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O medo somos nós: estilhaços da tela que Mary Shelley deixou há mais de 200 anos

“A morte é uma flor, que só se abre uma vez
Mas quando abre, nada se abre com ela
Abre sempre que quer, e fora da estação” — A Morte é Uma Flor:  Poemas do Espólio, de Paul Celan 

Frankenstein é um ícone cultural, principalmente devido à criatura, um estranho monstro não nomeado (sim, o monstro não se chama Frankenstein), remendado de partes do corpo roubadas e reanimadas pelo cientista Dr. Victor Frankenstein.

O clássico romance epistolar, semelhante a Drácula de Bram Stoker, se inicia com a troca de cartas entre os irmãos Margaret e Walton, durante uma viagem deste pelo ártico. Viagem esta em que o Dr. Frankenstein é resgatado e conta para Walton toda a epopeia de sua paixão pelas ciências naturais até o dia em que foi encontrado. Victor relata para Walton que, antes de seu resgate, estava à caça de sua criatura, visto que sua atração pelas ciências fez com que ele criasse um monstro semelhante a um humano, com aparência sobrenatural, fisionomia que gera um encadeamento de danos no desenrolar do romance.

“(…) eu era um pária miserável. Eu acalentava a esperança, é verdade; mas ela desaparecia quando eu vislumbrava minha figura na água ou minha sombra ao luar, ainda que fossem reflexos frágeis e inconstantes.” (p.192)

É interessante pensar que o monstro podia criar dois tipos de medo em um humano, uma vez que além da aparência grotesca, ele tem força sobre-humana, é mais veloz que qualquer um, suporta temperaturas extremas e pode se sustentar com uma quantidade escassa de alimentos. Todavia, fica claro que a repulsa que os homens sentem pela criatura se dá somente por sua aparência nojenta. Esse preconceito a partir da exterioridade de um indivíduo não é um tópico presente apenas na área ficcional, existindo até hoje. O monstro, no entanto, tinha sentimentos e emoções humanas, necessidades e desejos, e a rejeição cria sentimentos como raiva e melancolia por não ser aceito pelos demais, que são semelhantes uns aos outros e, ele, singular (o que também não foge da vida real). A solidão e a tristeza tornam a criatura assassina, cujo objetivo é se vingar do seu criador por confiná-lo a uma existência solitária e perturbadora, matando o irmão de Victor, incriminando e condenando à morte uma amiga da família e, por fim, matando o melhor amigo e a esposa de Frankenstein.

“Todos os homens odeiam os miseráveis; mas por que devo ser odiado se sou miserável para além de todas as coisas vivas? Meu próprio criador detesta e rejeita sua criatura (…). Como se atreve a brincar de tal forma com a vida?” (p.145)

Frankenstein

O medo é o próprio Victor Frankenstein e sua ambição; o medo somos nós que o criamos. Não falo de uma criação literária, como a de Mary Shelley. Quando honramos nossa verdadeira natureza, não há espaço para o medo. Tudo o que vivemos é atraído por nós para nos ensinar algo. Às vezes não é fácil. Parte de nós se encolhe ante os desafios da vida. O medo não é apenas uma necessidade para a sobrevivência, mas também uma forma de constituição da própria personalidade. O medo é um dos fatores que constituem o sujeito. Ao longo da história, vemos Victor assustado e temeroso de sua própria criatura. O medo que ele sente é proveniente daquilo que ele mesmo criou. O medo vem daquilo que ele mesmo ambicionou. Olhar a si mesmo em um reflexo real ou ideal, nos coloca entre o auto-engano e o ocultamento do mal. Victor foge de sua criatura porque não desejava ver a monstruosidade criada por sua ciência descabida, porque isso significaria contemplar aquilo que escapa ao controle do criador, dele mesmo. Ao mesmo tempo, a fuga que Shelley projeta em Victor nos faz refletir sobre as nossas próprias desventuras e medos, sobre o que fizemos e as consequências que serão provocadas, sobre nossa arrogância e nossa fragilidade.

Assim como o mito de Prometeu, em que fogo é dado aos homens como sinal de liberdade e conhecimento, a primeira tecnologia humana, os deuses acreditavam que o homem usaria o fogo não apenas para se aquecer e preparar seu alimento, mas para criar armas de ferro e destruírem uns aos outros, a obra de Shelley, O Prometeu Moderno, narrada de maneira lenta há mais de 200 anos, realiza questionamentos visionários para época do que se tornaria a biogênese e as questões éticas relacionadas à ciência. Até que ponto a ciência pode caminhar? Ela possui algum limite?

“Eu sempre me perguntava: qual era a origem do princípio da vida? Era uma pergunta ousada, repleta de mistério; todavia, quantas coisas já estivemos à beira de descobrir e, por covardia ou descuido, restringimos nossas investigações?” (p. 76-77)

O livro não se trata da criatura (o Prometeu moderno), mas do humano, de como a inovação científica pode ameaçar a humanidade, do criador e sua tentativa de se fazer Deus, se tornando a própria fonte de medo e horror. Outro ponto importante é que o terror da obra não está na figura física da criatura, nem das atrocidades que ela comete. O medo vem na forma da solidão, da ambição desenfreada e da perda. O que é mais terrível que perder um irmão, dois amigos e a esposa?

A ciência se movimentou de 1818 até os anos 2000, mas não encontrou uma forma de enfrentar o perecimento de alguém. A perda de um ente querido ainda nos causa horror. A dor do luto é algo que certamente não sabemos lidar perfeitamente, alguns a ignoram, outros ficam presos no passado, e alguns utilizam o tempo para (tentar) seguir a vida. “Be Right Back” (algo como “volto já”, frase que é comumente utilizada em filmes de terror antes do personagem ser assassinado), da série Black Mirror é uma reformulação um tanto quanto inteligente da clássica obra de Mary Shelley, em que, semelhantemente a criação do monstro de 1818, o episódio mostra como a tecnologia poderia ser utilizada para driblar a morte, fazendo o mesmo trabalho que o Dr. Victor Frankenstein fez ao brincar de Deus. Mas, até esse ponto da leitura, sabemos que essa brincadeira não traz nada além de horror.

Frankenstein

Fazendo uma breve retomada ao episódio que abriu a segunda temporada da série da Netflix, um homem (Ash) morre em um acidente de carro, e sua viúva, que até então não sabia que estava grávida não consegue lidar com a dor do luto e compra um modelo biossintético, uma espécie mais moderna do Prometeu moderno. Assim como a criatura é feita de pedaços de corpos, o ser biossintético de Black Mirror é constituído de todos os dados digitais existentes do falecido, ganhando, assim, vida.

Coincidentemente ao clássico de 1818, que criticava a Revolução Industrial e o medo da tecnologia se voltar contra o humano, um infortúnio devido a isso, nos anos 2000, é basilar. Apesar de ter características físicas humanas, contrariamente a criatura de Frankenstein, ele não possui sentimentos e emoções verdadeiros, nem necessidades e desejos, por esse motivo, a viúva (criadora, por assim dizer) gradualmente passa a olhar o Ash biossintético com horror, visto que a aparência física humana não é o suficiente para o tornar humano, trancando e abandonando a criatura no sótão, semelhantemente a fuga do Dr. Frankenstein.

“Be Right Back” é somente um dos estilhaços de uma tela negra que Mary Shelley nos deixou no século XIX para o século XXI, visto que retoma os questionamentos propostos por Shelley em sua obra, tratando da humanidade, bem e mal, arrogância e o lugar de cada pessoa neste mundo. As questões tratadas tanto pelo livro, quanto pelo episódio estão longe de serem resolvidas, especialmente com personagens complexos. Todos nós somos o criador e a criatura em algum momento. Todos nós somos o medo até certo ponto, a maneira como tratamos cada situação e lidamos com a consequência é o que nos define.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!