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Uma Carta de Amor à Marjane Satrapi: obras sobre a vivência da mulher no Oriente-Médio

Marjane Satrapi é uma romancista gráfica, cineasta, roteirista, nascida em 1969, em Rasht, no Irã, mas passou sua infância em Teerã. Por conta de sua história familiar, Satrapi cresceu escutando sobre a resistência contra a invasão árabe, que estabeleceu a religião islâmica na Pérsia, e sobre o envolvimento de sua família com os movimentos comunista e socialista. Nesse sentido, Satrapi cresceu com uma educação considerada como “liberal”, com ideais de liberdade e resistência, o que entrava em conflito com o Irã dos anos 1970.

Quando nasceu, o Irã vivia em um regime imperial e embora este fosse mais flexível em relação à influência do Corão sobre justiça e educação, não havia liberdade política. Com a crise econômica do fim dos anos 1970, a população começou a se revoltar contra o xá (rei, em persa), havendo até mesmo uma união entre aqueles que possuíam ideais de esquerda e os religiosos no país em prol de uma política anti-xá. Com a pressão política e revoltas, o xá fugiu prontamente do Irã e pouco depois, um dos líderes xiitas, Ruhollah Khomeini, voltou do exílio e foi aclamado pela maioria da população, que, em seguida, transformou o Irã em uma república islâmica teocrática, governada por sacerdotes xiitas, em que seria seu líder supremo. Assim, os ideais de esquerda, com teor revolucionário, que ampararam os religiosos na época mencionada passaram a ser reprovados, fazendo com que os pais e a família de Marjane fossem perseguidos politicamente e seu tio, executado.

O governo autoritário de Khomeini impôs ao povo as mais diversas tradições islâmicas e isso ocasionou não só para Satrapi, mas para diversas mulheres da sociedade iraniana, mudanças radicais, como a necessidade de passar a usar véu e a ter aulas apenas com meninas. Além disso, quando Saddan Husseim, ditador do Iraque, invadiu o Irã em 1980, a escritora testemunhou a jornada de seus colegas de apenas 13 a 15 anos para a guerra. E por que isso é importante de ser colocado? Pois é aí onde começa a história de Persépolis, um romance autobiográfico em quadrinhos escrito pela Marjane Satrapi. É a partir desse contexto histórico que emergiram os incríveis quadrinhos sobre as memórias de uma menina que, aos dez anos, foi obrigada a usar o véu islâmico.

Desse modo, Marjane Satrapi foi um marco na minha vida, jovem adolescente que começara a ter contato com o feminismo de supetão, e principalmente com um feminismo ocidental, colonial, não compreendendo adequadamente a cultura do Oriente, muito menos da própria América Latina. Com suas memórias e narrativas, a autora mostra uma quebra de paradigmas do que nos é colocado sobre as mulheres do oriente, sobre não serem engajadas, não possuírem opinião e até mesmo não conhecer o que seria a prática feminista, e isso entra como um ponto norteador de reflexão da nossa própria história, sobre compreendermos nossos preconceitos enquanto pessoas ocidentais, e também para crescermos enquanto mulheres e feministas de-coloniais, compreendendo as diferentes vivências entre as mulheres, não havendo apenas um modelo do que seria a mulher forte, independente e questionadora dos seus costumes.

As obras de Marjane Satrapi entram como uma posição norteadora de que devemos relacionar nossa vivência de gênero, de classe, de raça com as estruturas e as instituições culturais impostas pelo colonialismo e pelo neocolonialismo, em que as mulheres do Oriente-Médio, e trazendo para nosso espaço de fala, as mulheres da América Latina vivenciam até hoje, questionando o que seria uma prática feminista que tentam colocar como universal, porém uma universalidade eurocêntrica, ocidental e branca. O trabalho da autora nos mostra a necessidade de questionar os padrões eurocêntricos da nossa visão de mundo, basicamente calcada em uma história de “ondas feministas” universais que não condizem à nossa construção.

Persépolis abriu caminhos para o raciocínio de que não existem apenas religiosos fundamentalistas no país, em que diversas iranianas conversam abertamente sobre sexo, muitas mulheres não gostam de usar o véu, outras já preferem usá-lo – e sobre isso, Marjane diz que, para ela, o véu simboliza a opressão, mas respeita o uso e seus motivos; o problema estaria na impossibilidade de escolha por parte das mulheres. O sucesso dos quadrinhos foi tão grande que não parou apenas em grandes vendas, mas tornou-se uma adaptação para o cinema, de mesmo nome, em 2007, estreando no Festival de Cannes, onde recebeu o Prêmio do Júri. Assim como também fora indicado ao Oscar de Melhor Filme de Animação, que, infelizmente, acabou perdendo para Ratatouille.

Além deste, Satrapi também publicou outro romance gráfico chamado Bordados, que basicamente fala sobre o cotidiano das iranianas de sua família, ficando indiscutível que a vida íntima das mulheres do Irã é tão enérgica e viva quanto a nossa. Os registros do livro são dos momentos entre mulheres que ocorrem após os almoços de família na casa da avó de Marjane, esta que já aparece em momentos emocionantes de Persépolis. Tais ocasiões são retratadas como situações de desabafos de sentimentos, opiniões e experiências de cerca de nove mulheres iranianas, que, apesar de falarem bastante de vivências próprias das mulheres daquele espaço geográfico, faz também com que nós, mulheres latino-americanas, nos identifiquemos com as conversas hilárias e emocionantes, pois contam, acima de tudo, relatos sobre o dever/ ser que é imposto às mulheres.

O próprio título do livro é uma referência à uma discussão polêmica sobre uma prática oriental das mulheres. O termo “bordados” no livro não é uma alusão à costura, ao tricô, mas é uma relação com a cirurgia de reconstrução do hímen das mulheres, que elas, no livro, chamam de bordado. Há um entendimento geral de que as mulheres daquela cultura necessitam casar ainda virgens, pois caso isso não ocorresse, haveria um desrespeito ao seu homem e até mesmo para toda a sociedade. O que acaba sendo uma operação “comum” pois há a “reconstrução” da virgindade, na qual estas tornam-se virgens novamente para o momento do casamento. O levantamento dessa discussão faz com que o leitor ou leitora avalie sobre a concepção histórica de casamento, sobre como este afeta as mulheres e seus corpos, e como sexo ainda é um tema considerado como tabu.

As obras de Marjane Satrapi são relevantes a partir do momento em que a situamos no momento histórico em que estamos, em como é importante o conhecimento sobre outras experiências que não as nossas, pois a diversidade é como uma professora, nos ensina. E além de seus trabalhos, há outros filmes e livros que também falam sobre a situação da mulher no Oriente-Médio, como o romance gráfico documental O Mundo de Aisha, de Ugo Bertotti, que noticia a história de algumas mulheres no Iêmen que são consideradas revolucionárias silenciosas daquela cultura. Além dos quadrinhos, há o filme O Dia Em Que Me Tornei Mulher (2000), da diretora Marzieh Makhmalbaf, que conta a vivência de três gerações de mulheres no Oriente-Médio.