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A Síndrome de Lisbela e o paradoxo do amor feminino

“Transforma-se o amador na coisa amada, em virtude do muito imaginar”, recita Leléu (Selton Mello) no primeiro encontro com a sua amada Lisbela (Débora Falabella). Pessoalmente, sempre li Lisbela e o Prisioneiro como uma fábula desmedidamente romântica. As linhas utilizadas para costurar a trama são banhadas em um sentimentalismo exagerado, propositalmente brega. Porém, o pieguismo que contorna a trama também desmerece a força de Lisbela.

Característica fundamental da obra, o lúdico existe desde o primeiro encontro entre Lisbela e Leléu, característica conferida pelo cenário, um parque de diversões. Não escolhido ao acaso, aliás. O prólogo da obra pontua as diferenças entre os protagonistas, disparidades essas que encontram seu fim no único ponto onde as vidas dos personagens confundem-se: em um cenário imaginativo. As primeiras cenas de Leléu possuem montagem acelerada, com vários e exagerados cortes, destacando o modus operandi do rapaz. Sua primeira aparição acontece no burburinho de uma feira livre. Em pouco tempo, o herói da história conquista as pessoas ao seu redor com seu charme e lábia, características de um cafajeste. Seu cabelo por cortar e suas roupas em estampas vívidas consolidam a ideia de caos que o persegue.

Lisbela, entretanto, surge aos olhos rodeada por uma atmosfera mansa. Suas primeiras cenas acontecem no ambiente calmo de um cinema. A busca pelo lugar perfeito mostra como a garota é metódica e segue suas regras à risca para aproveitar da melhor maneira aquilo que ela mais ama fazer. As primeiras cenas de Lisbela revelam algo importante: ao contar para Douglas (Bruno Garcia) como será o filme que estão prestes a assistir, ela nos conta que não é somente a protagonista do filme, como a narradora do mesmo.

Conhecemos sua história de amor pelo seu ponto de vista, assistimos a Lisbela e o Prisioneiro pelo olhar apaixonado de uma moça interiorana, o que torna certos exageros da trama perdoáveis. Se o envolvimento entre Lisbela e Leléu nos parece acelerado, se certas cenas parecem faltar antes do primeiro beijo do casal, isso acontece porque assistimos ao que ela escolheu narrar. A personagem contou a estrutura de sua narrativa ainda em suas primeiras falas, onde deixa claro os clichês de sua história. E, uma vez que conta sobre alguns momentos, prefere não redizê-los para conseguir mostrar partes que são mais importantes: aquelas em que ela mostra ser sua própria heroína. O público, no entanto, não consegue notar essa característica porque a composição visual de Lisbela possui elementos típicos de uma clássica mocinha indefesa, o que impede de enxergar seus feitos heroicos. Costumo chamar esse fenômeno de Síndrome de Lisbela.

Lisbela se apresenta, como bem diz Leléu, “doce como uma chuva de caju”. E no cinema, mulheres atribuídas à feminilidade não possuem o direito de serem fortes. O ideal de mulheres heroicas que o cinema enraizou em nossa mente usa couro e tons escuros, não laços e cetins. A Síndrome de Lisbela causa a associação de uma personagem exageradamente feminina a uma mulher inocente e, sobretudo, fraca. Tais associações baseiam-se, também, em um senso comum do público: homens como Leléu não prestam. Desde o primeiro momento, os exageros do caixeiro viajante mostram sua péssima índole. Sua cafajestagem galante é clara não somente para nós, público, como para os personagens daquele universo. Quando Lisbela mostra-se perdidamente apaixonada por um homem com essa péssima fama, obviamente, a cravamos como burra. O mesmo acontece em Legalmente Loira, aliás. Elle Woods (Reese Whiterspoon) não passa de uma garota fútil e mimada, e o filme faz questão de escancarar isso. A surpresa em sua aprovação para a Escola de Direito de Harvard não existe somente pela sua caracterização boba e superficial, como também pelo fato de Elle sonhar com seu casamento.

A típica mocinha de uma comédia romântica não passa em Harvard. A clássica romântica irremediável não aponta uma arma para o seu vilão, como Lisbela, e a surpresa surge nesse ponto: não acreditamos na força de mulheres que amam. Lisbela possui o seu momento de virada, onde deixa de ser a mocinha indefesa e se torna, de fato, heroína de sua própria história. No entanto, não damos a devida atenção a esse momento porque não damos a devida atenção à personagem. Definimos em nossa mente que ela não passa de uma garota burra e ingênua, enredada pelas palavras doces de um canalha. Não percebemos uma característica crucial do amor dela por Leléu: Lisbela não apaixonou-se pelo homem graças às suas palavras encantadoras, tampouco, visitava o cinema tão assiduamente para assistir às histórias de amor. Ela também não havia aceitado casar-se com um rapaz rico e viajado, apesar de insuportável, porque acreditava em seu amor. O encanto desmedido da moça pela ficção era uma tentativa em fugir de sua realidade. Lisbela, na verdade, sonhava em ser livre.

Sua realidade nunca lhe permitiria isso: era a filha única do rígido delegado de uma cidadezinha nordestina. Não havia muitas portas por onde a moça pudesse voar. Com isso, não estou tentando dizer que Lisbela não amava Leléu. Seus olhos, no entanto, enxergavam além dos corações partidos que ele havia deixado pelo caminho antes de conhecê-la. Lisbela sabia que os anseios de liberdade de Leléu eram semelhantes aos seus. Sabia, sobretudo, que ele jamais cortaria suas asas, como ela tampouco o faria. Fora pelo desejo a essa liberdade desmedida que a mesma mocinha interiorana piegas rompeu com as comodidades de sua covardia e enfrentou Frederico Evandro (Marco Nanini), o antagonista exacerbadamente vilanesco de sua história. Lisbela não tinha o porquê. Estava a meros passos do altar. Poderia ter ignorado o atrevimento de Leléu em invadir seu casamento e aceitar como marido um homem que lhe daria uma vida tranquila em uma cidade grande, como aquelas do cinema. Entretanto, sem sequer titubear, apontou uma arma a um matador de aluguel, e não pensou duas vezes antes de atirar para salvar seu amor. Mesmo quando Inaura (Virgínia Cavendish) revelou-se como a verdadeira assassina de Frederico, Lisbela enfrentou o pai,

Para quem baixou a cabeça durante toda a sua vida, para se jogar numa vida incerta, porém, livre. E como uma típica moça interiorana, posso afirmar que não existe maior ato de coragem que esse. Mas por que não damos a devida importância ao ato de bravura de Lisbela? Porque na Síndrome de Lisbela existe um problema: o paradoxo do amor feminino. Miranda Priestly, em O Diabo Veste Prada. Alice Segretto, em De Pernas pro Ar. Elas e outras centenas de personagens estão aprisionadas em um paradoxo. São mulheres que amam quando não podem e são julgadas quando não amam. Confuso? Explico.

Primeiro, possuímos a representação clássica de uma mulher de negócios do início do século. Miranda Priestly (Meryl Streep) possui poder. Com um trabalho bem-sucedido e uma apresentação tipicamente forte — óculos escuros, cabelos curtos, salto alto —, Miranda ainda é o exemplo mor quando falamos sobre mulheres poderosas. No entanto, mesmo tendo tudo, o roteiro deixa claro como ela é amargurada e infeliz em sua vida pessoal, e como seu casamento está em frangalhos. Miranda possui sucesso em sua vida profissional, o que compromete intrinsecamente sua vida pessoal e, sobretudo, amorosa, não só na relação com seu marido, como e principalmente, com seus filhos.

Os conflitos de Alice Segretto (Ingrid Guimarães) não são muito diferentes dos de Miranda. Seu casamento com João Luiz (Bruno Garcia) está por um fio graças ao seu trabalho. Quando a sua demissão acontece, ao mesmo tempo em que o marido e os filhos a abandonam, percebemos como a mulher delega toda a culpa para si mesma. Para Alice, ela é o problema. Colocar sua carreira em primeiro plano acima de seu casamento fora o principal motivo do abandono. Em momento algum, a mulher põe a culpa em seu marido, além do próprio roteiro usar a obsessão de Alice pelo trabalho para culpabilizá-la. Não obstante, João só demonstra algum interesse novo em Alice graças ao fator erótico atribuído pelo novo trabalho da mulher.

O Diabo Veste Prada e De Pernas Pro Ar são, inegavelmente, distintos. No entanto, usam o mesmo argumento para criar o conflito inicial: uma mulher que prioriza sua carreira. Anna Scott, em Um Lugar Chamado Notting Hill, Anh Jeong-ha, em Passarela dos Sonhos e Andie Anderson, em Como Perder um Homem em 10 Dias também podem ser usadas como exemplo da Síndrome de Lisbela, que acomete mulheres que são julgadas como fracas graças ao amor incondicional que sentem e que, por isso, precisam colocar sua competência sempre à prova. As personagens citadas não passam de exemplos para um paradoxo real. O amor, o afeto sempre fora muito mais cobrado por parte das mulheres. Precisamos ser doces, gentis e solícitas, graças à ideia machista de uma feminilidade pura e total. Somos incitadas a amar com todo o nosso corpo desde sempre, porém, quando declaramos esse amor, quando lutamos para viver nossa paixão, somos taxadas como fracas, como trouxas, como emocionadas.

Sofremos, ainda, com o mito da virgindade: só seremos mulheres quando nos entregarmos a um homem. Somos ensinadas a isso desde sempre. Somos cobradas a amar e quando amamos como nos pedem, somos ridicularizadas. Não vemos personagens como Lisbela, ou Elle como as mulheres fortes que são porque elas são femininas. Admiramos a estética de Miranda, mas criticamos quando mulheres optam por sua carreira ao invés de filhos, ou um casamento. Desejamos mulheres como Inaura, mulheres decididas, fortes, que apresentam-se com uma imagem poderosa, sensual. No entanto, quando conhecemos a fundo, taxamos estas como vulgares e atrevidas, matando pouco a pouco tudo aquilo que julgamos como forte dentro delas. O clichê duelo entre carreira versus amor não existe apenas na ficção. Porém, não importa qual seja a nossa escolha: sempre saímos perdendo. Porque a escolha certa seria ser um homem.