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Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo: multiverso e drama familiar

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo não poderia ter um título mais pertinente. A história acompanha Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma imigrante chinesa de meia-idade sobrecarregada por problemas na vida pessoal e financeira. Sua lavanderia está à beira da falência, o casamento está prestes a terminar e a relação com o pai (James Hong) e a filha (Stephanie Hsu) está em colapso iminente.

Atenção: este texto contém spoilers!

É nesse cenário caótico, diante de uma papelada de documentos na receita federal, que Evelyn é transportada pela primeira vez para as infinitas versões dela mesma. Um multiverso de possibilidades no qual ela terá de lidar com questões que vão desde existencialismo, metafísica e filosofia até aceitação, decepções, fracassos, sonhos, imigração, vínculos e Kung Fu.

A produção dirigida e roteirizada por Daniel Kwan e Daniel Scheinert (The Daniels) aborda temas complexos de forma simples, num mote já visto antes, mas contado de maneira totalmente inédita. Quiçá, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo  é o melhor filme do ano, com expectativa de abocanhar os principais prêmios da próxima temporada. Um filme sobre o agora, o amanhã e tudo o que poderia ter sido. Mas especialmente, um filme sobre a conexão mãe-filha. Ou a falta dela.

Conflitos em família

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo

Evelyn vive às turras com a filha, Joy, primeira integrante da família a nascer nos Estados Unidos, após a imigração deles. Diferenças geracionais e culturais contornam a tensa relação entre elas, numa dinâmica na qual o que não é dito representa tanto ou mais do que aquilo que é verbalizado. Quando mãe e filha se encontram, um peso de decepção mútua se impõe sobre o afeto que sentem uma pela outra.

Joy quer apresentar a namorada Becky (Tallie Medel) ao avô doente, Gong Gong (James Hong), na festa de Ano Novo Chinês da família. Enquanto isso, Evelyn acha que seria desastroso para o pai saber sobre o relacionamento da neta. Ela insiste para que Joy mantenha sua “estranheza” para si mesma, além de constantemente se referir a Becky como “ele” ao invés de “ela”.

Evelyn claramente desaprova o relacionamento de Joy, mas ainda acha que a filha deveria se considerar sortuda por ter uma mãe “aberta” que a deixa namorar uma garota. “Muito sortuda que sua mãe está aberta para você namorar uma garota”, ela diz. No entanto, Evelyn encara o fato de Joy namorar uma mulher como um fardo que não deve ser colocado sobre os outros. A aceitação que ela oferece a Joy só vai até certo ponto.

Para Joy, ter que esconder uma parte de quem ela é do avô e enfrentar a desaprovação da mãe acaba afetando sua saúde mental. Ela sente que a mãe se envergonha de sua sexualidade e age impulsivamente em resposta. Atitudes que Evelyn considera como manifestações de egoísmo.

Multiverso das tretas

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo

O multiverso é apresentado na trama quando Evelyn, o pai e o marido, Waymond Wang (Key Huy Quan), estão diante da personagem de Deirdre (Jamie Lee Curtis), auditora da Receita Federal que se mostra indiferente ao grande problema que se tornou a situação financeira da família imigrante.

Conforme a inspetora se irrita com a desorganização da papelada, uma fenda no espaço-tempo se abre e uma versão alternativa de Waymond surge e informa a Evelyn que o multiverso está em perigo. Para salvá-lo, ele deve “saltar” — pular entre os universos paralelos para acessar as habilidades das suas outras versões — e impedir a ação de uma entidade maligna que quer a destruição total dos mundos.

Evelyn, então, tem acesso a outras realidades e em cada uma delas ela é alguém totalmente diferente. Versões que fazem referências à carreira da própria Michelle Yeoh — uma atriz muito famosa e uma lutadora de Kung Fu — e outras exploradas pela parte non sense do roteiro, como uma mulher apaixonada pela variante da personagem de Jaime Lee Curtis, numa realidade em que dedos são salsichas. Independentemente de qual seja o espaço-tempo, todas as outras Evelyns são apresentadas como muito melhores do que a protagonista e estão bem mais satisfeitas com elas mesmas. Algo resumido por um dos personagens: “Você é a mais fracassada de todas”.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo

A Evelyn principal é um poço de frustração por tudo o que não realizou e pela forma como sua vida se encontra. Ver seus outros “eus” pondo em prática atividades que ela em algum momento cogitou fazer lhe empurra para a reflexão. Quem ela realmente é? O que lhe dá um dos motivos para embarcar na jornada na busca por enfrentar a ameaça que precisa ser combatida.

A ameaça, na verdade, é uma versão da própria filha. Um Joy niilista que não vê mais sentido ou utilidade na existência e que, por isso, decidiu criar um buraco negro capaz de acabar com todas as dimensões. Joy assume essa perspectiva por conta da criação da mãe, uma Evelyn cientista que inventa uma maneira de rastrear suas formas paralelas e pular para elas. Essa mãe de Joy estabelece um relacionamento nocivo com ela. A força a passar por treinamentos extremos para se tornar a maior saltadora de todas. O que leva Joy ao limite.

Joy se torna “Jobu Tupaki”, uma poderosa saltadora, imparável, movida por um misto de mágoa e raiva. Ela deixa um rastro de destruição por onde passa já que nada mais para ela importa. Apesar de tudo isso, ela procura pela mãe. Ainda sem entender o real motivo, Joy persegue a mãe incessantemente por várias realidades. Até que ela e a Evelyn “fracassada” se encontram.

Acolhimento e pedras que sentem

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo

É só quando Evelyn olha para si mesma, que ela entende suas insatisfações e, consequentemente, percebe o quão dura foi com a filha. Waymond tem um papel fundamental nesse sentido. O marido, um homem sempre sereno, é, por vezes, tido por Evelyn como alguém mais fraco por conta dessa personalidade. O jeito bondoso é confundido com apatia. No entanto, o modo de Waymond de encarar as situações inspira Evelyn a mudar a estratégia de enfrentamento. Ela deixa o confronto e passa a combater o mal — alter ego vilão de Joy — com bondade.

Numa das cenas do terceiro ato, mãe e filha estão em um do universo onde não existem condições para a vida humana e elas são duas pedras à beira de um vale montanhoso. No diálogo, Evelyn pede desculpas à Joy pelo rumo do relacionamento entre elas, enquanto a filha reflete sobre o quão pequena é a humanidade em comparação à que é o universo.

“For most of our history, we knew the Earth was the center of the universe. 
We Killed and tortured people for saying otherwise. 
That is, until we discovered that the Earth is actually revolving around the Sun, which is just one sun out of trillions of suns. 
And now look at us, trying to deal with the fact that all of that exists inside of one universe out of who knows how many. 
Every new discovery is just a reminder… 
We’re all small & stupid.”

“Pela maior parte da nossa História, achamos que a Terra fosse o centro do universo.
Nós matamos e torturamos pessoas que diziam o contrário.
Isso até que descobríssemos que a Terra, na verdade, girava ao redor do Sol, que é um sol dentre trilhões de sóis. 
E agora olhe para nós, tentando lidar com o fato de que tudo isso existe num universo de quem sabe quantos.
Toda nova descoberta é um lembrete…
Somos todos pequenos e estúpidos.” 

De volta à lavanderia, Evelyn apresenta Becky a Gong Gong oficialmente como a namorada da filha. A protagonista também encara o desapontamento do pai em relação a ela, numa amostra de que Evelyn estava repetindo um ciclo familiar, mas agora está disposta a encerrá-lo.

Ainda assim, Joy se mostra reticente. Mantém a defensiva quanto ao acolhimento da mãe sobre sua sexualidade, alegando ser tarde demais para uma reconciliação entre ambas. Questiona Evelyn quanto a escolha por continuar sendo sua mãe, já que há tantas outras realidades alternativas. E Evelyn responde: “De todos os lugares que eu poderia estar, eu ainda quero estar aqui com você”. Por fim, mãe e filha superam as diferenças e aceitam uma à outra.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo leva a amplas reflexões porque aborda muitos prismas da identidade humana. No caso de Joy, uma mulher queer. No caso de Evelyn, uma imigrante chinesa. No entanto, nenhuma delas é só isso. Assim como o multiverso, elas também são múltiplas. Com versões tentando se entender e encontrar espaço para coexistência dentro de um único corpo, porque assim é o ser humano. E essa mistura de comédia non sense, ficção científica, ação, drama e tantos outros estilos que cabem nas 2h19min de filme cumpre com louvor o objetivo de entreter, emocionar e provocar quem a assiste.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo recebeu 11 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz (Michelle Yeoh), Melhor Atriz Coadjuvante (Jamie Lee Curtis), Melhor Atriz Coadjuvante (Stephanie Hsu), Melhor Ator Coadjuvante (Ke Huy Quan), Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Roteiro Original, Melhor Figurino e Melhor Montagem.