Fernanda Montenegro é uma daquelas pessoas que vive no imaginário brasileiro há anos. Dos mais velhos aos mais novos, qualquer um é capaz de apontar pelo menos um personagem icônico interpretado pela magistral atriz. Eu, por exemplo, do alto dos meus nove anos de idade, me lembro de Fernanda aparecer “pilotando” um avião na abertura da novela Zazá ao som de “Dona Doida”, canção de Rita Lee, alvo fácil para a fascinação de uma criança (“Zazá sumiu/Ficou um zum zum zum”). Anos depois, foi a vez da minha prima, ainda criança, ficar tão fascinada com Bia Falcão, a maldade personificada da novela Belíssima, de 2005, que não se fez de rogada e batizou sua cachorrinha com o nome da vilã.
É com o carinho de quem ouve a história de uma pessoa querida da família que li Prólogo, Ato, Epílogo, biografia escrita por Fernanda Montenegro com colaboração de Marta Góes, lançada pela Companhia das Letras no segundo semestre de 2019. Ler as palavras de Fernanda e descobrir mais sobre sua trajetória de atriz, desde o início no rádio até chegar aos palcos do teatro, dos momentos de tensão tentando sobreviver de arte em meio a ditadura até chegar ao cinema e às novelas, é aprender sobre a mulher por trás do pseudônimo e seus noventa anos de vida, cuja maior parte foi dedicado, de alguma maneira, à arte de encantar plateias.
“É a arte que determina a ação.”
Arlette Pinheiro da Silva só viria a se transformar em Fernanda Montenegro alguns anos depois de seu nascimento no ano de 1929, no Rio de Janeiro. As famílias de seu pai, de lavradores portugueses, e a de sua mãe, de pastores sardos, chegaram ao Brasil no mesmo navio que aportou por aqui em 1897. Ambos faziam parte de um grupo de 800 europeus contratados para trabalhar nas fazendas de café em Minas Gerais em substituição da mão-de-obra escravizada dos negros. Seus pais se fixaram, depois de idas e vindas em busca de melhores condições de vida e trabalho, no Rio de Janeiro no bairro do Campinho, entre Jacarepaguá, Cascadura e Madureira, em uma época em que o lugar contava com moradias em terrenos com hortas, árvores e animais domésticos.
A vida humilde de Arlette sempre refletiria nas escolhas de Fernanda, assim como os valores passados a ela por seus familiares. Foi por confiança na filha e na sabedoria dela que seus pais permitiram que Arlette trilhasse um caminho pouco ortodoxo para uma mulher nos anos 1940 — ser atriz, àquela época, era o mesmo que ser uma “mulher da vida”, mas algo dentro da jovem dizia que aquele era o seu chamado, e foi assim que, quase que literalmente, ela o seguiu: foi ao ouvir no rádio o anúncio de um concurso para encontrar jovens talentos radialistas que Arlette se inscreveu para participar do Radioteatro da Mocidade, da Rádio MEC, e conquistou seu primeiro emprego. Ao se entrosar com seus colegas, Arlette também começou a frequentar um grupo de teatro e não demorou para que, enfim, Fernanda Montenegro surgisse.
Falando dessa maneira parece que existem duas pessoas dentro da mesma mulher, o que não deixa de ser, em partes, real. Em Prólogo, Ato, Epílogo acompanhamos a trajetória de Arlette, saindo do subúrbio do Rio de Janeiro, até chegar ao momento em que Fernanda Montenegro seria indicada ao Oscar de Melhor Atriz por sua personagem em Central do Brasil. A biografia é quase como um diário que somos autorizados a ler, embalados pelas palavras fáceis e certeiras de Fernanda — ao mesmo tempo em que ela nos conta as dificuldades da carreira em um país que sempre coloca empecilhos para o desenvolvimento da arte e da cultura, também nos mostra vislumbres de sua vida íntima, a parceria de sessenta anos ao lado de seu marido, Fernando Torres, a falta de dinheiro e as dívidas contraídas em prol do teatro, e também o nascimento de seus filhos, Cláudio e Fernanda. Entrelaçados a esses momentos íntimos, vemos ainda as turnês que cruzaram o Brasil, levando apresentações e montagens para os palcos de centenas de cidades, as empreitadas no cinema, a vida nas novelas e as consagrações por meio dos inúmeros prêmios recebidos.
Fernanda Montenegro narra todos esses noventa anos com uma delicadeza e consciência ímpar. Ela sabe da importância que tem perpetuar sua história, a história do teatro brasileiro, em uma época que perdemos grandes atrizes na mesma velocidade com que o desgoverno comete atrocidades nessa seara, realizando o desmonte da cultura e dificultando seu acesso dia após dia. Ler Prólogo, Ato, Epílogo é descobrir a mulher por trás da atriz, mas também todos os profissionais que, de alguma maneira, impulsionaram Fernanda adiante em sua carreira, seja por meio dos ensinamentos ou das inspirações. Mesmo que você não seja estudioso do teatro brasileiro, reconhecerá os nomes que passeiam pela história de Fernanda Montenegro, pessoas que abrilhantaram nossos palcos como Nathalia Timberg, Bibi Ferreira, Tônia Carrero, Marília Pêra, Rosamaria Murtinho, entre tantas outras.
“O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto.”
Ao escolher contar sua história, Fernanda Montenegro também ergue a bandeira da resistência. Ela, como parte viva da história brasileira, sabe o que é resistir em tempos de escuridão. Ao lado de Cacilda Becker, por exemplo, Fernanda foi pessoalmente conversar com militares de maneira a impedir a prisão de atores; já sobreviveu a um atentado quando um tiro atravessou o quarto em que dormia. E nada a disso a fez parar. No dia seguinte lá estava ela, subindo no palco para se apresentar, ainda que com medo, porém com muita coragem. Prólogo, Ato, Epílogo é um manifesto de amor às artes, ao seu país, a sua família, e mesmo que você não seja fã — ou tenha a pretensão de ser —, terminará a leitura orgulhosa de poder ter vivido na mesma época em que essa mulher.
Para além de nos contar apenas as histórias de sua vida, Fernanda Montenegro também nos brinda com a história do teatro brasileiro em sua essência, seja por meio da luta recorrente da classe artística para se fazer existir em períodos tão difíceis no país, seja por meio dos momentos de euforia que precedem uma grande atuação. A vida de Fernanda é, em maior ou menor grau, a vida dos palcos brasileiros, desde suas primeiras participações no rádio, os primeiros passos nos palcos, a vida na televisão e no cinema. Ler Prólogo, Ato, Epílogo é conhecer não apenas a artista Fernanda Montenegro, mas a mulher Arlette Pinheiro da Silva Torres e a história da dramaturgia brasileira.
O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.
Eu já queria ler esse livro, agora fiquei com mais vontade ainda!