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Good Trouble e os dilemas da nova geração

Em 2013, o seriado The Fosters, criado por Peter Paige e Bradley Bredeweg, ganhou destaque no canal ABC Family, hoje Freeform, pela diversidade que até então quase não existia em sua grade de programação. As cinco temporadas giravam em torno das dinâmicas familiares da casa Adams-Foster, que contava com Stef (Teri Polo), uma policial, e sua esposa Lena (Sherri Saum), vice diretora escolar; seus filhos Brandon (David Lambert), filho biológico de Stef do seu primeiro casamento, Jesus (Jake T. Austin/Noah Centineo) e Mariana (Cierra Ramirez), gêmeos que foram adotados ainda pequenos, e Callie (Maia Mitchell) e Jude (Hayden Byerly), irmãos que vivem por um período na casa de Stef e Lena após passarem por diversos lares temporários. O foco de The Fosters sempre foi a diversidade, seja no relacionamento de Lena e Stef, na relação que Lena tinha consigo mesma por ser filha de pai branco e mãe negra, na questão de identidade latina de Mariana e Jesus, na descoberta de Jude a respeito de sua orientação sexual, e nas discussões sobre o significado de família sempre aliada a questões sociais e políticas, entre elas imigração e as falhas sistema de adoção. Em 2019, Good Trouble, spin-off de The Fosters, surge com a missão de levar os telespectadores pelos dramas e dilemas de Callie e Mariana Adams-Foster, agora formadas e vivendo em Los Angeles.

Atenção: este texto contém spoilers!

Na nova série, Callie e Mariana não moram mais com as suas mães, que sempre as livraram de roubadas, nem enfrentam os mesmos problemas da adolescência. Agora elas estão no mundo adulto e, como qualquer recém-formado dessa geração, elas não sabem muito bem o que estão fazendo. Nessa nova etapa, Mariana se forma um ano antes do que o programado no prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e consegue um emprego de engenheira de software em uma startup, enquanto Callie, após se mostrar uma grande ativista na série original, se forma em Direito e consegue uma vaga com o desafiador Juiz Wilson (Roger Bart), um juiz federal conservador — apesar dele não se ver como tal —, com o objetivo de influenciar progressivamente as decisões de alguém com um pensamento tão imutável.

O primeiro episódio, “DTLA”, começa com as irmãs Adams-Fosters chegando em Los Angeles com a sua mudança e logo de cara o mundo real se apresenta para elas. Entre um roubo e a realidade crua e sem lentes cor-de-rosa de seus empregos, Callie e Mariana ainda descobrem que estão morando em uma comunidade chamada The Coterie. O lugar, que já foi um conhecido teatro em Los Angeles, foi transformado em um prédio comunitário e as irmãs dividem todos os espaços com os outros moradores. É nesse ambiente que conhecemos os outros personagens de Good Trouble: Davia (Emma Hunton), uma influenciadora do movimento body positivity; Dennis (Josh Pence), um quarentão com passado misterioso; Alice (Sherry Cola), a gerente do Coterie e lésbica ainda no armário para os pais; Gael (Tommy Martinez), designer gráfico de dia e artista durante a noite; e Malika (Zuri Adele), uma ativista.

Good Trouble

Logo no início da trama, Callie precisará balancear seu lado ativista e profissional quando é designada para trabalhar em um caso a ser julgado por Wilson. Jamal Thompson (Spence Moore II), um jovem negro, foi morto a tiros por policiais que alegam ter confundido o celular que ele usava com uma arma. Nada de novo sob o sol. Com a conhecida vertente conservadora do Juiz Wilson, não apenas Callie fica apreensiva com o desenrolar do julgamento, mas também Malika, que se torna símbolo do ativismo junto ao caso. O julgamento prejudica a relação entre as duas logo no início de sua amizade, pois Malika se envolve pessoalmente no caso e Callie não pode se mostrar parcial, sendo auxiliar do caso do juiz responsável. Ao mesmo tempo, Callie precisa aprender a lidar com a sua nova relação com a lei e a justiça: acostumada a ser uma ativista rebelde e fazer coisas que tantas vezes a prejudicava sem pensar, agora ela verá que não é tão fácil assim lidar com essas questões de maneira profissional e pragmática.

A temporada de estreia de Good Trouble também aborda sexualidade e identidades de gênero ao introduzir o primeiro personagem bissexual em sua trama, Gael Martinez, o novo interesse romântico de Callie. O enredo de Gael conversa com tópicos sobre a não-monogamia e relacionamentos abertos, sempre andando no limite do que é o início de uma conversa sobre a bissexualidade e o clássico estereótipo que estamos cansados de ver — a necessidade de “escolher um lado”, quando Bryan, parceiro de Gael, pede para ele escolher com quem ele vai ficar; ou os estereótipos negativos atribuídos à bissexualidade, quando Mariana perde o interesse ao descobrir que Gael é bissexual, alegando que ficaria insegura de namorar alguém como ele. Com o decorrer dos episódios também conheceremos a irmã de Gael, Jazmin (Hailie Sahar), transexual, que precisará da ajuda de Callie para um caso de preconceito no ambiente de trabalho.

Outro ponto forte de Good Trouble é o desenvolvimento de suas personagens femininas, a começar por Malika. No início da temporada a vemos ganhando notoriedade durante o caso de Jamal Thompson, e aos poucos conhecemos também o seu passado. Assim como Mariana e Callie, Malika também esteve no sistema de adoção, mas diferente delas não teve a sorte de permanecer junto do irmão — irmão que não a perdoa por ter denunciado a própria mãe para o serviço social.

Mariana é outra personagem determinada a fazer a diferença no seu ambiente de trabalho e como uma das duas mulheres latinas na startup em que consegue seu primeiro emprego, descobre que não são apenas os homens que recebem mais por seu trabalho do que mulheres, mas que mulheres brancas recebem mais do que mulheres negras e latinas ocupando o mesmo cargo. Ao longo dos episódios, Mariana tenta convencer suas colegas a divulgarem seus salários para que possam exigir uma real mudança cultural dentro da empresa, mas o que ela encontra não é o apoio esperado. Ela percebe que há uma clara divisão entre o feminismo das mulheres brancas e não-brancas, e enquanto aquelas estão determinadas a lutar por equidade de pagamento com relação aos homens, o mesmo não se aplica quando envolve mulheres com realidades e lutas diferentes.

Good Trouble

A primeira temporada de Good Trouble dá início também a tramas que ainda precisam ser mais exploradas. É o caso, por exemplo, de Alice, que passa todos os episódios tentando lidar com o casamento de sua ex-namorada e melhor amiga, enquanto tenta, ao mesmo tempo, se abrir para um novo relacionamento e com o fato de ainda não ter assumido sua orientação sexual para seu pais que, segundo ela, são tradicionais. Ainda assim, no season finale, “Vitamin C”, a personagem é surpreendida quando eles dizem saber sobre a sexualidade da filha há muito tempo, o que a deixa aliviada.

É também nesse episódio que temos um vislumbre da relação familiar de Davia, a mãe que não aceita a filha, porém não sabemos muito sobre a sua vida antes dela chegar no Coterie além de que ela mantém uma relacionamento com um homem não muito confiável. No final da temporada, também, Davia está entre voltar para a sua cidade natal com o namorado ou permanecer em Los Angeles para continuar os estudos, o que ainda deixa um gancho para que possamos conhecê-la em uma vindoura segunda temporada.

Mesmo com tantos pontos positivos, Good Trouble derrapa ao investir em uma trama clichê vista em tantas outras séries: o triângulo amoroso. Para os fãs e telespectadores esse recurso já é muito conhecido, uma vez que desde The Fosters os roteiristas decidem colocar Callie como parte de um. No spin-off, Callie se envolve não apenas em um, mas em dois triângulos amorosos ao mesmo tempo: o primeiro envolve a garota, Gael e Bryan (Michael Galante), uma dinâmica diferente para Callie, uma vez que ela está acostumada a ser o centro do triângulo; o segundo envolve Gael, Callie e Jaime (Beau Mirchoff), outro advogado e cunhado de Brandon. O segundo triângulo representa os dois mundos de Callie, a parte artística com que ela tinha mais contato quando adolescente e a parte do Direito, que ela está mais próxima agora que é advogada. Por mais que ela “tenha” que escolher com quem ficar, o enredo é batido e repetitivo, principalmente para aqueles que assistiram a série original.

O diferencial de Good Trouble é que, enquanto muitas produções feitas para jovens ainda focam no ensino médio — apesar de muitas vezes os tramas não coincidirem mais com a faixa etária de quem a assiste — ou na confusão do início da vida na faculdade, esse é um spin-off que cresce junto com a sua audiência e com suas atrizes principais, pulando o drama universitário e o tópico de descoberta durante a graduação, indo para um caminho muito pouco explorado pela televisão: o jovem-adulto logo após a faculdade ainda tentando se descobrir no mundo. Good Trouble tem a oportunidade de sair do núcleo familiar dos Adams-Fosters e explorar novos personagens com um passado diferente das protagonistas, que já se tornaram a família escolhida delas, e assim exploram novos tópicos da atualidade que tanto afetam a nossa juventude.

A essência de The Fosters ainda está viva em Good Trouble, e a série consegue falar sobre temas importantes à essa geração que não sabe se pertence aos millennials ou à geração z e tentam se encontrar no mundo. Jennifer LopezJoanna Johnson e Peter Paige, produtores executivos da série, ainda se mantem fiéis à promessa de não falar com jovens como se eles não soubessem, ou não entendessem, o que está acontecendo no mundo. A atração aborda assuntos importantes discutindo-os sem medo. Talvez seja isso que faça de Good Trouble um spin-off diferente de tantos outros que não deram certo: a série continua a crescer com a sua audiência sem querer mudar o que fez com que a mesma se apaixonasse pela série original.