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Zoey’s Extraordinary Playlist: estamos todos cantando por dentro

Sabe quando você vive uma situação muito específica e pensa que tal música descreve perfeitamente o que você está sentindo no momento? Bom, Austin Winsberg, o criador de Zoey’s Extraordinary Playlist, certamente sabe do que estou falando. A série estadunidense da NBC estreou no início deste ano e é, até agora, uma das poucas surpresas boas de 2020.

Além de ter Lauren Graham no elenco — o que já é motivo suficiente para que eu assista qualquer coisa — Zoey’s Extraordinary Playlist me capturou com um conceito que é uma grande e deliciosa papagaiada. A série é um musical, e a justificativa para as explosões de música e dança é, na mesma medida, absurda, fantasiosa e sensacional. Tudo começa quando Zoey, vivida por Jane Levy, está fazendo uma tomografia e o médico pergunta se ela quer ouvir música, colocando uma playlist pra tocar. No meio do exame, um terremoto causa um bug que faz com que Zoey incorpore toda a biblioteca musical do computador. A partir disso, ela adquire o estranho “superpoder” de ver pessoas cantando e dançando o que estão sentindo. E ela descobre isso assim que sai do consultório médico, andando pelas ruas e testemunhando desconhecidos se expressarem em canções.

A premissa até parece boba, mas, já no piloto, a série sai da caixinha em que guardamos os guilty pleasures e entrega um pacote completo e muito bem feito. A produção tem drama, comédia, romance e, é claro, muitos números musicais coreografados. Logo na primeira sequência musical, temos um gostinho de como serão essas cenas ao longo da temporada: músicas populares, coreografias expressivas e vocais que não são sempre necessariamente impecáveis (mas são excelentes). É quase orgânico, na medida em que um musical pode ser orgânico. Assim, quando Zoey tem o primeiro contato com seus novos poderes ouvindo uma mulher cantar “All By Myself”, de Céline Dion, eu já estava convencida. Minutos depois, quando diversos pedestres e passageiros de transporte público embarcam em uma canção dos Beatles, eu fiquei completamente vendida: presenciar um número musical de “Help” como uma íntima expressão conjunta de pessoas que estão vivendo sua rotina não é um retrato certeiro da sociedade? Tenho certeza que é assim que estamos cantando por dentro.

Enquanto presencia as pessoas cantando (às vezes para ela, às vezes para outras pessoas, ou até para si mesmas), é como se a protagonista estivesse suspensa em uma linha do tempo paralela. Quem canta, não sabe que canta. E ninguém mais, além de Zoey, vê a pessoa cantando. Ao longo da temporada, ela vai entendendo melhor como funcionam os poderes e descobrindo como lidar com eles. Mas, em resumo, todo o conceito é esse: Zoey consegue ver pessoas diversas expressando seus mais profundos sentimentos em forma de música e, quando isso acontece, ela tenta ajudar essas pessoas de alguma forma. A partir dessa premissa, os episódios acompanham a história de Zoey em diferentes esferas da vida: trabalho, romance, amizade e família.

Atenção: este texto contém spoilers!

Trabalho

O ambiente de trabalho de Zoey foi uma escolha bastante acertada para a série. A protagonista trabalha como programadora na Sprq Point, uma empresa de tecnologia que é a caricatura perfeita de qualquer típica startup descolada: o ambiente é todo moderninho, mas os funcionários trabalham noite adentro e vivem sob pressão. Zoey é a única mulher na área de programação no seu andar, todos os outros programadores são homens. Apesar de pincelar com alguns comentários, o tema do machismo no ambiente corporativo não entra em pauta nesta temporada da série, mas tem espaço para se desenvolver no possível futuro.

A outra mulher presente no núcleo de trabalho é Joan (Lauren Graham), a chefe toda-poderosa que gerencia aquele setor da empresa com olhos de águia. Assim como acontece em The Bold Type, Zoey’s Extraordinary Playlist se afasta do clichê da mulher poderosa fria e carrasca, mostrando em Joan uma personagem que também tem suas inseguranças e vulnerabilidades. E que, também, apesar de extremamente dedicada à vida profissional, consegue deixar o recado de que trabalho não é tudo. O desenvolvimento de Joan é gradual, e vamos conhecendo um pouco mais dela conforme Zoey se aproxima da chefe. Essa aproximação está bastante ligada ao relacionamento de Joan com o marido, um dos problemas que Zoey descobre graças a seus poderes musicais. É um arco interessante, que mostra uma Joan em sua vida privada que é completamente diferente daquela imagem de força que figura no trabalho. Ver como ela se liberta dessa situação traz bons momentos para a série, incluindo excelentes números musicais estrelados por Lauren Graham.

Outro aspecto importante na esfera do trabalho é o crescimento de Zoey na empresa. Nesses primeiros episódios, acompanhamos enquanto a protagonista disputa e conquista um novo cargo, como ela assume a liderança de seus colegas e todos os desafios que enfrenta para conseguir equilibrar um trabalho que demanda muito de suas energias, com todos os outros problemas e preocupações de sua vida pessoal. É no trabalho que algumas das cenas musicais mais divertidas acontecem. E essas cenas revelam muitas coisas que Zoey jamais saberia sobre seus colegas — outra coisa com a qual ela precisa se preocupar.

Romance

A Sprq Point também é onde está o interesse romântico de Zoey, Simon (John Clarence Stewart), que trabalha no marketing da empresa. A relação de Zoey e Simon é bastante desenvolvida na primeira temporada, indo desde tentativas falhas da protagonista flertando com o crush até uma conexão mais profunda de ambos os lados. Mas, o romance vem com obstáculos, construindo um clima muito próprio de comédia romântica. Um dos obstáculos é o status de relacionamento de Simon, que está noivo de Jessica (India de Beaufort).

O outro obstáculo é Max (Skylar Astin), o melhor amigo de Zoey, que também é um dos programadores na Sprq Point. Em um clichê típico de comédias românticas, Max é apaixonado pela melhor amiga e Zoey descobre isso da única forma possível em uma série musical: ele se declara para ela cantando — sem saber que fez isso, é claro. Ao longo dos episódios, vamos acompanhando esse interesse florescer e, também, como Zoey lida com esses sentimentos.

O triângulo amoroso está formado e é difícil saber em que direção vai seguir. Na primeira temporada, a série nos mostra apenas o começo dessas duas relações possíveis para Zoey e ambas se desenvolvem bem. A impressão que fica é que, em episódios por vir, esse triângulo amoroso vai entrar bastante em evidência e os fãs da série já podem se organizar em times, #TeamSimon ou #TeamMax.

Amizade

O que você faria se descobrisse que seu melhor amigo está apaixonado por você enquanto ele se declara por meio de uma música que só você ouve? E como lidar se uma música te brindasse com a consciência de que seu crush no trabalho está profundamente triste? Zoey não tem que enfrentar tudo isso sozinha, ela conta com o apoio de Mo (Alex Newell).

Uma das grandes mudanças que os recém adquiridos poderes musicais de Zoey trazem em sua via é que, graças a eles, ela começa a se abrir mais e criar laços com outras pessoas. O laço mais marcante é o que faz com seu vizinho, Mo. Embora morem a poucos passos de distância, quando a série começa, Zoey e Mo não são mais do que pessoas que habitam o mesmo prédio e reconhecem a existência uma da outra. Porém, é para Mo que Zoey corre quando se vê confusa com toda a situação maluca de gente cantando para ela sem qualquer razão aparente. Mo ajuda Zoey a entender melhor o que está acontecendo, dá conselhos, escuta desabafos e oferece um apoio sem limites, formando a amizade que é trabalhada mais profundamente nessa primeira leva de episódios.

Mo, como personagem, tem muito a ver com o ator, Alex Newell, que já conhecemos de The Glee Project, reality que buscava novos membros para o elenco de Glee. Apesar de não ter ganhado o reality, Alex entra na série musical de Ryan Murphy como Unique e faz um trabalho impecável. Em Zoey’s, ele continua brilhando. Seus vocais são os mais avançados do elenco, e seu carisma faz de Mo um grande destaque da série. Além disso, Mo é pivô de temas que acrescem muito à trama. Em um episódio, por exemplo, a série nos mostra sua relação com a igreja visto que Mo é gender fluid, se relaciona com homens e se veste de uma forma considerada feminina. Conciliar a totalidade de quem é, com a imagem que passa na igreja, onde canta no coral, é um dilema tratado com delicadeza na produção.

Família (e morte)

É certo que outro grande pilar de Zoey’s Extraordinary Playlist é a família. Mas, mais do que isso, nessa primeira temporada toda a narrativa da família trouxe o tema da morte. Claro, é possível tirar outras coisas do relacionamento de Zoey com sua família, mas é inegável que o grande arco desses 12 episódios foi a lenta despedida de Mitch (Peter Gallagher). Logo no primeiro episódio, descobrimos que Mitch, o pai de Zoey, foi diagnosticado com Paralisia Supranuclear Progressiva e já não consegue mais falar ou se mover. Toda a família faz o possível para oferecer cuidados e qualidade de vida para Mitch, e acompanhamos o sofrimento dos familiares diante da doença.

O desenvolvimento dessa trama é especialmente interessante do ponto de vista da mãe de Zoey, Maggie (Mary Steenburgen), que vive uma espécie de luto antecipado pelo companheiro de tantos anos. A série mostra como Maggie lida com a doença e a ideia da morte do marido navegando por sentimentos muito honestos: tristeza, culpa, exaustão, esperança, desespero, negação. Ela retrata bem dias bons e dias ruins, sem cair no papel da mulher que é unicamente cuidadora. Maggie tem seus próprios interesses e demonstra que também está cansada, que precisa de um tempo para si, mesmo estando devastada com a situação do marido. Situações complexas geram sentimentos complexos, e Zoey’s fez um bom trabalho ao colocar isso na tela.

Gosto de histórias que tratam da morte e gostei da abordagem da série, que é bem sensível, franca e emotiva, sem partir para um drama mais pesado ou uma abordagem mais séria que, de fato, não é a proposta de Zoey’s. As questões levantadas não são inéditas, mas são relevantes. Como lidar com a morte iminente de alguém que amamos? A morte é certa e inevitável, mas como enfrentá-la quando ela está tão perto? É possível se preparar para isso? A história de Mitch é totalmente pessoal para o criador da série, Austin Winsberg, que perdeu seu pai para a Paralisia Supranuclear Progressiva. Segundo Austin, foi essa experiência que o fez começar a escrever o show, e nós, enquanto assistimos, conseguimos perceber que todo o arco de Mitch e a família é desenvolvido com muito cuidado — especialmente o episódio final. O desfecho da trajetória de Mitch é o que fecha a primeira temporada de Zoey’s, e foi uma escolha bastante acertada para a season finale.

Música

Sendo um musical bem feito, como Zoey’s Extraordinary Playlist provou ser, é impossível não destacar os números musicais. A série não tem foco em trazer grandes arranjos, notas inalcançáveis e vozes dignas de um Tony. Mas, é justamente esse tom de simplicidade que deixa o musical mais bem colocado naquele contexto, assim como as coreografias mais expressivas e, digamos, conceituais. Nessa primeira temporada, a produção manteve a playlist com escolhas de músicas populares, facilmente reconhecíveis pelo público. A trilha sonora desfila hits de nomes como Cyndi Lauper, Rolling Stones, Destiny’s Childs, No Doubt, Jonas Brothers, Katy Perry, N’Sync e Miley Cyrus, só para citar alguns.

O mais bacana é que, mesmo tendo um conceito muito bem definido e que se mantém consistente ao longo dos episódios, a série não cai na mesmice de apresentar cenas musicais repetitivas. Tem momentos musicais emocionantes, próprios para arrancar umas lágrimas de quem vê, e tem músicas estrategicamente colocadas para a comédia. Com a evolução da temporada, Zoey’s consegue sempre surpreender — seja com um episódio genial em que Zoey é quem começa a performar seus sentimentos em forma de música ou com a cena em que Max está cantando fora da cabeça de Zoey, em um flash mob real de um hit de Shawn Mendes. Tem também uma cena super emotiva em que uma música é apresentada em ASL, a língua de sinais americana. Ou, ainda, o número final em que todos os personagens cantam trechos da mesma canção em uma sequência muito bem executada.

Apesar das cenas musicais sempre trazerem à tona os sentimentos dos outros personagens, o superpoder de Zoey é muito bem usado para desenvolver a personagem principal. As músicas alheias acabam sempre revelando camadas da protagonista, mostrando seus próprios pensamentos, fazendo-a questionar o que sente e transformando sua forma de se comportar com relação aos outros e consigo mesma. Conhecer alguém enquanto viajamos pelos sentimentos musicados de outras pessoas não poderia ser mais delicioso, e o show acerta muito bem o tom com episódios divertidos e emocionantes.

O futuro de Zoey’s Extraordinary Playlist ainda é incerto. Embora o criador já tenha planejado a segunda temporada e traçado possíveis arcos para cada personagem, até o envio deste texto a NBC ainda não tinha garantido o retorno da série. De minha parte, só posso torcer para uma resposta positiva que nos premie com muito mais desse climinha gostoso de comédia romântica, oportunidades para conhecermos melhor e nos apaixonarmos ainda mais por cada personagem e, claro, uma playlist cada vez mais longa para Zoey.

2 comentários

  1. Nunca comento em artigos, mas maratonei Zoey’s… ontem e amei! Seu texto maravilhoso define bem o que é a série. Inclusive, se não houver a segunda temporada (claro que quero mais!), achei que os episódios são tão bem realizados que não ficam devendo nada. A produção, todos os cenários, as músicas, a interpretação, o texto são um conjunto muito marcante. Não conhecia a atriz principal e gostei muito.
    Obrigada pelo que você escreveu. Eu assisti e depois busquei ler “críticas” da série – grata em ler a sua!

    1. Oi, Ana Paula! Obrigada pelo comentário <3
      Essa série virou um xodó. Tempos depois que esse texto foi publicado, a NBC confirmou a renovação pra segunda temporada. Então, vamos ter mais Zoey's pra maratonar (já tô ansiosa pra ver quais serão as novas músicas)!

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