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Entre Mulheres, o horror do silêncio

O mundo pelos olhos de uma criança abusada não possui cor ou luz. Tudo torna-se uma maçaroca cinza, sem vida, sem esperança. Sarah Polley constrói seu conto em um terreno infértil, dolorido e escuro. E é reconfortante saber que, finalmente, mulheres podem gritar as histórias de outras mulheres.

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Entre Mulheres não possui técnicas arrojadas e sequer precisa delas. O minimalismo dita o tom do filme, empoderando sua narrativa. Não por acaso, o Writers Guild of America Award, premiação do Sindicato dos Roteiristas, o consagrou como o Melhor Roteiro Adaptado desta temporada. Sua história, baseada no livro homônimo escrito por Miriam Toews, conta fatos ocorridos na pequena colônia boliviana de Manitoba, onde mulheres, incluindo crianças e idosas, eram dopadas com tranquilizantes bovinos e estupradas durante a noite.

Os homens daquela sociedade levavam as mulheres a acreditarem que as mãos que sentiam em seus corpos eram obra do demônio, de fantasmas ou um delírio feminino. Elas só descobrem a verdade quando duas adolescentes, Neitje (Liv McNeil) e Autje (Kate Hallett), presenciam a fuga de um abusador e o obrigam a delatar os demais. Os abusadores são levados, eventualmente, à polícia da cidade, o que leva todos os homens adultos da aldeia a pagar suas fianças, e dão dois dias para que as mulheres decidam entre perdoar seus estupradores ou deixar a colônia. Inconformadas, elas decidem por uma terceira opção: permanecer e lutar. Após uma votação entre as três alternativas, há um empate de votos entre lutar e ir. Então, algumas famílias são eleitas para decidir, entre ambas as opções, o futuro das mulheres daquele lugar.

Entre Mulheres

Os Menonitas, seita ultraconservadora a qual pertence a colônia Manitoba, nasceu na Europa durante a Reforma Protestante, como um galho desta. São extremamente patriarcais e já os vi por diversas vezes quando morava em Corumbá, divisa do Mato Grosso do Sul com a Bolívia. Homens com camisas de flanela xadrez e macacões empoeirados, mulheres tão alvas quanto o leite, tão amedrontadas quanto um coelho frente a uma raposa. Usavam chapéus, meias, mangas longas mesmo no calor insuportável por um capricho masculino. Meninas com 12, 13 anos, grávidas, proibidas de soltarem as mãos de seus predadores. Mulheres obrigadas a procriar com seus primos, tios, pais e irmãos, uma vez que os Menonitas casam-se apenas entre famílias de sua comunidade.

Consultas médicas são realizadas por médicos homens em um único hospital, sempre acompanhadas pelos abusadores. Às mulheres não é permitido falar com ninguém a não ser as pessoas da sua comunidade. Quando há complicações na gravidez e estas precisam parir em um hospital, não podem gritar, nem levantar sua voz para o médico. Me lembro de sentir olhar sobre mim, julgando minhas calças e meus cabelos curtos. Não delas, mas deles: os olhares masculinos eram parte repulsa, parte desejo. Os femininos pediam um velado e hesitante socorro. Elas não sabiam claramente se queriam libertar-se daquela vida, afinal, era a única que conheciam, a única que acreditavam ser possível para ascender ao reino dos céus. Elas sabiam, porém, que seria um alívio não usar mangas e meias em um dia de 40 graus.

Durante a decisão que intitula o filme, cada mulher assume um papel, toma um sentimento para defender. Enquanto Ona (Rooney Mara) prega o amor e a calma, apesar de estar grávida de seu estuprador, Salomé (Claire Foy) evoca a raiva, nada bem vista por aquele povo. Existem, ainda, aquelas obcecadas pela religião que lhes foi imposta. Janz (Frances McDormand) possui uma cicatriz em seu rosto, mostrando sua obediência e submissão frente ao lugar que lhe disseram pertencer. “Faz parte da nossa fé perdoar. Por que não agora?”, ela diz. Seus argumentos falam sobre o reino de Deus, sobre um perdão, como bem citou Ona, pressionado. Não existe verdadeiro perdão quando este lhe é imposto, forçado garganta abaixo. Mariche (Jessie Muckley) acredita que o perdão seja a melhor saída por medo. Tendo sido agredida por seu marido durante todo o casamento, ela foi levada a acreditar que não somente merecia aquele ódio, como provocara o marido para tal. Nem mesmo a violência sofrida por Autje, sua filha, a convenceu de que era hora de deixar aquele lugar.

Onde sequer podiam pensar, elas apenas engoliam as ordens masculinas, sendo marionetes guiadas pela culpa cristã. Seja o cristianismo protestante ou católico, homens usam a religião desde o início para manipular mulheres. Seja virgem para o seu marido, não recuse nada a ele, não seja rebelde ou opinativa. Seu dever como esposa e mulher de Deus deve ser obedecer a ele, ao homem que bocas pecaminosas disseram ser o plano de Deus para você — mesmo que ele a estupre, agrida, xingue, proíba, prenda, aceite tudo calada, pois Deus o preparou para você.

Entre Mulheres

No filme, Salomé grita sobre queimar no inferno e dançar em covas antes de permitir que outro homem satisfaça seus desejos violentos no corpo de sua filha de quatro anos. Assumindo o papel da ira na narrativa, ela vota a favor de enfrentar os homens, como faz logo no prólogo do filme, quando tenta matar um homem com um gancho. Senti raiva em muitos momentos do filme. Entre Mulheres faz com que se queira invadir a tela, sacudir aquelas mulheres e dizer que este Deus que as sentencia a dor não deveria ser adorado. Mas o roteiro verbaliza o ódio por si mesmo. Ele mesmo diz que “se Deus é um Deus vingativo, Ele criou-nos à Sua imagem. Se Deus é onipotente, então porque é que Ele não protegeu as mulheres e meninas desta colônia?”. O debate mostra-se um personagem vivo e inerente à trama: nada aconteceria, não fossem seus exageros (perdoáveis, aliás). Seu prólogo conta que seus eventos acontecem dentro da imaginação feminina — e, neste cenário, uma conversa entre mulheres, finalmente, consegue receber o devido valor.

Entre Mulheres recebeu duas indicações ao Oscar: a Melhor Filme, sendo o único filme dirigido por uma mulher, e a Melhor Roteiro Adaptado, categoria em que sua vitória era óbvia. Ao receber a estatueta de Melhor Roteiro Adaptado, Polley agradeceu à Academia por “não se ofender mortalmente ao ver as palavras ‘mulheres’ e ‘conversando’ tão perto uma da outra”. As atuações da obra, no entanto, deveriam ser melhor celebradas e reconhecidas. Interpretar a vivência delicada de pessoas reais em um cenário sem grandes artifícios, em uma trama que agarra-se unanimemente às atuações, definitivamente não era uma tarefa fácil.

Se o diabo mora nos detalhes, a beleza de Entre Mulheres também está lá: os contos tolos sobre seus cavalos, Ruth e Cheryl, constroem Greta (Sheila McCarthy) como uma covarde, como alguém que busca uma solução sem quaisquer conflitos. Entretanto, as cenas seguintes mostram pequenas manias, como bater sua dentadura contra a madeira. Então, ela conta que o faz pelos dentes serem grandes demais para sua boca enrugada, e percebemos que a prótese deve ser masculina, uma vez que apenas homens deixam a colônia. Finalmente, há a cena em que Greta, em uma camisola ensanguentada, segura os dentes arrancados em uma poça de sangue em suas mãos, uma cena aberta a interpretações. Mesmo que as personagens pareçam planas em um primeiro momento, o roteiro diz o não-dito e as nossas próprias interpretações despertam pena, angústia e carinho pelas personagens, além de uma profunda identificação, que configura a profundidade delas.

Mesmo Salomé, movida pelo seu rancor e ódio, mostra-se capaz de ouvir e entender as escolhas das outras. Mariche, sempre obrigada a uma posição de submissão, grita e impões suas ideias. E mesmo vítima, vitimiza Mejal (Michelle McLeod) com palavras duras. Obrigada a carregar um fardo insuportável, Mejal permanece disposta a lutar contra seus predadores. A jovem Autje fala e é ouvida. Mesmo em discordância, em uma escolha aparentemente impossível, cada uma ouviu a outra e entendeu a realidade da outra. Cada uma sonhou, a sua maneira, com um mundo onde fossem livres para pensar, para viver. Ona disse: “somos mulheres sem voz. Não temos para onde voltar. Até os animais vivem mais seguros que nós. Tudo o que temos são os nossos sonhos”. A mulher devaneia sobre um mundo onde mulheres sejam livres para pensar, ler e escrever. Uma utopia coletiva, onde homens e mulheres tomariam decisões sociais unidos, visando o bem comum a ambos os mundos. Belo, sim, mas ainda uma utopia. Vivemos isso, afinal. Estamos em um mundo onde, em teoria, mulheres pensam, falam, são ouvidas. Por que, então, Entre Mulheres parece tão familiar?

Entre Mulheres

Há, ainda, uma discussão acerca dos homens nesta história. Autje viu o abusador correndo por uma escada puída de madeira. Este delatou os outros. Mariche, porém, prefere dar-se o direito da dúvida: e se os homens presos não forem os culpados? Como bem lembram Ona e Salomé, seus papéis ali não são condenar, tampouco olhar para os seus estupradores com empatia. Mesmo que estes não houvessem culminado o ato, eram, ainda, culpados de sua omissão. Existe uma presença masculina durante o diálogo: August (Ben Whishaw), que fora expulso junto a sua mãe, uma questionadora daquela fé. Voltou, formado, para formar outros rapazes. Está ali para redigir as atas da reunião, uma vez que mulheres não leem ou escrevem. Está ali, sobretudo, pelo amor que sente por Ona. Mesmo em um ambiente hostil, onde mulheres odeiam homens e homens repudiam mulheres, August surge como um respiro, um fio de esperança para ser abraçado. Ama, mesmo onde este amor não é possível.

Existe uma discussão sobre quais meninos deviam ir junto às mulheres. Mesmo violado, Ona confessa o amor pelo feto em seu ventre: ele, afinal, era apenas um menino, como seu abusador fora um dia. Há também o debate sobre a possibilidade de dar aos homens a escolha de irem com elas — e eles iriam, como diz Ona, pois não sobreviveriam sem elas. Há, porém, um momento em que Mariche desabafa sobre as agressões que sofre. Ela nunca teve uma escolha. Os homens nunca deram escolhas a ela ou a sua filha. Por que eles deveriam ter uma?

Filmes se tornaram espetáculos visuais irreais. Efeitos caríssimos estampam as telas em produções que beiram as quatro horas de duração. Sarah Polley faz o caminho inverso: conta sua história fosca e avassaladora em pouco mais de uma hora e meia. Entre Mulheres não possui firulas, excessos ou faltas, pois cumpre o papel ao qual se propõe: mulheres vendo a si mesmas em uma tela. “De onde eu venho, de onde sua mãe vem, não falávamos sobre os nossos corpos. Então, quando algo assim acontecia, não tínhamos linguagem para isso”, conta Autje ao bebê de Ona sobre os eventos daqueles dias. O horror de Entre Mulheres existe naqueles atos horrendos, mas, sobretudo, abriga-se no silêncio. Como uma mulher poderia se reconhecer como uma vítima de abuso quando sequer sabe o que é um abuso?

Não faz muito tempo, uma colega de turma contou como seu marido a impediu de estudar durante os trinta anos de seu casamento. Ela sequer conseguia visitar a mãe. Quando o homem adoeceu, ela o deixou em um abrigo municipal e, finalmente, pode viver a sua vida. Estuda o ensino médio aos 50 anos. Minha mãe completou o colegial em uma idade próxima. Minha vó alçou voo aos seus 74 anos, quando tornou-se viúva: deixou sua casa na pequena cidade onde vivo e nunca mais deixou que suas asas parassem de bater. Mulheres são ensinadas a ter medo do silêncio, medo da solidão. Mulheres sem um marido, um namorado, são mulheres infelizes. Mulheres viúvas perderam seu motivo de viver. Somos insuficientes sozinhas, nos ensinaram. Autje conta ao pequeno bebê como elas tinham 24 horas para decidirem em qual mundo ele nasceria. Só queria que essa decisão não fosse uma mera história de cinema. Que não precisássemos sofrer para sermos ouvidas.

Entre Mulheres recebeu 2 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado.