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Jane Fonda e o ativismo: um lado pouco conhecido

Jane Fonda, a mulher que conseguiu parar o tempo no rosto e no corpo. Uma rápida pesquisa pelo YouTube com as palavras Jane Fonda e L’oreal mostra algumas peças publicitárias com a atriz, nas quais ela declara que no momento em que coloca o produto no rosto, a idade simplesmente desaparece. Outra pesquisa rápida na mesma ferramenta mostra seus famosos vídeos de ginástica em que ela ensina a ter um corpo perfeito e saudável em casa.

Também temos a Jane Fonda, símbolo sexual do filme Barbarella. Essa Jane atua como um complemento à Jane atual, afinal de contas, para manter o posto, ela deve cuidar da aparência, não? Nem que para isso ela desenvolvesse bulimia, doença que a acompanhou durante a vida inteira. A questão é que, em nenhum momento, as duas Janes conversam com outra Jane, muito mais importante e muito menos conhecida: a ativista. Estamos falando sobre a mesma pessoa? Para muitos, parece inconcebível que uma mulher tão bonita possa ter tido uma participação tão ativa na oposição à Guerra do Vietnã, chegando a ser grampeada pelo FBI.

A Jane-Hanói, alcunha pejorativa recebida por causa de sua oposição ao Vietnã, ainda está soterrada pela Jane do corpo perfeito, e não há coincidência nisso. É mais fácil falarmos da aparência de uma mulher do que sobre sua coragem de ir a um país em guerra e se opor abertamente ao conflito que até hoje é uma ferida aberta no coração dos estadunidenses.

Jane cresceu cercada de expectativas, já que era filha de Henry Fonda, grande ator da década de 40 e 50. Foi durante a infância que ela desenvolveu o que chama em sua autobiografia, Minha Vida Até Agora, de “cavaleira solitária”, ou seja, aprendeu a sufocar suas emoções e se mostrar sempre forte. Isso porque Henry via a fraqueza como algo a ser evitado a qualquer custo. Demonstrar emoções não era com ele, e ele esperava que os filhos fizessem o mesmo. Foi ali que Jane começou a desenvolver o que é introjetado em muitas mulheres: a necessidade de agradar. Sua mãe, Frances Fonda, não tinha sido bem-sucedida nesta tarefa, desenvolvendo inúmeros problemas mentais que levaram a seu suicídio quando a atriz ainda era criança. Sem querer, Jane desenvolveu um sentimento de ódio pela mãe, pois ela representava tudo aquilo a que seu pai odiava: a fraqueza e a falta de traquejo social. Essa ferida só foi curada muitos anos depois, quando Jane conseguiu perdoar a mãe, pois conseguiu compreender que Frances, como muitas de nós, era mais uma vítima do patriarcado e das expectativas que nos são impostas enquanto mulheres.

A cavaleira solitária atravessou a infância e chegou à adolescência já com o distúrbio alimentar que a acompanhou durante boa parte da vida: a bulimia. Ela se sentia deslocada e feia. Chega a parecer irônico a escolha por uma profissão que exige tanto da aparência física quanto a de atriz. Jane começou a carreira nos anos 60, e sua primeira experiência no cinema, Até os Fortes Vacilam, foi traumatizante. Quando chegou ao estúdio para gravar, os produtores quiseram recauchutar toda a sua aparência, recomendaram uma cirurgia plástica no nariz e próteses de silicone nos seios:

“Minha experiência em Tall Story [Até os Fortes Vacilam] acionou todos os meus botões de insegurança. Eu parecia estar indo bem. Amigos que estiveram comigo durante aquele período podem ficar chocados ao ler como eu estava me sentindo. Mas por outro lado eu sempre pareço estar bem. Eu sei me virar.”

Foi com Barbarella que Jane estourou de verdade. De adolescente agitadora de pompons, ela se transformou em um dos maiores símbolos sexuais dos anos 60. Foi uma época ainda mais difícil; ela sofreu durante as gravações do filme, em particular porque parecia ser vista por um único motivo: um corpo, c’est tout. Neste período, a atriz já vivia na França e foi essa experiência que começou a mudar tudo o que conhecia sobre si e o mundo.

Na França, ela começou a frequentar o círculo de atores como Simone Signoret e Yves Montant, pessoas envolvidas ativamente em questões sociais. As conversas com Simone sobre seu país natal a fizeram refletir sobre privilégios e seu lugar no mundo. O Vietnã, um dos assuntos sobre os quais mais conversavam, fizeram Jane perceber sobre como estava alienada para aquela questão. O que ela estava fazendo para denunciar os abusos da guerra? Por que ninguém dizia nada a respeito? Já não era hora de levar as tropas para casa? Jane decidiu voltar para os Estados Unidos e fazer algo a respeito, o que mudaria toda a sua trajetória.

Seu envolvimento com a Guerra do Vietnã começou ainda na França, quando a atriz conheceu alguns integrantes do GI, movimento de soldados estadunidenses que estavam alistados, mas se opunham à guerra. O plano de Jane era visitar as GI coffeehouses e conversas com os soldados. A atriz mergulhou fundo no assunto, inclusive estudando leis militares. Jane queria estar a par de tudo que envolvesse a guerra.

Logo na primeira reunião com os GI, Jane experimentou a emoção incomparável de ouvir o que os soldados tinham a dizer sobre a guerra. Ao final, um deles tomou seu braço e lhe disse que matara um jovem. O homem não conseguia falar. Era aquilo que o país estava fazendo em nome de um suposto abafamento do comunismo. Cegos pela própria verdade, os EUA não conseguiam mensurar os danos causados aos vietnamitas. Eles só queriam envenenar a água dos cidadãos e usar o gás laranja.

A imprensa, no entanto, não gostou da nova Jane Fonda — de cabelos curtos e que, em toda entrevista, comentava sobre a guerra. A superexposição que sofreu encontra ecos até hoje, pois é comum ver estadunidenses chamando-a de traidora ou “Jane Hanói”. Quando a chamam de traidora, é impossível não pensar na ironia da expressão: Jane não estava traindo seu povo; estava traindo aquilo que era esperado dela enquanto símbolo sexual. Ela não queria estar mais associada à Barbarella, e lutou duro por isso. Todos os seus papéis durante a década de 1970, especialmente Amargo Regresso, demonstram o desejo de ser vista como ser humano e não um pedaço de carne — um ser humano tinha algo a dizer e merecia ser ouvido. Em sua autobiografia, Jane lamenta a postura tão agressiva, mas isso só demonstra como a sociedade não está acostumada com a agressividade de uma mulher. Toda vez que levantamos a voz para defender um ponto, alguém nos censura, porque essa não é a postura esperada de uma mulher.

Antes da famosa viagem ao Vietnã, Jane fez um tour pelos Estados Unidos, dando palestras sobre a guerra em universidades. Foi uma experiência marcante para ela, e a primeira em que se declarou feminista publicamente, embora naquela época não entendesse o que realmente significava a palavra. Era mais fácil lutar pelos direitos civis, ser contra a guerra, do que se questionar enquanto mulher. Se essas são feitas para agradar, serem bonitas, estar em casa, quem era Jane e onde ela estava? Viajando pelos Estados Unidos e longe da filha, Vanessa.

E então Jane foi convidada a ir a Hanói, zona de guerra no Vietnã. Ela não seria a primeira estadunidense a pisar lá — cerca de 200 já haviam feito o mesmo com o intuito de reportar o que acontecia. Biólogos, médicos e grupos de paz faziam parte desse contingente. Jane, no entanto, foi a única artista a estar em um front de guerra. E isso pode nos dar pistas obre o ódio que os norte-americanos nutrem por ela até hoje.

Em Hanói, Jane pôde ver de perto as mazelas de uma guerra na qual não acreditava. Em um dos relatos mais emocionantes de Minha Vida Até Agora, ela conta sobre o dia em que teve que se enfiar em um buraco junto a uma menina vietnamita para se proteger das bombas. As duas não falavam o mesmo idioma, mas se entendiam através do olhar, do sentimento de medo que dominava a ambas. A atriz também visitou o Committee for Denunciation of U.S. War Crimes in Vietnam, um comitê que tinha a intenção de mostrar os danos que as armas norte-americanas estavam causando aos vietnamitas. Lá era possível ver uma bomba mãe no chão, que disparava minibombas que primeiro furavam o peito da pessoa para depois explodirem dentro dela. Coronel Lau, o guia de Jane pelo comitê, relatou que o governo de Richard Nixon estava refinando as armas de guerra. Elas estavam se tornando tão sofisticadas que algumas expandiam ao entrar na pele da vítima, reduzindo a chance de sobrevivência.

É claro que o governo estadunidense começou a não gostar de Jane Fonda incitando a oposição à guerra. Não demorou muito para que o FBI começasse uma investigação sobre ela, com direito à espionagem sobre o que Jane dizia durante as reuniões com estudantes em universidades. Mas o que tornou sua viagem à Hanói tão controversa foi um discurso que ela realizou na rádio da cidade, no qual, segundo seus críticos, ela teria incitados os soldados norte-americanos a desertarem, o que teria feito com que fossem torturados por seus superiores. A tortura, no entanto, estava banida dos campos do Vietnã do Norte desde 1969, ou seja, isso não poderia ter acontecido pois a viagem de Jane acontecera após a implementação da regra.

É mais fácil, infelizmente, celebrar uma mulher por sua beleza que por suas ações. Ao viajar para o outro lado do mundo com o intuito de denunciar a guerra, Jane ultrapassou as fronteiras permitidas. Bela, recatada e do lar, é assim que eles nos querem. Bela, politizada e da luta não é como devemos ser. Especialmente vindo de uma atriz considerada símbolo sexual. Até hoje, ainda celebramos apenas a beleza de Jane Fonda.

Não olhamos em Grace and Frankie para seu corpo envelhecido pelo tempo, pensando que ela carrega as marcas da viagem à Hanói, da guerra, marcas de quem viu a morte de perto. Pensamos que ela parece mais jovem do que realmente é, mas não estamos dispostos a ouvir o que ela tem a dizer. Mas Jane estava lá. E estava na marcha em Washington contra Donald Trump. Quando decidiu falar sobre o estupro que sofreu na infância, foi silenciada por uma sociedade que não se importa. Que não se importa se ela foi para o Vietnã, se lutou pelos direitos de civis e de mulheres. Todas essas narrativas são afogadas em um mar de misoginia. Não estamos acostumados a chamar mulheres de heroínas.

Jane Fonda é uma heroína e não há quem me convença do contrário.


Nesta semana da mulher, de 1º a 8 de março, portais nerds feministas se juntaram em uma ação coletiva — Ação Nerd Feminista — para discutir de temas pertinentes à data e à cultura pop, trazendo análises, resenhas, entrevistas e críticas que tragam novas e instigantes reflexões e visões. São eles: Collant Sem Decote, Delirium Nerd, Momentum Saga, Nó de Oito, Preta, Nerd & Burning Hell, Prosa Livre, Valkirias, Psicologia&CulturaPop. #WeCanNerdIt