Lançado em maio de 2019, Tell It to the Bees conta a história de Lydia Weekes (Holly Grainger), uma mulher perturbada por seu casamento fracassado. Quando seu filho, Charlie (Gregor Selkirk), faz amizade com a médica recém-chegada na cidade, a Dra. Jean Markham (Anna Paquin), ela também acaba se aproximando, o que levanta burburinhos maldosos pela vizinhança.
Aviso de gatilho: este texto fala sobre estupro.
Atenção: este texto contém spoilers!
Dirigido por Anna Jankel, o longa é baseado no livro homônimo de Fiona Shaw — que não deve ser confundida com a atriz irlandesa Fiona Shaw — e é contado pela visão de Charlie já adulto. Tell It to the Bees se passa em uma área rural da Escócia nos anos 1950, então o típico preconceito e desinformação da época é de se esperar. Jean acaba de volta à cidade para assumir o consultório de seu pai falecido. Charlie conhece a nova doutora depois de brigar com alguns colegas de escola. Machucado, ele é levado ao consultório de Jean por Annie (Lauren Lyle), sua prima. Ele rapidamente cria uma conexão com ela ao perceber uma escultura de favo de mel em sua mesa de trabalho. Assim como Jean, Charlie também tem uma fascinação especial por abelhas. Ela então o convida para ver as colmeias da criação de abelhas que tem no jardim de sua casa.
Eles criam uma conexão ao redor das colmeias, com Jean ensinando a Charlie tudo o que um dia ela mesma foi ensinada quando criança. “Meu pai costumava dizer: ‘você deve contar seus segredos às abelhas, e elas não voam para longe’”, ela revela em uma cena. Este é um costume antigo na Europa, em que acreditava-se que todos os acontecimentos importantes — como nascimentos, casamentos, partidas e chegadas — deveriam ser contados às abelhas. Se o costume não fosse cumprido, uma punição cairia sobre as pessoas, como a interrupção da produção do mel ou a morte das abelhas — e a morte das abelhas é basicamente o sinônimo da morte da vida. Então é isso que Charlie começa a fazer. Ele se ajoelha perante às caixas de colmeias e confessa suas angústias para as abelhas. “Minha mãe está triste. Eu não sei o que fazer”, ele sussurra.
Sua mãe, Lydia, não vê mais solução para seu casamento e, consequentemente, para sua vida financeira. Seu marido, Robert (Emun Elliott), volta completamente mudado depois de lutar na guerra, e decide ir embora, deixando as despesas da casa sob sua responsabilidade. Ela trabalha como operadora de máquinas em uma fábrica de tecidos, mas não é paga o suficiente para suportar as contas básicas e o aluguel. O dono da casa vem batendo à sua porta há algum tempo, cobrando a dívida e ameaçando o despejo.
Lydia conhece Jean quando encontra os livros que ela deu para Charlie. Por causa da falta de gênero na conjugação do inglês, quando ele diz “the new doctor gave me a present”, ela logo assume que trata-se de um homem. Correndo até a porta do consultório para questionar as intenções do suposto médico, Lydia fica envergonhada ao perceber que, na verdade, o doutor é uma mulher.
Depois disso, Lydia e Jean se tornam cada vez mais próximas, tanto pelo fascínio de Charlie em falar com as abelhas, quanto pela forte ligação que elas sentem uma pela outra. Por mais diferentes que possam ser, ainda são duas mulheres solitárias tentando sobreviver em um mundo que não as compreende e tampouco as acolhe. São em momentos de melancolia e quietude que as atuações dos três atores principais brilham de maneira especial. Grainger com os olhos frequentemente marejados de lágrimas, a tristeza silenciosa na expressão de Paquin e a inocência confusa do pequeno Selkirk.
Quando o inevitável despejo de Lydia e Charlie acontece, mãe e filho acabam acolhidos por Jean. Os três formam algo como uma pequena família. No começo, o relacionamento de Lydia e Jean é de amizade e cumplicidade. Elas conversam sobre a vida, se fazem companhia, aproveitam de piqueniques e dançam junto com Charlie. Mas é perceptível que há algo a mais entre as duas. Mais do que um sentimento fraternal ou a genuína determinação de uma ajudar a outra. Depois de um encontro desagradável com Robert, Lydia e Jean finalmente se entregam aos sentimentos e passam a noite juntas.
É justamente por isso que Robert e sua irmã, Pam (Kate Dickie), desaprovam ainda mais da nova casa de Lydia. Mesmo depois de abandoná-la porque ela deve “aprender a se virar sozinha”, Robert acredita que ainda tem algum poder sobre ela. Ele não gosta que sua ex-esposa e filho morem na casa de Jean, que tem uma má reputação na cidade. Na adolescência, Jean teve um relacionamento com uma garota chamada Rose (Tori Burgees). Quando passeavam pela beira de um lago que havia na cidade, as duas foram atacadas por três rapazes, que estupraram Rose. Os agressores não sofreram maiores consequências, mas Jean ficou mal falada por seu suposto comportamento fora do normal. Por causa disso, seu pai a mandou para longe, mas a cidade jamais esqueceu o envolvimento de Jean com outra mulher. Embora seja a única médica da região e tenha planos para melhorar o sistema de saúde, seus pacientes ainda a tratam com certa hostilidade.
Desde o começo da história, Lydia e Charlie têm um pacto: eles sempre contam a verdade um para o outro. Muito além de não mentir, eles não devem manter segredos. É por isso que Charlie fica tão aborrecido quando vê a mãe na cama de Jean. Desnorteado, ele corre para Robert e conta tudo o que viu, com medo que o mandassem para longe caso o affair de Lydia fosse descoberto pela cidade. Ao menos ele ainda teria o pai. É interessante notar, também, como o estado emocional de Charlie é espelhado pelas abelhas, que se mostram nervosas e agitadas quando ele foge de casa.
O último ato do filme tem duas cenas bastante fortes. Entre um aborto clandestino forçado com procedimentos médicos bastante gráficos e uma tentativa de estupro, Tell It to the Bees migra de um longa relativamente parado para uma história em que a violência vai além de palavras amargas e parte para violações corporais. Embora sejam cenas desconfortáveis de assistir, o contexto de homofobia, misoginia e também de racismo, justificam a presença de tais eventos, que fundamentam a noção de intolerância e inflexibilidade da época, mostrando como o preconceito pode ferir até mesmo quem se ama.
É também no último ato que a história se permite fugir um pouco da realidade e usa da liberdade poética para que Charlie consiga que as abelhas salvem sua mãe de uma agressão. Ele implora que os insetos o ajudem e abre as caixas com as colmeias, fazendo com que um enorme enxame voe diretamente para o quarto onde Lydia é abusada por Robert.
O final do filme não é triste, mas também não é feliz, e a autora do livro, Fiona Shaw, tem um problema em relação a isso. Para o site The Conversation, Shaw escreveu o artigo “My book Tell it to the Bees was made into a film — but they changed the ending for a straight audience“ — traduzido para “Meu livro Tell it to the Bees foi transformado em um filme — mas eles mudaram o final para um público hétero”. No livro, Lydia, Jean e Charlie vão para a Itália e vivem felizes como uma família. No filme, elas vão para caminhos diferentes.
No artigo, Shaw diz compreender que quando se trata de adaptações, a história sempre vai sofrer alterações. Personagens são cortados, acontecimentos são modificados, falas são acrescentadas. Nada novo sob o sol do audiovisual. Mas ela explica o motivo de seu incômodo: quantas personagens lésbicas têm um final que não seja triste? A história que Shaw, uma mulher lésbica, escreveu, tem um final feliz, mas foi alterado por uma diretora heterossexual para ser um fim “agridoce”. Ela também diz como as lésbicas da ficção geralmente cometem suicídio — citando o filme Infâmia, de 1961 —, morrem tragicamente — como na série britânica Last Tango in Halifax —, ou são psicopatas — citando o livro Anotações Sobre Um Escândalo, de Zoë Heller. “Dar às lésbicas um final feliz passou a ser visto como um ato político”, ela diz no artigo.
Não é de hoje que se fala como personagens lésbicas são maltratadas por Hollywood. Talvez o evento catalisador da discussão tenha surgido com a morte de Lexa (Alycia Debnam-Carey), da série The 100, em 2016, que morreu por causa de uma bala perdida minutos depois de ter consumado sua relação com Clarke (Eliza Taylor). As redes sociais foram tomadas por críticas de fãs desapontados com o desfecho de uma personagem tão forte e promissora. No mesmo ano, Poussey Washington (Samira Wiley), de Orange Is The New Black, e Denise Cloyd (Merritt Wever), de The Walking Dead, também morreram. Três personagens lésbicas brutalmente assassinadas em apenas alguns meses. Foi também em 2016 que o tropo “bury your gays” (“enterre seus gays”, em tradução livre) ficou ainda mais popular.
Apesar da violência presente em Tell It to the Bees, ninguém morre no filme, e o desfecho da história pode até mesmo ser considerado bonito e sensível, mas não foi isso que Fiona Shaw, em seu lugar de fala, escreveu. “Eu não sou apaixonada pelo final. O tom agridoce é o final de uma pessoa hétero. Eu queria que o meu casal […] tivesse, para variar, um final completamente romântico e completamente feliz e, portanto — no contexto de ficção lésbica —, um final mais radical”.
Tell It to the Bees é um belo filme de atuações poderosas, com uma história tocante sobre como atitudes de preconceito e ignorância podem criar uma violência crescente. É um enredo delicado que retrata a dura realidade ao mesmo tempo em que se permite brincar com elementos fantasiosos e esperançosos. É inevitável, porém, não sentir uma leve decepção em relação ao final, ainda mais sabendo que o desfecho agridoce é, originalmente, apenas doce.
Seu texto é maravilhoso, assim como a forma que você expôs sua opinião. Parabéns!
POXA vida não acredito que elas não ficaram juntas no final. Esse filme é MARAVILHOSO, SENSACIONAL só peca nisso. ;'( — lágrimas
Eu fiquei só a revolta no final do filme, agora que descobri que o final do livro é diferente, tô mais revoltada ainda
Relato muito bacana do filme. Autodescrição super simpática e provocativa. Show!
Texto lindo, parabéns! Eu ja havia lido algo sobre terem mudado o final no filme (que gostei no geral mas detestei o final…), mas não sabia do artigo da autora por exemplo. Me deu mais vontade ainda de comprar o livro.