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“Crash Into Me”: o dia em que Grey’s Anatomy nos atropela ensinando o que é o preconceito

A série americana Grey’s Anatomy sem dúvida alguma é a minha predileta. Uma série que vai muito além de retratar o cotidiano de um hospital, seu enredo nos fornece diversas lições de vida e nos envolve em uma trama com histórias de medos, dores, amores, amizades, lutas e conquistas. A série tem como protagonista a Dra. Meredith Grey (Ellen Pompeo), porém, uma personagem que ao longo de quinze temporadas rouba a cena com todo seu carisma e intensidade é a Dra. Miranda Bailey (Chandra Wilson).

Atenção: o texto contém spoilers da quarta temporada.

A primeira temporada nos apresenta essa figura ímpar, a chefe dos residentes, uma mulher negra de personalidade autoritária e rígida – características responsáveis pelo seu apelido nada simpático entre os residentes: nazi. Ao longo dos episódios, no entanto, essa imagem de “durona” vai se desfazendo e conhecemos a mulher sensível, amiga, de valores impressionantes, apaixonada pelo que faz e acima de tudo competente. E é, dentro deste cenário, que a quarta temporada nos conta sobre a crise em seu casamento com Tucker Jones (Cress Williams). A dedicação ao trabalho passa a ser criticada pelo marido, principalmente após o nascimento de seu primeiro filho. Os episódios nove e dez desta temporada nos conta que em meio à crise conjugal, Bailey se depara com um desafio ainda maior. Um paramédico sofre um acidente e recusa seu atendimento. O motivo? Ela é negra e ele um simpatizante nazista que tem tatuado em seu abdome uma suástica, o grande símbolo nazista.

Bailey então decide usar esta oportunidade para “evoluir”, como ela mesmo diz, e aceita assumir o caso e a cirurgia. A ironia deste episódio é que pela primeira vez, de fato, Miranda assume uma postura nazista: a de usar sua autoridade e eleger Cristina Yang (Sandra Oh) para auxiliá-la na cirurgia após o homem afirmar que não aceitaria o atendimento de um médico negro. Cristina foi escolhida pois era mulher, não negra e não “ariana”. Desta forma, o paramédico não seria atendido por um negro, mas também não seria por um branco. Tal postura autoritária se estende a George O’Malley (T.R. Knight), homem e branco, que é selecionado para a cirurgia para que o paciente assine o termo de autorização. Ele, porém, não participa do procedimento cirúrgico e ao invés disso é usado como mediador da discussão de Miranda com Tucker Jones, que está na sala de espera do hospital. Ao final da cirurgia, quando a médica já está costurando o abdômen do homem, após um questionamento a O’Malley, esta decide usar um procedimento que terá como consequência a deformação da tatuagem.

A emoção de Miranda Bailey no episódio é tamanha que pude sentir uma mistura de desprezo e dor no decorrer da cirurgia e um ódio de Turker, por sua atitude egoísta e nada empática com a esposa. Um misto de emoções que me fez estar tão dentro do olhar de Bailey, que me surpreendi quando Cristina Yang evidencia a ironia do episódio em um protesto ao final da cirurgia. Uma ironia que nos faz refletir como é fácil qualquer pessoa assumir uma postura autoritária e de segregação diante de uma situação passional.

Miranda usou todas as suas forças para provar que daria conta de ser profissional e de evoluir, tornando-se, assim, uma pessoa diferente daquele homem que idolatra o regime fascista de um ditador, autoritário, cruel, segregacionista. Ela, de fato, conseguiu nos provar sua resiliência, admirável por conseguir suportar horas de tortura e perdas. Infelizmente, o preço pago foi muito alto, a aproximação àquele que tanto nos causa repúdio.

O’Malley, para mim, foi a personificação do turbilhão de sentimentos que o episódio transmitiu. Incomodado com a postura de Bailey, ele assume o papel passivo, pouco emotivo ou empático, e no decorrer da situação passa a sentir o drama da amiga e sai em sua defesa primeiro com Turker, despejando todo o repúdio que sentimos do Shane (Gale Harold) depois, o paramédico nazista com uma suástica no abdômen. Em poucas palavras George nos representa:

“Uma mulher negra salvou sua vida e teve que pagar caro em sua vida pessoal. Na próxima vez que estiver olhando sua tatuagem e pensando como os homens brancos são melhores que todo mundo, lembre-se disso. Porque, aqui entre nós? Se eu estivesse sozinho naquela sala de operação, é provável que estivesse morto. E já que falamos de nossos sistemas de valores, eu acredito que, se estivesse morto, o mundo seria melhor.”

A apresentação da figura de Shane é progressiva ao longo dos dois episódios. Na primeira cena em que aparece o homem havia acabado de sofrer um acidente com sua companheira de trabalho, Mary, que é uma mulher negra. Desde o início ele recusa ser imobilizado por Bailey, porém esta postura não nos parece agressiva, mas sim a de um homem que conhece a gravidade de sua lesão. Então ele é encaminhado para dentro do hospital e pede para ser atendido por um médico homem e, nesta hora, Miranda responde de forma brilhante “minhas mãos podem ser menores que as de um homem, porém meu cérebro é maior”. Dr. Webber (James Pickens) chega para examiná-lo e Shane recusa seu atendimento e é neste momento percebemos que se trata de uma atitude racista. Diante do choque e da raiva evidente no olhar de Webber, este recusa atendê-lo e pede à Bailey que resolva a questão. Quando Dra. Yang vai examiná-lo temos o grande choque: a imagem da suástica finalmente é revelada. Shane tenta minimizar sua atitude falando que sua tatuagem poderia ser má interpretada e que foi uma atitude de jovem embriagado, mas quando questionado se era um arrependimento este fica sem resposta. Ao final do episódio dez é que este de fato se revela e ele afirma para O’Malley que tudo bem trabalhar com Mary, o seu problema seria se ela desejasse casar com seu irmão.

Uma das atitudes que mais me impacta em Shane não é a suástica. Atitudes extremas desta forma são mais raras de presenciarmos, então é fácil alguém falar: “É um extremista ‘babaca’, ele é uma exceção”.  O paramédico, porém, escancara o preconceito como de fato é, quando afirma que ele não é diferente da maioria das pessoas que conhecemos. Infelizmente ele tem razão. É fácil declararmos que Shane é um racista, preconceituoso diante da situação descrita ao longo deste texto, mas se este paramédico fosse nos apresentado antes dessa situação? Se nós víssemos um homem que trabalha com uma negra diariamente, conversa com ela coisas banais do cotidiano. Namora ou é casado com outra mulher, que é branca e diz que isso é gosto. Que quando marca um médico escolhe os arianos, mas relata que é por preferência do profissional e não por causa de sua cor.

Quando alguém questiona se ele é racista sua fala é “até parece, eu trabalho todos os dias salvando vidas do lado de uma negra, você acha que eu sou racista?”. Será que seria fácil afirmar que ele é esse homem que descrevemos no texto se não estivesse carimbado em seu corpo seu repúdio ao negro? A resposta é não. Não seria fácil, muitos nem perceberiam, outros até defenderiam. É este o preconceito que o negro vive hoje. Eles não são mais colocados em campos de concentração, eles, na maioria das vezes, não são escravizados. Eles têm o direito de circular, trabalhar e conversar com os brancos, mas não peça para que eles ocupem espaços de poder, não tente imaginar que será bem vindo como membro da minha família, não ouse se comportar como um branco, pois suas atitudes serão vigiadas o tempo inteiro e se cometer um deslize, todos vão compreender que sua atitude foi inapropriada e não que está sendo vítima de preconceito. Esta é a triste e cruel realidade que o negro vive hoje em dia. Uma realidade em que todo o tempo é preciso afirmar o quanto são ótimos, o quanto são excepcionais, porque se forem somente bons, isso nunca será o suficiente. E mesmo que provem isso, muitas vezes não serão aceitos.

Renata Bessa Andrade é brasiliense, psicóloga clínica, apaixonada pela diversidade humana. Viciada em Netflix e que luta diariamente para conseguir não “maratonar” suas séries favoritas em um só dia.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!
** A arte do banner é de autoria da artista Raquel Gouvea.

1 comentário

  1. Estranho não comentarem o episódio em que um médico foi a o México e “comeu uma maçã sem lavar” e acabou com vermes no cérebro! E um outro bem mais recente em que a menina visitou o Brasil com o pai e também acabou muito doente…essas situações são recorrentes em séries americanas. Parece que para eles, abaixo da linha do Equador, só há gente e lugares muito sujos. Isso é PRECONCEITO!!!

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