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De Olhos Bem Fechados: desejo em três atos

O desejo é o motor dos três atos de De Olhos Bem Fechados, último filme da carreira de Stanley Kubrick. Entretanto, este sentimento, intrínseco à experiência humana, não é retratado de forma evidente pelo diretor, que se interessa por investigar os seus aspectos oníricos e subjetivos.

Atenção: este texto contém spoilers!

Em um contexto no qual os thrillers eróticos, como Instinto Selvagem e Atração Fatal, tomavam de assalto as salas de cinema, o público esperava ver Nicole Kidman e Tom Cruise em cenas tórridas. Essa impressão foi reforçada pelo material de marketing, em especial pelo trailer do filme. Mas a expectativa não se cumpriu. Logo, a decepção não demorou a se materializar em críticas que ignoravam que essa percepção estava mais atrelada a anseios individuais do que aos objetivos de Kubrick.

Partindo da ideia de que o desejo é inconsciente e motivado pela proibição, De Olhos Bem Fechados acompanha um recorte curto da vida de Alice (Kidman) e Bill (Cruise), um casal que vive confortavelmente no Greenwich Village e é considerado um modelo de perfeição. Como ele é um médico de sucesso que atende à elite local, isso lhe garante um passaporte para festas luxuosas e certo prestígio. E é exatamente uma dessas festas que escancara as diferenças entre marido e esposa.

Circulando em meio aos demais convidados e separados por uma distância segura, Bill e Alice têm a oportunidade de flertar com desconhecidos. Enquanto ela assume o controle e se deleita com os elogios de um estrangeiro, Bill parece mero acessório para a luxúria de duas supermodelos. A cena em questão é a responsável por desencadear uma discussão entre os protagonistas: durante a briga, Bill afirma que o desejo é um sentimento masculino e, portanto, as mulheres são meros objetos. Essa visão é contraposta por Alice, que confessa ao marido a sua fantasia de fugir com um marinheiro que conheceu durante as férias do casal, abandonando o conforto e a segurança da sua vida burguesa em nome de alguns momentos de prazer.

Assim como a confissão, todo o restante de De Olhos Bem Fechados parece pensado para contestar as afirmações de Bill. Atormentado por visões da esposa com o tal marinheiro, ele segue pelas ruas de Nova York como se buscasse vingança. Porém, é incapaz de desejar verdadeiramente alguém e nunca consuma as suas tentativas de encontros sexuais. Apesar de ir até o apartamento de uma prostituta, o médico deixa o local sem tocá-la. Quando recebe investidas de uma jovem em uma loja de fantasias, ele se mostra desconfortável. Nas sequências da orgia, Bill observa pessoas nuas e entregues ao espetáculo, mas não toca nenhum daqueles corpos.

Isso expõe algumas questões interessantes a respeito do desejo e da forma como ele é percebido pelos protagonistas. Para Alice, este sentimento está vinculado ao impulso e à busca por um objeto perdido, que seria capaz de satisfazer às suas necessidades corporais ainda que elas sejam inconscientes. Assim, o sexo está ligado a uma falta que precisa ser suprida e o desejo pode ser compreendido como um querer forte, tolhido pelo casamento, o que lhe dá contornos de proibição.

A percepção de Bill, entretanto, está mais ligada ao poder. À observação alheia. O seu desejo é o do outro e não verdadeiramente seu. Ele quer ser parte da elite para a qual trabalha e por isso frequenta as suas festas, mas é visto como um serviçal e chamado ao trabalho mesmo nessas ocasiões. Assim, existe uma demanda a ser preenchida, mas ela está sempre além das possibilidades do personagem. Isso é reforçado pelas cenas de orgia: ainda que o médico esteja mascarado e coberto por uma capa, os demais simplesmente sabem que ele não pertence àquele espaço. Não importa o quanto o seu desejo se desloque em direção à sua ambição de poder e pertencimento, ele ainda faz parte de a uma classe inferior cuja função é servir tanto quanto as prostitutas presentes na festa.

Além disso, enquanto Alice descobre o próprio desejo de forma instintiva, Bill parece tratar o sentimento com pragmatismo, como se ele pudesse ser construído e adaptado às suas demandas de outras áreas da vida. Porém, o desejo é passivo e tem muito mais ligação com observar um marinheiro à distância do que transformar um encontro com uma prostituta em uma transação burocrática.

Portanto, não importa o que Bill faça para se vingar: a única mulher que ele está verdadeiramente buscando ao longo do filme é Alice. Ela é o seu objeto perdido. Ao rachar a fachada de perfeição do casamento, a sua esposa se torna aquilo que Bill quer descobrir, o desejo que ele quer satisfazer. Enquanto isso, ela segue sonhando com outros homens e com situações prazerosas, mas aos poucos isso adquire contornos de remorso — o que é reforçado pela máscara no travesseiro, indicando que Alice sabia a respeito das buscas do marido.

Desse modo, De Olhos Bem Fechados é um filme com um único final possível. Se o sexo e as visões desencontradas do desejo desencadeiam o pesadelo de Bill e transformam as ruas de Nova York em um espaço que engole e liberta, a sua forma de voltar para Alice e compreender a esposa como um agente das suas vontades sexuais é exatamente a sugerida por ela: foder. Porém, o reencontro não significa o fim da busca e apenas levanta novas perguntas e procuras.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

1 comentário

  1. Eu vi este filme há muitos anos atrás e esses dias o revi e não tinha percebido o quanto as reações de Alice são capturadas pelo machismo pois ela revela o sonho erótico para o marido com muito remorso como se ela tivesse traído ele. O remorso também está presente na cena em que ela conta sobre o desejo dela com o marinheiro, no início do filme e o marido fica incomodado ao saber que a esposa tem desejos para além da relação deles. Mas ok, vou dar desconto porque era década de 90 e o feminismo não era tão pungente como hoje.

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