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(DON’T) Bury your Gays: o terror em Fear Street

Quando se trata de representatividade, o gênero terror nunca foi referência imediata da comunidade LGBTQIA+ visto que as produções famosamente usam suas narrativas sangrentas para justificar cenas de violência gratuita para com esse público, além de usar de uma já batida dualidade: ou os retrata como vítimas puras e descartáveis ou vilões sem nenhuma emoção ou história. Fear Street, trilogia da Netflix baseada na série de livros de mesmo nome de R. L. Stine, nos dá a chance de ver não apenas uma história com representatividade, mas de acompanhar personagens LGBTQIA+ sendo heróis de suas próprias jornadas dentro de uma narrativa que nos mata sem dó. A trilogia também é a oportunidade de provar que é possível reviver grandes clássicos com uma nova abordagem e ainda prestar uma homenagem a esse material.

Atenção: este texto contém spoilers!

Rua do Medo inicia como um slasher, sem ter medo da quantidade de sangue explícito ou das brutalidades que resultam em mais vítimas a cada minuto da série, porém se desenvolve em algo maior ao explorar o seu universo e suas narrativas, transformando os mais banais personagens em indivíduos tridimensionais que causam ao telespectador reações verdadeiras e sentimentais. Por todos esses motivos, a trilogia também virou alvo de amantes de terror, que prezam pelas características sangrentas e gratuitas, mas também por personagens desenvolvidos como um todo.

A trilogia Fear Street, Rua do Medo em português, centra duas cidades como seu cenário narrativo, Sunnyvale e Shadyside, onde a primeira prospera em todos os aspectos, enquanto a outra concentra histórias tenebrosas e tem seus moradores fadados ao fracasso. Localizadas uma ao lado da outra em uma área que antigamente abrigava apenas uma cidade, é difícil entender o motivo pelo qual Sunnyvale e Shadyside são tão distantes e diferentes uma da outra.

A explicação vem por meio da lenda de Sarah Fier, uma jovem acusada de bruxaria no ano de 1666. Antes de ser morta por enforcamento, Sarah jurou vingança a todos que lhe fizeram mal. A partir de então, a cada período de tempo um assassino em massa surge em Shadyside sem motivo aparente, deixando um rastro de vítimas, medo e sofrimento nos moradores da cidade.

Em Rua do Medo: 1994 – Parte 1, Deena (Kiana Madeira) é uma adolescente que está passando pelas fases de um término com sua ex-namorada Sam (Olivia Welch), que se muda para Sunnyvale após o divórcio de seus pais e começa a namorar Peter (Jeremy Ford). Na noite em que acontece uma vigília para a mais recente vítima de Shadyside (que todos, menos Deena, acreditam ser mais uma vítima de Sarah Fier), jovens de ambas as cidades se envolvem em uma confusão, fazendo com que o namorado de Sam persiga Deena e seu irmão Josh (Benjamin Flores Jr.), o que resulta em um acidente de carro.

No momento do acidente, Sam cai na estrada e tem uma visão de Sarah Fier que ela não consegue explicar. Na noite seguinte, Deena e seus amigos se sentem vigiados pelo o que eles acham que é um grupo de Sunnyvale, mas que depois descobrem serem assombrações dos antigos assassinos de Shadyside em busca de Sam, que perturbou a alma de Sarah Fier na noite anterior ao cair no exato lugar em que seu corpo estava enterrado. Deena, que tem as características de quem não leva desaforo para casa, decide não apenas salvar a menina que ela gosta, mas acabar de uma vez por todas com a maldição de Sarah Fier.

Apesar das produções modernas, é quase impossível contar histórias de terror sem falar sobre sexualidade e as características codificadas dos maiores personagens no gênero que se relacionam de alguma forma com a homossexualidade, especulativamente ligada aos seus criadores. Histórias como Carmilla, Drácula, O Castelo de Otranto e até Frankenstein, possuem subtextos gays que na época tiveram que ser disfarçados ou simplesmente não podiam ser expressos conforme os desejos de seus autores. Essas características seguiram para o cinema junto com as adaptações desses grandes clássicos, porém se tornou cada vez mais difícil de identificar e criar histórias LGBTQIA+ devido ao Código Hays, normas morais organizadas pelos maiores estúdios estadunidenses em 1930 junto com um líder presbiteriano com o objetivo de censurar as produções cinematográficas para criar uma boa imagem de Hollywood, que estava rodeada de escândalos nos anos 1920.

“Pessoas queer se tornaram muito boas em esconder histórias queer em filmes subversivos como o gênero de terror, o que faz sentido considerando como muitas pessoas queer na vida real tiveram que ficar boas em esconder suas próprias identidades. Pelo contrário, aqueles que se recusam em ver uma história queer a menos que tenha uma voz gritante dizendo “ISSO É GAY” apenas prova que se alguém cresceu sempre se vendo e vendo suas histórias representadas nas telas, eles nunca precisaram desenvolver a habilidade de criar headcanon que se identificassem.”

(BJ Colangelo, The history of horror is gay)

Com o Código Hays, que ficou em vigência até 1968, não apenas narrativas LGBTQIA+ foram impedidas de serem contadas e normalizadas na cinematografia, assim como a narrativa de pessoas negras. No terror, percebemos até hoje suas consequências ao vermos essas narrativas não serem representadas e, quando estão presentes na tela, serem utilizadas como instrumento de choque sem nenhuma dimensão para ser explorada. É por causa de todo esse histórico que quando somos apresentados para uma série inteira sobre uma adolescente não-branca, sáfica e que não morre no final entendemos como isso é um marco importante.

Com relação aos livros em que os filmes são inspirados, escrito pelo mesmo autor da série Goosebumps, R. L. Stine, que escreveu mais de 55 livros sobre o universo de Rua do Medo, a recente trilogia, embora não seja uma adaptação direta dos livros, busca na mesma série sua inspiração. Com o primeiro livro lançado em 1989, o próprio autor confessa não haver em suas tramas muita diversidade — o que não impediu que as versões recentes de Fear Street fossem adaptadas para um contexto envolvendo personagens múltiplos e voltados para a narrativa de pessoas LGBTQIA+. Isso reforça o fato de que uma adaptação não precisa ser fielmente baseada em seu material base, mas que pode ser aprimorada e chegar, assim, a novos fãs.

Voltando à trilogia, quando Deena e Josh descobrem a existência de C. Berman (Gillian Jacobs), a única sobrevivente do Massacre do Acampamento Nightwing em 1978, eles se convencem de que podem salvar Sam se a matarem e ressuscitarem. Porém, logo eles ficam sabendo que não há como escapar da bruxa e sua maldição e Sam desperta possuída pelo espírito de Sarah Fier. Rua do Medo: 1978 – Parte 2 conta sobre o grande Massacre do Acampamento Nightwing. Ziggy (Sadie Sink), em seu último ano de campista, é atormentada pelos outros campistas enquanto permanece presa em seu próprio mundo, incompreendida, e tem uma relação confusa com sua irmã Cindy (Emily Rudd), que é monitora do acampamento.

Conseguimos acompanhar nesse momento um outro tipo de relacionamento, o relacionamento entre irmãs e como as duas, ambas adolescentes mas em períodos diferentes de suas vidas, lidam com o mundo ao seu redor. Ziggy é rebelde e não faz esforço nenhum para tentar se colocar em alguma caixa para ser aceita, enquanto Cindy, que entendemos que um dia foi rebelde, começa a se adequar dentro das normas sociais e se força a manter uma imagem de boa moça, recatada e do lar.

Diferente de 1994 e do relacionamento entre Deena e Sam, há uma codificação de quem é Cindy em contraste com quem ela foi e do que ela está fugindo. É possível fazermos uma comparação entre Cindy e Sam, duas personagens que não se sentem confortáveis sendo quem são, que ainda estão se descobrindo e entendendo quem devem ser dentro da nossa sociedade. Quando Cindy está presa no subsolo com Alice (Ryan Simpkins), sua ex-melhor amiga, desconfiamos se não houve nada a mais entre elas pela forma como Cindy tenta escapar da presença de Alice e pela forma como há coisas que Cindy não consegue articular em palavras sobre porque ela largou tudo o que ela era e se tornou quase uma nova pessoa.

Em 1978 não há indicação de que Cindy ou Alice sejam gays (apesar dos próprios atores do filme acharem que sim), porém podemos facilmente entender como os escritores da trilogia usaram da codificação queer como uma ferramenta para retratar os sentimentos das personagens e mostrar a forma como as pessoas lidavam com isso junto com as normas sociais daquela época.

Enquanto o assassino em massa acumula vítimas pelo Acampamento, Ziggy, Cindy e Alice descobrem que o local onde Sarah Fier foi enforcada é o mesmo local onde estão passando suas férias e acreditam que a única forma de acabar com a maldição é levando a mão da bruxa, que Cindy e Alice encontraram no subsolo, para a árvore em que ela foi morta. Porém, no meio da operação, Ziggy e Cindy são assassinadas. Minutos depois de morrer, Ziggy é ressuscitada por Nick Goode (Ted Sutherland), morador de Sunnyvale com quem tinha uma paquera, se tornando então a única sobrevivente da maldição de Sarah Fier.

Deena e seu irmão Josh, ouvindo toda a história de Ziggy/C. Berman, percebem que eles conseguem realmente acabar com a maldição ao reunir a mão da bruxa com o seu corpo, que Sam encontrou. Quando eles estão levando a mão de Sarah Fier para o local onde seu corpo foi enterrado, Deena sangra pelo nariz e assim que a gota de sangue toca o corpo ela se transporta para 1666, onde ela é Sarah Fier.

A última peça da trilogia é diferente das anteriores, não sendo o slasher sangrento que esperamos e estamos acostumados ao chegar nesse ponto da história. Rua do Medo: 1666 – Parte 3 vem para dar um desfecho não apenas à história desses jovens, mas para entendermos quem é Sarah Fier e porquê ela amaldiçoou toda uma cidade como Shadyside para ser eternamente o berço do fracasso. Para contar a sua história, todos os personagens dos outros dois filmes estão de volta como personagens que tiveram alguma culpa, ou foram complacentes, com a vida e morte da famosa bruxa.

Sarah Fier (Kiana Madeira) é uma jovem que mora com o seu pai e está quase comprometida com Solomon (Ashley Zuckerman), um homem mais velho porém seu confidente. Depois de uma noite se divertindo com seus amigos, Sarah e Hannah (Olivia Welch), filha do pastor da comunidade, trocam carinhos e promessas de seus sentimentos e amor. Quando, no outro dia, a comunidade acorda com seus recursos escassos e estragados, Sarah se questiona se não foi ela e seu desejo por Hannah que fez com que Deus punisse a todos. Logo, os moradores iniciam uma caça à bruxa Sarah Fier, que seduziu a filha do pastor e amaldiçoou a cidade.

Quando Sarah descobre a verdade por trás da ruína da cidade, em que Solomon Goode fez um pacto com magia negra para ter prosperidade em sua vida e na de seus descendentes às custas dos moradores do lugar, e, em consequência, de Shadyside, Solomon a captura e os moradores a enforcam, mas não sem antes Sarah prometer se vingar da família Goode e acabar com o pacto de uma vez por todas.

O desfecho dessa história nos faz refletir sobre a imagem perpetuada da mulher e de pessoas dentro de minorias sociais que são condenadas sem pensar duas vezes. A imagem de Sarah Fier se tornou, sem ninguém questionar, uma lenda a ser temida, uma bruxa malvada que transforma inocentes em assassinos em massa e deixa trilhas de sangue por uma cidade sem perspectiva nenhuma. A culpabilização de uma mulher por todas as coisas ruins que acontecem não é chocante ou novidade para ninguém, nem ao menos transformar a sua imagem em bruxa, sendo o termo usado facilmente para mulheres que se destacavam e se negavam a ceder a norma ou padrão de sua época.

A trilogia tem um propósito interessante de subverter os clichês impostos para esses personagens marginalizados dentro do gênero. Aqui, o clichê de Final Girl, que é aquela personagem feminina, branca, hétero, inocente e virgem que sobrevive aos ataques do monstro por ser mais pura do que as outras vítimas, é totalmente descartado fazendo com que as nossas garotas finais sejam um casal de meninas sáficas, um adolescente negro e uma mulher que passou por diversos traumas e sofrimento ao lidar com o assassinato de sua irmã. Rua do Medo também inverte a narrativa do clichê bury your gays (enterre seus gays, em tradução livre), não apenas salvando esses personagens, mas também dando um sentido para a morte daqueles que foram vítimas e colocando esses sobreviventes como heróis da história. A morte de Sarah Fier não foi em vão, assim como a morte de Alice e o sacrifício de Cindy para salvar sua irmã também não foram — elas são ferramentas para tridimensionar a narrativa e levar Deena para a conclusão de sua história.

Ao inverter os papéis desses clichês conseguimos entender e nos confortar com uma das mensagens que a trilogia passa. Pessoas marginalizadas, que foram suas vidas inteiras colocadas como inferiores, podem ser os heróis de suas histórias. Não foi coincidência que Sarah Fier foi atrás de Sam, Deena e até Ziggy para que elas pudessem ir em busca da verdade e lhe ajudar, visto que todas são personagens que saem da norma e ainda estão descobrindo quem são, qual rótulo lhe faz bem, quem elas querem ser dali alguns anos. E é essa corrente de identificação que quebra a linha do tempo e que faz com que Deena encontre a coragem necessária para desmascarar a família Goode e o seu pacto com magia negra, salvando sua namorada e também a sua cidade da maldição. Deena se fortalece da história de quem veio antes dela para que ela possa vencer em nome daqueles que lhe abriram o caminho.

Phil Graziadei e Leigh Janiak, criadores, roteiristas e, no caso da última, diretora da trilogia, queriam justamente isso: questionar um gênero cinematográfico que não explora suas personagens LGBTQIA+ e objetifica mulheres em estereótipos poucos realistas. Construir a narrativa de Rua do Medo em torno de Shadyside, que faz alusão às pessoas marginalizadas e ditas inferiores, e tratar sobre o trauma geracional e o ciclo infinito dessas consequências em nome de uma norma ou padrão social faz com que a trilogia seja mais do que um slasher adolescente ou apenas um filme de terror, mas sim em uma afirmação de que temos que mudar o status quo.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!