paris também lembra que meninas são ensinadas desde a infância sobre a “importância” de um casamento e da maternidade. Consequentemente, cria-se um ciclo eterno de dependência feminina, pois as pequenas crescem presas às expectativas sociais que as determinam como futuras esposas e futuras mães.

Um verso diz: “desculpas pela minha língua, mas nunca pela sua” (“Apologies for my tongue but never yours”). A socialização de meninas comumente as ensina a estar sempre ciente do espaço que ocupam e de como se expressam, partindo do pressuposto da inconveniência da sua existência em um mundo feito para os homens. Nesse sistema, fazer uso da própria voz e defender seus pontos de vista não seria uma atitude feminina, mas pedir desculpa seria dever da mulher mesmo quando a culpa não é dela.

Paris ainda reflete sobre o fenômeno da incompetência estratégica, quando um indivíduo deliberadamente finge não saber realizar uma tarefa para evitar fazê-la. É comum que o homem assuma essa posição para fugir de responsabilidades domésticas indesejadas. Sob alegações de não saber fazer ou discursos de que a companheira faz melhor, homens levam as mulheres a tomarem para si as demandas da casa, agravando a divisão desigual do trabalho doméstico. Nessa lógica, haverá sempre uma mãe, irmã, esposa, filha ou empregada para trocar uma fralda que o pai “não sabe trocar” ou refazer a comida sem gosto que o marido “esqueceu de temperar”, por exemplo.

“Just an appendage, live to attend him
So that he never lifts a finger
24/7, baby machine
So he can live out his picket fence dreams
It’s not an act of love if you make her
You make me do too much labour”

“Apenas um apêndice, vivendo para atendê-lo 
Para que ele nunca levante um dedo 
Uma constante máquina de bebês 
Para que ele possa viver seus sonhos de casinha 
Não é um ato de amor se você a obriga 
Você me faz trabalhar demais”

Se a raiva feminina está muito presente nas músicas de Paris, “as good a reason”, um dos lançamentos mais recentes da cantora, faz uso dessa raiva para construir uma poderosa mensagem de sororidade e empoderamento. A ideia da indignação como combustível para a luta feminista não é nova. No filme As Praias de Agnès, de 2017, a cineasta Agnès Varda confidencia aos expectadores que tentou ser uma feminista alegre, mas tinha muita raiva. E, talvez esse seja um bom sinal.

A raiva e a indignação podem ser instrumentos poderosos na luta contra as injustiças. Ainda mais quando consideramos que, durante toda a história da humanidade, as mulheres foram ensinadas a serem passivas, pacíficas e quietas, ou seja, a aceitarem as regras invisíveis atreladas à realidade feminina. Por isso é bom ver mulheres raivosas, canalizando sua revolta para transgredir expectativas sociais e lutar pelos seus direitos.

Nesse sentido, Paris nos aconselha a guardar essa raiva e usá-la para atacar as estruturas injustas de poder, personificadas na canção com a imagem de um homem velho, que lucra com o medo das mulheres. Uma ideia parecida se encontra na música “Girls”, de Marina (and The Diamonds). Ela expõe a rentabilidade das inseguranças e das dúvidas femininas, ressaltando que há um projeto econômico por trás dos ciclos da moda e dos ideais irreais de beleza. Estrategicamente, eles criam a insegurança feminina para depois explorá-la através da venda de cosméticos, roupas e procedimentos estéticos. Os “padrões”, estabelecidos pela mídia e reforçados pelos filtros e programas de retoques de imagem, mudam constantemente a fim de garantir que sejam desejáveis mas inalcançáveis.

“When you hate the body you are in
Oh, love, you’re actin’ just for him
As he counts his gold and green in his ivory tower”

“Quando você odeia o corpo em que está
Oh, amor, você está agindo apenas para ele
Enquanto ele conta o ouro e o dinheiro em sua torre de marfim”

Para promover a música, Paris organizou uma roda de conversa com mulheres de diversas idades, corpos e origens para debater questões sobre beleza, amor-próprio e patriarcado. Um dos pontos iniciais do bate-papo ressalta como somos ensinadas a nos vestir e nos comportar para o olhar masculino. No entanto, o mesmo não ocorre em meio aos homens, não há nenhuma insegurança cotidiana sobre o cabelo estar no lugar certo, a roupa arrumada ou a maquiagem perfeita. Eles podem simples e livremente ser. Para elas, a luta feminista passa justamente por essa problemática: queremos poder ser, livre de expectativas, do jeito que quisermos.

Na conversa, as mulheres também comentam o medo que a sociedade sempre teve de mulheres experientes. Séculos atrás, as acusadas de bruxaria eram comumente mulheres mais velhas, que possuíam mais conhecimento e estavam menos dispostas a se conformar. Exemplos de mulheres conquistando espaço e rompendo barreiras contribuem para que as novas gerações acreditem que a luta é válida e as vitórias são possíveis.

Em “as good a reason”, Paris conta de uma jovem que recebe conselhos de uma senhora bem-sucedida de batom vermelho, um símbolo do empoderamento feminino. A recomendação seria para tomar o poder, mesmo que por despeito, pois um homem ferve de raiva toda vez que uma mulher tem sucesso (“Every time you are succeedin’ / there’ s an old man somewhere seething / and spite’s as good a reason to take his power”).

Paris termina a canção pedindo que esta raiva, porém, não seja usada de forma a alimentar rivalidades femininas. Essa seria uma resposta à popular crença de que haveria uma competição natural entre mulheres, sendo a amizade feminina baseada em falsidade e inveja. É importante ressaltar que essa também é uma forma de dominação escondida. Ao tornar as mulheres contra as outras, a condição para o sucesso de uma passa a ser a derrota da outra, o que não apenas é falso como também dificulta os avanços femininos. Desde sempre, a sororidade é a melhor maneira de avançar, quebrando barreiras juntas para que as próximas possam chegar ainda mais longe.