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American Horror Story Cult: a loucura condicionada na mente feminina

O termo “louco”, o substantivo “loucura”, o xingamento “sua louca” fazem parte de uma condição social. Segundo o dicionário Aurélio, louco é aquele que é esquisito, excêntrico, imprudente ou que perdeu a razão. Se pensarmos que uma pessoa que possua alguma dessas características é considerada alguém que requer atenção especial, que com alguma frequência torna-se socialmente marginalizado ou que não possui condições de lidar com a própria vida — aspectos que não fazem distinção de gênero —, por que existe uma quantidade muito maior de mulheres consideradas loucas?

No artigo intitulado A loucura feminina — enfermidade e/ou pressão social? Análise da questão nas literaturas de língua inglesa, Lucia de La Rocque e Leila A. Harris, as autoras, nos levam a refletir sobre a condição mental das mulheres em séculos passados, utilizando como referência o universo da literatura. De acordo com o trabalho, mulheres sempre tiveram muita criatividade e vontade de integrar o mercado das artes, por exemplo, mas não tinham a oportunidade de fazê-lo. Com uma jornada de trabalho intensa no âmbito doméstico, era difícil que elas tivessem tempo para desenvolver quaisquer habilidades e perseguir as próprias ambições e, não por acaso, muitas enlouqueceram ao sentir-sem totalmente podadas e oprimidas pelo contexto social no qual viviam. A partir do século XIX, a literatura produzida por mulheres começou a aparecer com mais força, muitas das quais relacionavam relatos “da repressão da criatividade da mulher pelo poder patriarcal como responsável pela emergência da loucura feminina”.  

Em outros artigos sobre o mesmo tema, o termo “adestramento da mulher” aparece com demasiada frequência — uma consequência do discurso que impunham padrões de comportamento que muito eram estimulados pela igreja. Se a mulher foi quem trouxe o pecado para a vida humana, restava-lha uma única função no mundo: a de ser mãe.

Esse foi — e ainda é — um mecanismo estratégico da sociedade para lidar com o que não entendem ou que ameaçam hierarquias socialmente institucionalizadas; tudo que foge ao padrão é excêntrico e esquisito, ou conforme o dicionário, louco. Em Loucura feminina: doença ou transgressão social?, as autoras Jacqueline Simone de Almeida Machado e Regina Célia Lima Caleiro revelam que, quando a mente passa a ser um ramo estudado por Freud, instaura-se o que é considerado um comportamento normal e o que é desviante — considerado, em sua concepção, patológico. A falta de conhecimento sobre aspectos particulares do corpo feminino e as pré-definições criadas para o convívio social geravam estranhamento, fazendo com que muitas mulheres fossem isoladas dentro de casa. Porque para pertencer à sociedade é necessário seguir certas diretrizes, esses conceitos acabam incutidos também na mente feminina, que acata o padrão como forma de sentir-se parte de uma dita normalidade. O que é imposto torna-se uma verdade. Por isso, ser dona de casa e aceitar a submissão de um casamento faziam parte de suas vidas; do contrário, elas tornavam-se automaticamente diferentes, fora do padrão ou simplesmente loucas — o machismo necessita dessa inferiorização, da falta de voz e de um termo para chamar e lidar com quem não seguisse suas regras.

American Horror Story

Dentre tantas nomenclaturas utilizadas para tratar da loucura feminina, uma das que mais chama a atenção é a histeria. Traduzido do grego, o termo significa útero e era considerada como uma suposta condição psicológica exclusivamente feminina, cujos sintomas envolvem desde oscilações de humor até perturbações causadas pelo útero. Por questões hormonais, sabemos que muitas mulheres sofrem com os mesmos sintomas, algo que não era de amplo conhecimento na época, e era automaticamente visto e tratado como uma doença. Ainda segundo a igreja, as mudanças de humor ou personalidade poderiam ser consideradas heresia, muitas vezes provindas de possessão. Mulheres com esses sintomas podiam ser exorcizadas ou mesmo queimadas vivas.

O grande problema é que esses tipos de conceitos e titulações não mudaram muito ao longo dos anos. Na medicina, por exemplo, ainda há muitos resquícios da cultura patriarcal e sua resistência em explorar o desconhecido. Em 2013, quando do lançamento da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais nos Estados Unidos, muitas doenças eram direcionadas como exclusivamente femininas, sem nenhum tipo de explicação plausível. Transtornos de ansiedade, depressão e fobias eram intitulados apenas como questões “de mulher”, quando não há distinção de gênero cientificamente comprovada nesses casos, e para a cura das mesmas, eram prescritos remédios fortíssimos. Se antigamente mulheres que expressavam qualquer tendência à comportamentos fora do comum eram isoladas em hospícios ou dentro da própria casa, hoje elas podem ser podadas com medicamentos regidos por uma indústria extremamente focada na venda sob prescrição.

Qualquer ser humano está sujeito a sofrer com transtornos mentais. Um sintoma ser condicionado ao feminino, no entanto, aprisiona a mulher em uma condição de fragilidade institucionalizada, que exclui e deixam vulneráveis a uma solução também condicionada a ser algo criado para combater impulsos exclusivos do corpo feminino. E é o que acontece com a personagem de Sarah Pulson, Ally Matfair-Richards, em American Horror Story: Cult.

Atenção: este texto contém spoilers

Ally é casada com Ivy (Alison Pill) e as duas têm um filho, gerado pela própria Ally, chamado Oz (Cooper Doson). Embora seja uma mulher atormentada por diversas fobias, os três parecem ter uma relação bastante saudável. Na esposa, Ally tem um porto seguro desde o seu primeiro episódio de pânico e uma presença fundamental no sucesso do tratamento contra seus transtornos psicológicos, realizado ainda com a ajuda de remédios e visitas regulares a um psiquiatra. Quando a história de American Horror Story: Cult tem início, no entanto, Ally começa a apresentar uma crise de pânico após Donald Trump ser eleito presidente dos Estados Unidos.

American Horror Story

American Horror Story: Cult é focada no que acontece com a família de Ally após as eleições: a série mostra como a cidade fictícia onde vivem, Brookfield Heights, trata e é afetada pelo novo momento político do país, e percebemos como Ally teme pela própria família, mas também por ela mesma — lésbica, empreendedora independente, uma vítima de pessoas como Kai (Evan Peters), seguidor do novo presidente eleito e ávido por suas ideias, que organiza um culto que vive essa ideologia. Ao longo da história, Kai mostra habilidades intensas de manipulação e conquista alguns seguidores, muito embora seu plano seja muito maior do que apenas recrutar pessoas que tenham ideias alinhadas com as suas, enquanto Ally continua a consultar-se com seu psiquiatra, Rudy Vincent (Cheyenne Jackson), com cada vez mais frequência, e tomar doses cada vez maiores de seus remédios. As doses cada vez mais altas, muitas vezes inadvertidas, no entanto, trazem um imenso efeito colateral, causando mais desconforto do que alívio.

Em tempo, Ally decide, por conta própria, deixar de tomar os medicamentos. Mas o efeito apresentado pela retirada abrupta dos remédios é ainda pior: ao invés de tornar-se mais controlada diante dos fatos e ter mais aptidão para proteger sua família, American Horror Story: Cult mostra uma Ally que passa a viver em aflição extrema, incluindo sensações de perseguição e a falta de ânimo constante, atormentada por palhaços que estão por toda a cidade, mas por interferências externas e pelo seu histórico, não acredita se são reais ou não. Sem saber o que fazer para lidar com a mente perturbada da esposa, Ivy a isola em um hospício, garantindo-lhe que tudo ficaria bem e que tudo o que ela estava vendo e vivendo naquele momento era irreal.

O problema é que os palhaços eram um grupo real que começa a aterrorizar a vizinhança com pichações e assassinatos, fazendo com que até mesmo quem assiste fique em dúvida se toda a história que ela vinha contando era verdadeira — é muito mais fácil culpá-la, é melhor apenas isolá-la. A decisão equivocada por abrir mão repentinamente da medicação apresenta mais uma consequência: a falta do remédio a deixa confusa e nem mesmo ela própria é capaz de acreditar se o que via era verdade ou não.

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É o pessoal do FBI que acredita em sua história e passa a ficar em alerta sobre o que pode acontecer, algo que sua própria esposa não fez. Mais tarde, entende-se que Ivy, na realidade, não ama a esposa, mas recente-se por não ter sido a progenitora de Oz. A ideia de não ser a mãe biológica do próprio filho lhe é insuportável, e quando começa a fazer parte do culto de Kai, Ivy torna-se capaz de externalizar sua raiva.

O culto continua a crescer com pessoas que tem algum medo ou raiva internalizados, ou algo que as tornam diferentes na sociedade. Beverly Hope (Adina Porter), por exemplo, é uma repórter que tem tido sua credibilidade posta em questão por um chefe corrupto e também começa a seguir o culto, embora acredite que muito de sua doutrina só faça sentido para seguidores homens. Ivy, Beverly e Meadow (Leslie Frossman) passam a identificar que Kai as queria em seu culto apenas para submetê-las a uma condição de submissão. Quando são encorajadas por Bebe Babbit (Frances Conroy), uma antiga feminista que ajudara o grupo SKUM¹ a realizar assassinatos de homens na década de 1970, American Horror Story: Cult joga luz sobre o fato de que Kai é, na verdade, um machista, e que, tal qual Donald Trump, existe dentro de uma sociedade patriarcal. Elas passam a ver o culto como de fato é: um conjunto de pessoas totalmente manipuladas por um líder de ideias equivocadas.

Em todo esse tempo, Ally continua no hospício. Mas quando sai do manicômio, ela está medicada e tratada da forma adequada — diferente de quando seu antigo psiquiatra a tratava (descobre-se mais tarde que o médico fazia parte indiretamente do culto, o que o fez descrer do que sua paciente contava em vista de fazê-la ficar ainda mais em dúvida sobre si mesma). Com o medo e a ansiedade controlados, mas ainda em alerta, aliados com a falta de segurança de sua família nesse contexto, seus sentidos ficam aguçados e ela se apoia em um único objetivo: parar Kai. Assim, ela utiliza de sua vulnerabilidade como uma arma de defesa: American Horror Story exemplifica, por fim, como a ação coletiva feminina tem um poder muito maior do que se imagina. Para Ally, sua família era a coisa mais importante na sua vida e, por isso, ela teve que trabalhar mentalmente para conseguir tirar as pessoas que ama de dentro de uma situação de conflito. Como toda mulher que pensa diferente, outras pessoas decidiram que era preciso passar pelo trauma de ser isolada para, no fim, provar que estava certa: os palhaços existiam e sua comunidade estava sob ameaça. Determinar que uma pessoa é louca, no entanto, deveria ser o resultado de pesquisas científicas e não de percepção social.


¹: SKUM é um manifesto feminista publicado por Valerie Solanas nos anos 60. O texto fala que os homens estragaram o mundo e por isso devem ser eliminados, deixando assim lugar para as mulheres tomarem decisões. A formação de SCUM tinha com objetivo a misandria (desprezo aos homens, contrário de misoginia) e o femismo (mulheres serem superiores aos homens, contrario de machismo).