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Oitenta tiros: O Ódio Que Você Semeia também é aqui

Oitenta tiros. Um guarda-chuva tomado por um fuzil. Uma abordagem de imobilização que acabou em óbito. Mais um corpo negro caído no chão. Toda semana, um caso que vira mero exemplo e estatística. O Ódio Que Você Semeia, filme e livro, falam sobre o sul da Flórida, mas tem tantas semelhanças com a realidade brasileira que as comparações e analogias são automáticas.

Em 2017, no auge os protestos em Charlottesville: ao ver a condescendência do governo estadunidense com os nazifascistas que invadiram uma marcha contra a recolocação de uma estátua de um confederado escravagista nesta cidade do estado da Virginia, coincidentemente eu estava lendo O Ódio Que Você Semeia, de Angie Thomas. O título do livro vem de uma música do rapper 2Pac, ele mesmo vítima dessa violência estrutural contra os negros: The HateYouGiveLittle InfantsF****Everybody, formando a gíria “Thug Life”, em português, Vida Bandida, imagem que se forma de uma construção diária de discursos hostis, humor de péssimo gosto e mau jornalismo.

O livro não fala de nazistas contra o movimento negro, e sim de negros, latinos e mestiços sendo criminalizados e silenciados apenas por quererem existir com dignidade, o que deixa grupos supremacistas brancos à vontade para agir e semear ódio nos cidadãos comuns. Alguns acadêmicos dizem que o racismo, tal como existe hoje, é uma invenção da Modernidade (a que começou com a colonização das Américas) porque foi quando a cor da pele de alguém e apenas ela passou a dizer se aquela pessoa podia ou não ser escravizada. Toda a história das Américas, em razão da escravidão, mas também por ideias eugenistas já no século XIX, contribuiu para o pensamento racista de hoje.

Em 2018, o filme do livro estreou: e tudo só pareceu piorar. A eleição de um fascista para o governo brasileiro, a intervenção militar, o aval para o extermínio dos jovens negros das periferias dados pelos governantes que agora têm o respaldo de um presidente que coaduna com ideias racistas e higienistas de sociedade. Temos uma família atingida por 80 tiros. Temos muitos mortos em outras tantas abordagens desastrosas do exército.

Em O Ódio Que Você Semeia, Starr (Amandla Stenberg) é uma adolescente que cresceu em Garden Heights, um bairro violento, “gueto” da Flórida, e que não sai regularmente por sua vizinhança desde que tinha 10 anos, quando sua amiga Natasha foi morta diante de seus olhos por uma bala perdida enquanto ambas brincavam em um hidrante quebrado com outras crianças da vizinhança. A partir daí, Starr passou a ficar entre sua casa, o mercado de seu pai e a escola, uma instituição particular em que a moça tem que ser “outra pessoa” para não demonstrar sua origem.

Escolarizada, inteligente e filha de pais com elevada consciência de raça e classe, Starr tem verdadeiro pavor de ser considerada uma “menina do gueto” por seus colegas da Williamson. Até que mais um incidente traumático muda tudo. Seu pai faz questão de orar ao Jesus Negro e muitas vezes recapitula episódios de resistência de seu povo, falando inclusive sobre as “Underground Railroads”, rotas de fuga dos escravos para o Norte livre e citando rebeliões célebres, como a de Nat Turner.

No final das férias de inverno, Starr aceita ir a uma festa com sua amiga Kenya (Dominique Fishback), e quando uma briga se inicia, elas se separam em meio ao tumulto e um amigo de infância de quem Starr estava afastada há algum tempo lhe oferece carona de volta para casa. No caminho, Kahlil (Algee Smith) e ela são parados por uma viatura policial e sofrem revista abusiva. Quando o rapaz faz um movimento para confortar a amiga, leva tiros do policial, todos em lugares fatais. Até o socorro chegar, Starr fica com a cabeça sob a mira da arma do policial Um-Quinze, número de matrícula que ela decorou devido ao trauma.

Há então um arremedo de investigação policial, que ao invés de demonstrar a imperícia e imprudência do policial, insiste em “culpar” Kahlil por ser morto — algo que Hailey (Sabrina Carpenter), então amiga de Starr, também faz posteriormente —, já que era traficante e supostamente membro de uma das duas gangues que dominavam Garden Heights: os King Lords. A verdade sobre as atividades de Kahlil e seu envolvimento com os King Lords, conforme Starr vai se aproximando mais da comunidade e da Sra. Ofrah (Issa Rae), sua representante legal, estava bem longe disso. A família e a comunidade são retratadas de modo muito verossímil na história, fazendo com que você exercite a empatia e entenda a posição dos pais de Starr e de seus irmãos, Seven (Lamar Johnson) e Sekani (TJ Wright)e as relações estreitas dessa família com o local em que moram.

Durante o andamento do inquérito, Starr ainda tem que lidar com uma entrevista que o pai de “Um-Quinze” dá, dizendo que seu filho era um policial exemplar há 16 anos e que só “estava se defendendo”, pois viu que o adolescente estava armado e possivelmente carregava drogas consigo. A arma? Vocês vão descobrir o que era a tal arma lendo o livro. E vão ficar tão indignados quanto eu. Podia ser um guarda-chuva, como no caso do rapaz morto aqui no Brasil. O “garçom”, como foi referido em massa pelos meios de comunicação, tem um nome, Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, e uma história. Como Khalil, foi morto pelo desastre que é o sistema de segurança pública sem qualquer legitimidade.

Não é só não ser racista, nazista ou fascista que importa. Posicionar-se abertamente contra tudo isso é questão de decência, pois no caso do racismo e demais preconceitos, a máxima “quem cala, consente”, é muito verdadeira. Uma das personagens mais identificáveis como “branco comum sem noção” é Hailey, que nega veementemente que seja racista, embora faça comentários de péssimo gosto e preconceituosos com frequência, dirigidos tanto à própria Starr quanto a Maya, amiga de ambas com ascendência coreana. Quando confrontada pelo teor abusivo de suas palavras, Hailey recusa-se a pedir desculpas pela ofensa que os outros sentiram, porque só estava “brincando”. Típico. As palavras de supostos comediantes com seus ditos racistas carregam o poder de fogo de fuzis e metralhadoras. Elas legitimam a ideia de que nossos corpos negros e indígenas servem para sujeições: primeiramente, ao riso preconceituoso; depois, aos abusos físicos e sexuais de toda sorte, a tortura. Por fim, à conclusão de que encerrar nossa existência não é nada. O ódio sendo semeado em palavras.

Apesar de Hailey, Chris (K.J. Apa) e Maya — que tem ascendência coreana como já mencionado, mas isto não impede o racismo de algumas destas comunidades contra negros: quem leu O Sol Também É Uma Estrela, de Nicola Yoon, sabe do que falo —, namorado e amiga de Starr, a apoiam durante todo o difícil processo que envolve luto, testemunhos e protestos no seu bairro, evidenciando que nem todas as pessoas pensam igual e que há, sim, esperança mesmo em lugares abastados e com pensamento senso comum como a Academia Williamson — que sedia um protesto “black lives matter”, mas apenas para evitar uma prova de química, uma superficialidade que machuca tanto quanto expõe a fragilidade dos discursos como “ninguém solta a mão de ninguém” e “somos- todos-alguma-coisa”.

Depois, a mesma princesinha loira da Williamson, já no final do livro, diz que foi ótimo terem matado Kahlil. “Menos um traficante no mundo”, segundo as palavras da garota. Até porque a questão do tráfico volta a se levantar bem aí. Quem traz essas drogas do exterior? São os negros das periferias? Não, são os brancos das mansões e dos bairros confortáveis que têm jatinhos e helicópteros. No filme, há uma cena de catarse que não está no livro, mas que é magnífica: ao tentarem conversar para aparar as arestas, Hailey, que deixara de seguir Starr no Tumblr por conta de uma postagem antirracista da amiga, que exibia o corpo linchado de Emmet Till, iniciando a tensão entre as duas, faz mais um de seus comentários racistas, e Starr pega a escova de cabelo que está no bolso da mochila de Hailey e empunha como se fosse uma arma, gritando palavras de ordem violentas que a polícia dirige a pessoas supostamente criminosas. A ex-amiga cai no chão em prantos. Mas ainda não consegue entender. “É assim que é”, conclui Starr. É assim que é.

Mas quem a polícia caça com sanha assassina e mata inadvertidamente? Negros. Pobres. Quem são os bandidos (outro helicóptero carregado de cocaína foi encontrado esses dias, notícia abafada muito rápido)? Assim, após concluído o inquérito policial, um julgamento ainda mais patético do policial que assassinou Kahlil requer o testemunho de Starr, que mais uma vez relata como seu amigo foi assassinado sem chance alguma de defesa, inclusive com um tiro pelas costas. Mas o policial Um-Quinze, que surpresa, é inocentado do homicídio pela excludente de ilicitude “legítima defesa”. SIM.

Então Starr resolve protestar — na cena do protesto no filme, a autora Angie Thomas entrega uma camiseta para Starr, e as palavras dela, “eu estive nos programas sociais do governo, vim de uma periferia; hoje, estreia o filme baseado no livro que escrevi: tudo é possível” vieram à minha mente e eu chorei largada, pelas pessoas que viu morrer, contra todo o sistema corrompido e ter voz de alguma maneira. Lembrou de algo? Excludente de ilicitude para policial que matar em serviço. Institucionalização dos autos de resistência como legítima defesa. Quando não dá, o tiro foi pelas costas, a arguição é violenta emoção. Pacote anticrime. Tiros de advertência, mesmo que sejam oitenta.

O filme suaviza algumas questões exploradas mais a fundo no livro, como esperado. Hollywood. A mudança na figura de King (Anthony Mackie), posto como o maior vilão da história no filme me incomodou muito. “Eu poderia ter comprado o mercado”, ele fala para Maverick (Russell Hornsby), pai de Starr, e a impressão que temos é que ele escolheu totalmente seu destino. Não. Mesmo a construção de Khalil como membro de gangue não está no livro. Sinto falta também do diálogo entre Kahlil e Starr onde o rapaz diz que não aguenta mais ter que escolher entre ter luz, gás ou comida em casa devido à escassez de recursos familiares — a mãe do rapaz, senhora Brenda, é viciada em crack e deve a King, piorando ainda mais as circunstâncias em que vive a família. No final, a cena de um quase tiroteio me decepcionou muito também. Starr, ao ver Sekani, seu irmão mais novo, empunhar a arma do pai, põe as mãos na cabeça na frente de um policial e diz “chega de tanto ódio”. Eu discordo. O ódio que temos dos brancos nem chega perto daquele que fomos ensinados a ter por nós mesmos e de que somos vítimas. Essa culpa não cabe a nós, condenados na terra.

É na “brincadeira” estilo Hailey, e nos “sou responsável pelo que eu digo, e não por como você entende”, na minimização do sofrimento do povo negro que começa todo o silenciamento, os discursos perversos, a violência simbólica que evoluem para a defesa direta e aberta para que se aniquilem negros e outros grupos étnicos “inferiores”, como pregavam os vermes em Charlottesville.

Oitenta tiros, mortes por imobilizações e torturas em hipermercados. A construção é diária. Traçando um comparativo: quando há casos de violência doméstica e misógina no geral, entendemos que as coisas degringolam para algo mais grave porque a sociedade permite discurso machista na publicidade, na televisão, em sua própria organização propriamente dita. A mesmíssima coisa ocorre com o racismo. A mulher negra hiperssexualizada, os estereótipos em cima do homem negro como violento e viril, a associação frequente com cor da pele e criminalidade. Extremistas terroristas brancos como os de Charlottesville se fortalecem com esse ódio que é livremente distribuído por todos os lados, insinuado em propagandas, por supostos comediantes atrás de risos fáceis dos preconceituosos, em músicas, nos detestáveis programas policiais que existem aos milhares na televisão; esses discursos passam e permeiam a nossa experiência de vida.

Quando muitas pessoas se espantaram com essa demonstração de força de neonazistas (e outros grupos de extrema direita com pensamentos semelhantes, inclusive aqui no Brasil, que elegeram o atual presidente), pensei onde estava a surpresa, se todos os meios de comunicação, a polícia e a sociedade agem no sentindo de criminalizar e exterminar a juventude negra? Onde está a surpresa, tanto pelos Estados Unidos quanto pelo Brasil, em que o projeto de segurança pública falido de guerra às drogas na verdade é uma política de extermínio em massa da juventude negra, mestiça e pobre das periferias? Onde está a surpresa, se foi com nosso sangue derramado que se fez e faz todo o mundo como é hoje?

O ódio racial que você semeia nas crianças desde muito cedo, às vezes sem nem perceber, corrompe toda a sociedade.