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Hollywood não é glamurosa e está em greve

Em um primeiro momento, esse texto seria sobre a Greve dos Roteiristas e Atores e seus impactos na 75ª edição do Emmy Awards, marcada para 18 de setembro de 2023, mas posteriormente adiada para 15 de janeiro de 2024. Enquanto continuava minha pesquisa e escrita, a greve foi se desenrolando e, durante esse período, a indústria do entretenimento estadunidense esteve parada. Assim, estúdios fora de Hollywood tiveram a chance de seguir com suas produções e lançamentos, o que fez com que o público e o mercado olhasse, ainda que por um breve momento, para obras vindas de lugares não tão óbvios. Quando encerrei a escrita, no entanto, a greve dos roteiristas tinha acabado. A dos atores não.

Antes de falar sobre as greves em si — afinal, são dois sindicados diferentes, com demandas e exigências diferentes e que funcionam de formas diferentes — é preciso olhar para a indústria hollywoodiana e entender como ela tem funcionado. O primeiro passo é entender que séries e filmes são produtos mercadológicos, inseridos dentro de um sistema que funciona por relações trabalhistas semelhantes àquelas ocorridas em qualquer escritório. A magia entregue ao público não é com o que os trabalhadores lidam todos os dias — seja quem está na produção, como roteiristas, produtores, diretores, equipes de filmagem, som, pós-produção, maquiadores e figurinistas, sejam atrizes e atores (é importante ressaltar que o segmento de atores e atrizes vai muito além das grandes estrelas: existem figurantes, dublês, dançarinos e muitos atores que vivem de pequenos papéis ou estão em começo de carreira). Assim, de séries como Succession, The Last of Us, The Marvelous Mrs. Maisel, por exemplo, a grandes blockbusters, as produções que chegam às nossas telas o fazem por conta dessas relações trabalhistas — e as condições não são tão boas assim.

Hollywood Star System

O Star System

Em uma breve viagem no tempo podemos é possível entender como surgiu o conceito de estrelas de cinema — o Star System. No começo do século XX, o cinema silencioso era feito por atores e atrizes de teatro que precisavam interpretar o roteiro com gestos e olhares, que eram alternados com frames de textos narrativos e diálogos. No começo da década de 1920, com o declínio do cinema silencioso e o surgimento de equipamentos que permitiam sincronizar som e imagem, os atores passaram a interpretar também diálogos e os métodos de atuação precisaram ser aprimorados, encaminhando-se para ser o que hoje entendemos como atuação para a câmera. Assim, cada estúdio começa a ter um aumento nas produções cinematográficas, na maioria das vezes, com o mesmo elenco, o que fez com que o público passasse a ter maior interesse em saber quem eram aquelas pessoas, levando os estúdios a criarem contratos que garantiam o controle e a promoção da imagem de atores e atrizes.

Dentro desses contratos, existiam regras de bom comportamento, permitindo o controle sobre quem aparecia com quem em determinados eventos, quem poderia contracenar com quem em determinadas produções, tudo para manter a boa imagem e a moral intactas. Estúdios e agentes trabalhavam para criar essas personas, disfarçar qualquer coisa que pudesse arruinar essa imagem — vícios, traições, divórcios — a fim de manter esse sistema de estrelato, tão desejado pelo público. Os estúdios podiam negociar entre si as estrelas, como moedas de troca para ter trabalho com outros diretores e roteiristas, tendo total controle sobre a carreira dos atores. Marilyn Monroe, Marlon Brando e James Dean são exemplos de atores que trabalharam sob o Star System, enquanto filmes como Cantando na Chuva (1952) e Crepúsculo dos Deuses (1950) trazem a questão como pano de fundo de suas histórias.

O Star System durou de 1920 a 1960: a cada ano, mais e mais estrelas se viam insatisfeitas com as negociações, trocas e até censuras feitas pelo sistema e passaram a tomar o controle de suas carreiras. Muitos perderam contratos e foram ignorados por estúdios, o que se tornou assunto para os grandes tabloides de fofoca da época. Com as brigas judiciais, o sistema perdeu força na década de 60, aliado a mudanças nos próprios métodos de atuação que se popularizaram na época, como o Método Stanislavski, criado por Constantin Stanislavski no final do século XIX, cujo objetivo visava “a verdade da cena”, isto é, a experiência em contraste com a representação — até então, um dos pilares do sistema do estrelato. Em paralelo, a televisão estava em ascensão, com contratos que poderiam durar anos em longas produções seriadas. Todas essas mudanças fizeram com que o sistema de estrelas ruísse, permitindo que atores e atrizes pudessem ter seus contratos mediados por agências regulamentadas, que precisavam seguir determinadas leis trabalhistas. Os processos ao longo da segunda metade do século XX impactaram a forma como o trabalho da indústria era feito a como as relações trabalhistas passaram a se estabelecer — seja em relação a carga horária de trabalho, segurança física, base salarial, entre outros.

Hollywood - Greve

A greve em Hollywood

Quando falamos de direitos trabalhistas para atores e atrizes, estamos falando, principalmente, da SAG-AFRTA, que surge em 2012, com a fusão do Screen Actors Guild (fundado em 1933) com a American Federation of Television and Radio Artists (fundada em 1937), formando o Sindicato de Profissionais da Mídia dos Estados Unidos, contemplando atores, jornalistas, locutores, apresentadores, dançarinos, dublês, dubladores, entre outros. Esses profissionais não necessariamente precisam ser grandes atores e atrizes, as estrelas de cinema; na verdade, qualquer profissional que esteja se estabelecendo na indústria pode ser convidado a se associar — esse é um dos primeiros grandes passos na carreira de um artista, pois pelo tamanho e relevância da organização, os estúdios costumam procurar por profissionais associados.

A atual greve foi iniciada pelo Writers Guild of America (WGA) que também é o resultado de fusões de diferentes de grupos que asseguram as diretrizes de trabalho de autores, roteiristas e dramaturgos que, em 1948, com o aumento da produção e consumo televisivo, teve que se adaptar a complexidade da escrita para o entretenimento, iniciou um processo de reorganização dos grupos para poder unir os diferentes tipos de profissionais e garantir a qualidade do trabalho. Assim, atualmente, a WGA tem duas sedes, uma em Nova York e outra em Los Angeles, que atuam independentemente, mas podem se unir em prol de interesse maiores e em comum, que é o caso de greves, como já foi feito em 1960, 1981, 1985, 1988, 2007 e 2023.

Como toda indústria, negociações são feitas para que a mesma possa continuar a girar, movimentar empregos e dinheiro. Negociações surgem de acordo com as necessidades geradas pelas mudanças em um mercado sendo, nesse caso, o boom dos streamings — que modificaram a forma de criação, produção e distribuição de obras originais. Escrever um roteiro para uma série de 10 episódios de uma hora que terá uma temporada lançada de uma vez é muito diferente de escrever 25 episódios de 45 minutos em que um episódio é lançado enquanto os próximos estão sendo gravados. O ritmo muda a forma como uma série é recepcionada pelo público e como as medidas de sucesso são tomadas e interpretadas. Ter uma série disponível a qualquer momento, em diferentes dispositivos, altera a forma como consumimos o produto e, por sua vez, muda como é entendido quantas vezes essa produção foi assistida por um único usuário. Essas novas medidas determinam se a obra gerou lucro suficiente para ser renovada ou não — o que leva à onda de cancelamentos que temos acompanhado nos últimos anos.

Com tantas variáveis, o esperado e necessário era que houvesse alguma regulamentação para os streamings — como houve para os estúdios — para que roteiristas e atores tenham seus direitos garantidos. O atual cenário do streaming afeta a base salarial e os residuais a serem recebidos (valor que atores e atrizes recebem relativo a quantidade de vezes que determinado filme ou série do qual participaram são reproduzidos além da transmissão de estreia), o tamanho das equipes e as horas de trabalho — principais demandas exigidas pelas greves.

Hollywood - Greve

Um exemplo que repercutiu nas redes sociais e trouxe maior consciência sobre as condições de trabalho na indústria audiovisual foi a questão dos residuais da atriz Mandy Moore pelo seu papel como Rebecca Pearson em This Is Us (2016-2022), sobre o qual a atriz contou em entrevista ter ganho cheques de menos de um dólar. O caso escandaliza porque leva a pensar que, se uma atriz com uma carreira consolidada, protagonista de uma das maiores séries dos últimos anos, indicada e premiada pelo papel, recebeu esses valores residuais pelo seu trabalho, o que não esperar para atores que ainda não estão no mesmo nível? É inevitável, portanto, que o sindicato se questione como isso será regularizado com os streamings, em que essas medidas são nebulosas.

Outra demanda é a regularização do uso de Inteligência Artificial, tanto para a escrita de roteiros quanto para a reprodução de imagens. O tema é complexo, uma vez que ainda se discute o que é Inteligência Artificial, quais são os seus limites e naquilo que pode ser benéfico para, de fato, aprimorar processos de trabalho — seja na indústria do entretenimento, ou seja, novamente, nas indústrias em que estamos inseridos e trabalhamos todos os dias.

Para os roteiristas, a exigência é regulamentar até onde um estúdio pode usar uma I.A para redação de primeiros rascunhos de argumentos, sinopses e até roteirização de cenas específicas e como isso afetaria a contratação de roteiristas para finalizar o trabalho — como fica a remuneração? Até que ponto isso é criação? Até que ponto um roteirista poderia exigir reconhecimento pela autoria do texto? Essas são questões que estavam sem resposta e sem perspectiva de encontrar soluções para ambos os lados. Já do lado dos atores, a questão envolve a reprodução das imagens dos seus rostos e corpos, temendo que em algum ponto os estúdios possam gravar cenas a partir de I.A, sem haver necessidade da sua presença no set — como fica o salário desses atores? O direito de uso de imagem? Como fica o controle sobre a imagem desses corpos que mudam ao longo do tempo e que até deixam de existir, como foi o caso da propaganda da Volkswagen com a Elis Regina?

Todas essas questão foram levadas para a AMPTP (American Motion Picture and Television Producers) há meses e não houve espaço para negociação, por isso, chegamos nas greves dos roteiristas e dos atores de 2023. Os roteiristas pararam em maio, enquanto os atores em junho; desde então, diversas produções estão paradas, lançamentos foram adiados, as redes sociais foram tomadas por essas discussões, a cerimônia do Emmy Awards foi adiada para janeiro e não sabemos o que podemos esperar para os próximos meses.

Encerro com a notícia de que, após 146 dias de paralisação, a WGA conseguiu negociar algumas de suas demandas e optou por encerrar a greve. Os roteiristas voltarão ao trabalho, enquanto a SAG-AFRTA segue com suas exigências e piquetes, deixando diversas produções paradas até que tenham espaço para as suas negociações. Desmitificar a glamourização de Hollywood e trazer essas reflexões, por sua vez, é importante para termos consciência daquilo que estamos consumindo, entendendo que, de certa forma, fazemos parte desse sistema e dessa roda de indústria que gira para além das nossas maratona de séries de fim de semana.