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Garota-Ranho e o terrível mundo on-line

Fui criada lendo quadrinhos. Minha mãe tinha a coleção inteira de Asterix na biblioteca de casa e até hoje tenho certeza que toda História Antiga que aprendi, eu aprendi lendo as aventuras do gaulês. Assim, sempre que discussões sobre a validade do quadrinho (e aí pode-se incluir gibis, graphic novels e mangás) dentro do universo literário surgia, eu nunca conseguia participar realmente, porque nunca tinha pensado em separar os dois. Sempre li quadrinhos e sempre li livros; se os dois são ótimos, por que não?

Quando entrei na faculdade, estava mais afastada dos quadrinhos e o que me trouxe de volta foi o Scott Pilgrim, de Bryan Lee O’Malley. Uma amiga insistiu tanto para eu ler que até me emprestou os volumes e acabei devorando todos num dia só. Não tinha percebido, mas estava sentindo falta da linguagem dos quadrinhos, que é tão peculiar. E foi significativo sentir isso particularmente com Scott Pilgrim, porque o seu diferencial em comparação à outras coisas que havia lido é a forma com que o mundo da história é construído e como a linguagem de quadrinhos é apropriada para criar algo estranho, autoral e extremamente conhecido e identificável.  Poucas pessoas conseguem criam universos fictícios dessa forma.

Garota-Ranho, escrito por Bryan Lee O’Malley, e desenhado por Leslie Hung, é uma história completamente maluca e completamente realista. Lottie é uma influenciadora digital que ficou famosa com seu blog de moda. Ela tem duas amigas, também influenciadoras e blogueiras, um séquito de seguidores e fãs, e alergias constantes, que fazem seu nariz escorrer nos piores momentos possíveis — mas é claro que ninguém além de Lottie e seus médicos sabem disso.

Lottie também tem um ex-namorado e sua cota natural de stalkers, mas é quando conhece Caroline, ou para os íntimos, Coolgirl, que a história realmente começa. Lottie tem a mania de dar apelidos para todo mundo que conhece, suas melhores amigas são a Normgirl (Megan) e a Cutegirl (Misty). A única pessoa que Lottie não apelidou foi ela mesma, mas Carol (Coolgirl) faz esse trabalho para ela e, quando vê sua nova melhor amiga com nariz escorrendo e cheia de alergias no banheiro do bar, resolve chamá-la de Ranhottie, a garota-ranho.

Garota-Ranho

Lottie construiu sua persona da internet com cuidado e muito esforço. Seus (números excluídos) de seguidores não foram conquistados da noite para o dia e, se tem uma coisa que Lottie deixou de compartilhar no seu blog foram suas alergias. Seu nariz escorre, seu ouvido entope, e a lista de gatilhos é imensa. A qualquer momento, sua alergia pode surgir e estragar uma ótima selfie. A marca de Lottie é ser perfeita e a melhor e, para isso, suas alergias não podem aparecer. De jeito nenhum. Lottie levou anos para moldar sua persona on-line sem suas excreções e, em minutos, Caroline quebra a ilusão e vê Lottie por inteira.

Como qualquer boa história de Bryan Lee O’Malley, o universo de Garota-Ranho é apresentado sem nenhuma explicação prévia. Lottie é famosa na internet e isso basta. Coisas estranhas acontecem, mas ninguém explica muito bem o porquê. É quase que realismo mágico; um universo diferente e meio desconhecido que é jogado na sua cara e não tem nada que você pode fazer além de aceitá-lo e continuar lendo. Mas de novo, assim como em Scott Pilgrim, o universo de Garota-Ranho é estranho, mas é também incrivelmente conhecido. A forma com que a história se apropria da linguagem da internet transforma o estranho em familiar e o desconforto de não saber direito o que está acontecendo aumenta o interesse no que vai acontecer. Tudo é possível em mundos criados dessa forma.

Quanto mais eu penso em identidades criadas na internet, mais eu tenho vontade de sair de todas as redes sociais, porém, ao mesmo tempo, sou fascinada por narrativas e viver na internet nada mais é do que inventar narrativas para nós mesmas. Mesmo que a gente tente não entrar nesse jogo, o não jogar é uma escolha narrativa. Estamos todas perdidas. Contudo, no mundo literário, a internet tem o potencial de ser inspiração para muitas boas histórias, mas apesar da riqueza narrativa, poucos autores se aventuram para esse lado e dos que o fazem, poucos se sobressaem ou saem do óbvio Vida Real versus Internet.

Fui ler Garota-Ranho com um pé atrás porque não queria ficar desapontada com uma história ruim sobre a internet, mas não poderia ter ficado mais surpresa. Lottie não é exatamente uma boa pessoa, mas ela é complexa e interessante. Existe uma imensidão nela muito maior que seus looks do dia ou suas alergias. O que lemos sobre ela é apenas uma pequena parte, uma espiada pela fechadura. Nossa posição é semelhante a de seus seguidores; sabemos pouco sobre Lottie, mas por esse pouco é possível perceber que ela é mais do que é mostrado.

E esse aspecto tem tudo a ver com a linguagem dos quadrinhos e o fato de Garota-Ranho ser uma história serializada. Esperar sair o próximo volume para saber o resto da história pode parecer algo da época das cavernas nesse mundo do streaming, mas tem algo especial nisso. Não é uma história completa cortada em pedaços, Garota-Ranho foi escrita para ser uma experiência serial, assim como eram os Romances na época do folhetim e os gibis que a gente compra na banca de jornal. A cada volume, o mistério desse universo estranho e de Lottie se desvenda mais um pouco.

Garota-Ranho

Uma história contada aos pouquinhos não pode ser uma história sem graça, pois precisa conquistar seus leitores a cada volume novo que é lançado. Eu mesma só li o primeiro volume de Garota-Ranho, ainda o único editado no Brasil, mas fui completamente fisgada pela história e sempre que eu penso nela, fico mais intrigada sobre os próximos capítulos. Acompanhar quadrinhos seriados consegue ser pior e mais agonizante do que acompanhar séries, pois eles demoram bem mais que uma semana por episódio.

Enquanto espero os próximos volumes, fico pensando ainda em histórias sobre internet e é impossível não relacionar Garota-Ranho com o livro Uma Coisa Absolutamente Fantástica, o primeiro romance do Hank Green, que junto com o quadrinho, foram os culpados pela minha crise séria de identidade na internet que começou ano passado e continua até hoje.

A forma com que a internet consegue criar comunidades e juntar pessoas é incrível, mas hoje, essas multidões só conseguem gritar e é impossível conversar com alguém que só grita. Tudo é conteúdo e consumimos tudo da mesma forma, desde o post da sua amiga que está na praia até o furo de notícia de um jornalista do outro lado do planeta. O mundo é um lugar esquisito e a internet não deixa as coisas mais fáceis. Talvez seja por isso que narrativas sobre internet me fascinam tanto. Quanto mais eu leio e assisto histórias sobre, mais consigo pensar e refletir. E quanto mais eu penso, mais converso com outras pessoas. A arte, a ficção, a literatura têm esse poder de conexão com as pessoas. É uma conexão diferente da conexão da internet, ela abre cabeças, cria empatia, permite reflexões e diferentes interpretações. Quando a vontade de escapar da internet aumenta, uma boa história sobre esse mundo maluco pode ajudar a pensar novas maneiras de me relacionar com ele — já que é quase impossível escapar desse mundo, por que não tentar melhorar nossas vidas?

Talvez Garota-Ranho não desperte todas essas reflexões, mas não deixa de ser uma boa história sobre a internet e como nos relacionamos com ela. Parece bem superficial no início, mas existe profundidade e nuances que esquecemos que existem na vida real, ainda mais nas pessoas que acompanhamos on-line. Além de tudo isso, Garota-Ranho tem desenhos lindos e personagens altamente shippáveis — que é o que grande parte da internet quer e precisa.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


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1 comentário

  1. Confesso que a HQ nunca me chamou atenção por causa do título (o que poderia ser uma garota ranho???), mas agora fiquei super interessada.
    Só tenho um leve problema com coisas seriadas que é perder a empolgação. Se passar um determinado tempo, meu ânimo vai diminuindo (e eu vou esquecendo a história)…

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