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Catherine, the Great: “amor é o que sobra de nós depois que tudo se acaba”

Durante os pouco mais de trinta anos em que esteve no poder, Catarina II, a Grande, presenciou um dos períodos mais conturbados da história da Rússia. Nascida Sophie Friederike Auguste von Anhalt-Zerbst-Dornburg, Catarina ascendeu ao trono russo em 1762, após o golpe militar que depôs seu marido, o então tsar Pedro III, um homem detestado tanto pela nobreza quanto pela classe trabalhadora e uma ameaça em particular à imperatriz. O poder, contudo, apenas lhe apresentaria uma nova faceta da vida na corte, do jogo político e dos desafios impostos a ela — não apenas pelas funções que lhe eram atribuídas (embora essas também a colocassem em constante perigo), mas principalmente por sua condição de mulher, e uma mulher com tamanho poder nas mãos.

Ao longo do seu reinado, Catarina implementou algumas das mudanças que transformariam a Rússia em um dos impérios mais prósperos e poderosos da Europa, inaugurando a época que, mais tarde, seria conhecida como a Era de Ouro do país — da crescente modernização à amplificação do domínio russo, passando pela reforma do ensino, a criação da Frota do Mar Negro e a redução dos poderes da Igreja, a imperatriz foi responsável por alguns dos feitos mais notáveis da história do país —, mas suas conquistas são frequentemente eclipsadas pelos causos de sua vida privada, como a participação (nunca comprovada) no suposto assassinato do marido, a imagem de usurpadora, a conturbada relação com o filho e herdeiro, Paulo I, ou os inúmeros amantes que teve no decorrer da vida. É verdade que Catarina nem sempre foi uma governante exemplar, que seu comportamento e seus privilégios nem sempre estiveram em comum acordo com seus ideais progressistas, que sua personalidade era um tanto difícil, e, ela mesma, uma mulher muito complicada. Mas, ao contrário de outras figuras históricas, são os casos amorosos, e não a relevância histórica, que ganham destaque em sua biografia.

Catherine, the Great, minissérie da HBO lançada no fim de 2019, é uma tentativa de balancear as muitas nuances da história da imperatriz, centralizando-a tanto como líder quanto mulher em um cenário de grande hostilidade. Na prática, porém, a série não é tanto sobre Catarina quanto é sobre o seu relacionamento com Grigóri Potemkin, muito provavelmente o mais famoso de seus amantes, e as muitas camadas de uma relação que não estivera restrita a um mero romance. Catarina e Potemkin foram amantes, mas, mais do que isso, foram parceiros e trabalharam juntos até a morte de Potemkin, em 1791. A série observa essa dinâmica, ora atenta a suas muitas nuances, ora com leveza e desprendimento, mas sempre a partir de uma perspectiva muito romântica — e por vezes, fantasiosa — dos fatos; o que, se não a torna menos interessante, reduz consideravelmente seu potencial (e a presença de nomes como Helen Mirren, tanto no papel da protagonista quanto na produção executiva, e Philip Martin, que assume a direção dos episódios e a produção executiva, apenas reforçam a grandeza do potencial desperdiçado).

Atenção: este texto contém spoilers

Narrada de maneira cronológica, Catherine, the Great acompanha alguns dos eventos mais marcantes do reinado de Catarina (Helen Mirren), como as revoltas que sucederam sua ascensão ao trono (destaque para a revolta de Pugachev, considerada a maior rebelião camponesa já ocorrida em território russo) e as batalhas contra o Império Otomano — eventos que também destacam Potemkin (Jason Clarke) como um exímio líder militar. Embora não percorra em detalhes a frente de batalha, permitindo que as conquistas sejam apreciadas em casa e que questões políticas tenham maior destaque, a chegada de Potemkin parece determinante para o sucesso do reinado de Catarina, e ele, o único capaz de concretizar ambições que antes pareciam limitadas pela influência de Grigóri Orlov (Richard Roxburgh), então amante da imperatriz e também responsável pelo golpe que depôs Pedro III, e de um primeiro-ministro deveras cauteloso.

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Conforme argumenta Victoria Ivleva, historicamente, a legitimidade de Catarina como governante já havia sido bastante prejudicada após a ascensão de Pedro III, que decidiu não nomear Paulo como herdeiro, colocando em dúvida tanto a fidelidade da esposa quanto a verdadeira descendência do menino. Com a deposição e posterior morte de Pedro, essas questões foram apenas substituídas por outras, não menos complicadas em comparação, mas igualmente pautadas por um sexismo intrincado. Ao desviar do que era a norma, Catarina seria tida como uma mulher extremamente falha, não apenas como mulher, e sobretudo mãe, mas também enquanto líder, e o destaque da feminilidade enquanto fraqueza, uma expressão do incômodo causado por sua posição.

A posição delicada, ao mesmo tempo poderosa e vulnerável, era uma prerrogativa condicionada, mantida com o apoio de determinados grupos (o exército, a nobreza, etc.). Às vezes, isso significava dar respaldo aos interesses alheios sem necessariamente fazê-lo em detrimento dos seus, mas porque essa nem sempre fora a regra — e sempre haveria exceções —, também era necessário saber a hora de dar um passo para trás ou deixar que as coisas fluíssem livremente, mantendo, assim, certo equilíbrio. Na série, dois momentos são particularmente significativos nesse aspecto. O primeiro quando, em seu discurso de posse, Catarina sugere o fim da escravidão na Rússia (“é correto um homem rico ser dono de outro ser humano?”, ela pergunta, ignorando as ressalvas de seu primeiro-ministro quanto ao teor progressista do discurso) para uma multidão de nobres que possuíam centenas, talvez milhares de escravos, e que não estavam dispostos a abrir-lhes mão de bom grado, fosse qual fosse a opinião da imperatriz, e é somente ao apelar para o patriotismo (“uma tática que nunca falha”, afirma o primeiro-ministro) que a situação é revertida. O segundo, talvez menos óbvio, mas não por isso menos expressivo, ocorre quando ela decide acatar a decisão do seu conselho de não reivindicar a Crimeia, ao contrário do que sugerira Potemkin, um indício de que ela não se deixaria influenciar por ele, independente da relação que mantinham — o que Potemkin considera uma situação, no mínimo, ultrajante.

Mais habituada ao jogo político, Catarina logo deixa claro ao amante que não necessariamente discordava dele, mas que decisões precisavam ser tomadas com cuidado, em um momento propício, e aquele não era um bom momento para instigar aquela discussão — o que Potemkin compreende, embora não sem alguma resistência, que se apresenta na forma de arroubos públicos de raiva e frustração. Se as mulheres são frequentemente tidas como espalhafatosas e histéricas, Catherine, the Great subverte a regra ao apresentar homens que gritam, esperneiam e causam confusões, sempre à beira de um ataque de nervos, enquanto cabe às mulheres a racionalidade, o agir com sensatez — reserva feita não apenas à Catarina, mas também às coadjuvantes Condessa Praskovya Bruce (Gina McKee) e Princesa Maria (Antonia Clarke) (o que não é uma abordagem inteiramente nova). É uma constante que não se altera, mesmo à medida que o relacionamento entre Catarina e Potemkin evolui, e que se estende a outros personagens do sexo masculino, como os irmãos Orlov, alguns de seus amantes, e seu insuportável herdeiro, Paulo (Joseph Quinn). Catarina flana em meio a esses homens, uma mulher difícil, “que come homens vivos”, como sugere um dos guardas do palácio ainda no primeiro episódio, mas mais sensata e equilibrada que todos eles.

Catherine, the Great

O roteiro de Nigel Williams parece suficientemente consciente dos motivos que fazem Catarina uma figura histórica tão importante e força motriz da modernização russa: das pequenas suposições feitas a seu respeito aos conflitos que se estabelecem, sua força e vitalidade são evidentes, não porque existe poder em suas mãos — o que, é claro, existe —, mas na maneira como o mantém nelas. São características que não se alteram nem mesmo na circunstância de seu relacionamento com Potemkin, que não a torna menos ousada ou intimidadora, ou mesmo mais flexível. Se, em tempo, suas decisões tornam-se favoráveis a ele, é também verdade que nada disso acontece por influência dele, mas porque suas opiniões convergem em direções similares. A teoria de que ela agia em função de seus interesses amorosos, alimentada por muitos membros da corte (todos, desnecessário dizer, homens), também funciona como um vislumbre da mesma narrativa que, anos mais tarde, a reduziria aos homens que estiveram em sua cama. Catherine, the Great se vale desses momentos como uma forma de refutar a imagem da mulher movida pelo romance e pelo sexo, propondo, em contrapartida, uma leitura ligeiramente mais complexa de sua trajetória.

Com efeito, seu maior objetivo consiste em apresentar uma narrativa que se adeque a um contexto muito específico, centralizando uma figura feminina de grande poder. Em essência, seria fácil atribuir o papel a Catarina, a quem a definição cabe por si só. Mas, como afirma Danette Chavez em sua crítica para o The A.V Club, é também verdade que a narrativa jamais parece capaz de se igualar à grandeza da protagonista. Muitos são os acontecimentos que permeiam a vida na corte, desde a morte da primeira esposa de Paulo, Natalia Alexeievna (Georgina Beedle), durante o parto de um bebê que também acaba morto, até os conflitos políticos que detêm a atenção da imperatriz, ou aqueles de origem pessoal — as brigas frequentes com o filho, os desentendimentos com Potemkin, e a relação com o neto, fruto do segundo casamento do filho, etc. —, muitos dos quais também estão relacionados a questões práticas de sucessão e manutenção do poder. Nada, no entanto, parece exercer uma força concreta sobre a narrativa, de modo a tornar os acontecimentos realmente relevantes dentro dela. Diferente de séries como Versailles, The Crown e Victoria, que ficcionalizam acontecimentos históricos atribuindo-lhes o devido valor, mesmo quando suas consequências existem apenas no campo da suposição, Catherine, the Great transfere deliberadamente o foco para a vida pessoal da imperatriz, relegando questões de cunho político ao segundo plano, mas não necessariamente fazendo um trabalho muito melhor com a parcela mais íntima de sua história. Se a regra mais básica do cinema é aquela que diz “mostre, não conte”, a série parece propor um caminho diferente, apenas para comprovar que clichês não se tornam clichês por mero acaso.

É claro que, ao contrário de Versailles, The Crown ou Victoria, Catherine, the Great possui uma estrutura bastante limitada de apenas quatro episódios que, sozinhos, correspondem a um período de mais de trinta anos. Mas, mesmo em seus melhores momentos, a série não parece capaz de alcançar suas próprias expectativas, construindo um retrato que apenas reforça o que muito já se sabe, restando de positivo apenas o olhar que lança sobre uma mulher que mantém uma vida sexual ativa, e permanece confortável com isso, mesmo já mais velha.

No fundo, é justamente a coragem atribuída à protagonista que parece faltar ao resto da produção. Catarina permanece no poder até o fim da vida, resistindo aos muitos conspiradores que adorariam vê-la deposta e morta — incluindo o próprio filho. Seu final, no entanto, é agridoce. Com a morte de Potemkin, a mulher vivaz e dinâmica é substituída por uma mulher amargurada, cética sobre ideais e crenças do passado, nitidamente cansada de sua posição e dos melindres da vida na corte. Em um retorno ao passado, a série revela que Catarina e Potemkin, mais do que amantes e parceiros políticos, haviam se tornado marido e mulher, segredo que permanece com eles até o fim de seus dias. Mas, uma vez findados os dias juntos, não parece haver qualquer razão que a segure à vida. Catarina tem uma morte solitária, não necessariamente sozinha, mas cercada de pessoas que estavam ali muito mais por uma questão de respeito e trabalho do que por amor. Paulo, a única família que lhe resta além do neto, Alexander, parece prestes a dançar sobre o corpo da mãe, mesmo quando sua morte nem sequer havia sido confirmada — uma liberdade do roteiro que é também bastante desnecessária, como se já não fosse óbvio seu desprezo —, sendo o primeiro a reverter suas conquistas e manchar sua reputação. A morte de Catarina também põe fim à possibilidade de ascensão de mulheres ao trono da Rússia, quando Paulo restabeleceu a progenitura masculina — e o único consolo reside no fato de que seu governo não duraria mais de cinco anos, quando foi deposto e morto por um golpe liderado por seu filho. São fatos conhecidos, é verdade, mas que tampouco servem para delinear Catarina com maior precisão ou desvelar os aspectos mais interessantes e controversos de sua trajetória.

Catherine, the Great é uma história de amor. Resta saber quando Catarina deixará de ser apenas uma mulher apaixonada.