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Você Nem Imagina: a busca pela alma gêmea e as diferentes formas de amar

Em menos de dois minutos imersas em Você Nem Imagina, a mais nova comédia romântica adolescente da Netflix, recebemos um aviso: “Essa não é uma história de amor. Pelo menos não uma em que alguém consegue o que quer”. O filme pode não ser uma história sobre o amor romântico, mas é sim sobre as formas diferentes em que o amor existe.

Você Nem Imagina conta de história de Ellie Chu (Leah Lewis), uma adolescente que mora em Squahamish, a típica cidadezinha norte-americana em que todo mundo apenas aceita que está fadado a mediocridade, que é dona de uma pequena produção clandestina de redações em seu colégio. Entre os estudos, Ellie ainda ajuda o pai, imigrante chinês que, apesar de ter um Ph.D em Engenharia, não consegue arrumar um emprego condizente com sua qualificação profissional por causa do seu sotaque (e da xenofobia). Quando Paul Munsky (Daniel Diemer) quer impressionar Aster Flores (Alexxis Lemire), ele contrata Ellie para transformar suas cartas de amor em algo romântico e brilhante, e Ellie aceita por motivos financeiros, visto que a verdade é que ela também gosta de Aster.

O filme é dirigido por Alice Wu e chega dezesseis anos após a sua estreia com Livrando a Cara, longa em que ela conta a história de uma médica lésbica que precisa abrigar a mãe grávida enquanto mantém um relacionamento, que ela não sabe como assumir, com uma bailarina. Alice Wu marcou uma geração ao abordar o tema da homossexualidade em uma comédia romântica protagonizada por duas atrizes asiáticas e agora traz para uma nova geração de jovens a reflexão do que é o amor e a busca pela nossa alma gêmea.

Você Nem Imagina

Atenção: este texto contém spoilers!

Realmente, o filme não é sobre Paul ficar com Aster ou Ellie declarar o seu amor por Aster. Também não é sobre descobrirmos se Aster poderia se apaixonar por Ellie. Não é uma história de amor em que alguém caminha pelo gramado do campo de futebol do colégio e agita o punho no alto em comemoração porque a mocinha o ama de volta enquanto os créditos finais sobem na tela. Você Nem Imagina vai focar no amor platônico, no amor próprio, no amor paternal, no carinho que vem junto com o amor e o cuidado, e na relação que temos com as outras pessoas e nós mesmos.

Ellie Chu é uma garota nerd, quieta e que faz o máximo para sobreviver ao ensino médio ficando na sua e tentando passar sem ser notada. Porém, mesmo assim, Ellie ainda é alvo de comentários racistas por parte dos outros estudantes que só parecem notá-la para proferir maldades. Paul Munsky, por outro lado, é o atleta do colégio que não é lá muito brilhante, não sabe manter uma conversa fluída e nem é muito bom com palavras. Paul não se importa muito com o fato de que terá que passar o resto da sua vida em Squahamish e só quer renovar a receita de salsicha da sua família.

“Você sabe como é conhecer alguém da sua idade que te entende?” — Ellie Chu

Ellie e Paul são de mundos totalmente diferentes e nada poderia prever que, um dia, esses mundos se cruzariam. Eles são diferentes lados de uma mesma moeda: Paul vem de uma família grande e religiosa, barulhenta e que mantém as tradições como seguir a mesma receita e almoços em família não importando o quão caóticos fiquem. Em contrapasso, Ellie passa as noites em silêncio na sala com o seu pai assistindo algum filme clássico que o faz lembrar de sua falecida esposa, enquanto comem a mesma comida todos os dias.

O que os fazem parecidos é que ambos se sentem solitários, que suas famílias não os compreendem e não são adequados para o mundo — sentimentos intrínsecos a qualquer adolescente, visto que esse é uma das fases mais confusas de nossas vidas. Ellie e Paul encontram um no outro o conforto que nunca haviam sentido antes com ninguém: enquanto um encontra conforto no sossego, o outro se abre para novas experiências proporcionadas pelo novo universo com que se depara.

A verdade é que Ellie e Paul só se encontraram por causa de Aster Flores. Paul quer impressionar uma garota e Ellie é a única pessoa que ele ouviu falar ser autêntica o suficiente além de ser brilhante com as palavras. É aqui que Você Nem Imagina poderia cair em uma armadilha presente em outros filmes: Paul poderia ser o típico atleta que quer a garota, mas não quer fazer o “trabalho sujo” enquanto Ellie poderia tentar usar Paul para se aproximar de Aster e então tentar ficar com a garota, o que não acontece. O fato de Ellie se sentir atraída por Aster não a faz perder o seu propósito com Paul, e mesmo que ela tenha se envolvido demais na história, em momento algum a vemos tentar ultrapassar Paul, porque ele é tão importante para ela quanto Aster é.

Você Nem Imagina

Em meio a tentar conquistar o amor de Aster, Ellie e Paul constroem o seu próprio relacionamento. O desenvolvimento do relacionamento dos dois é o foco da história e talvez a melhor parte dela. O amor platônico entre os dois é real e não há nada que possa fazê-los se amarem menos, nem o amor romântico por outra garota.

“Então sou igual a muita gente, então sou meio que ninguém.” — Aster Flores

Na maior parte do filme, Aster Flores não se parece com uma personagem pela qual nos apaixonaríamos. Ela não é multidimensional como os outros personagens, é apenas um rostinho bonito e a garota popular com um namorado popular. Nós não a conhecemos realmente e isso é proposital. Aster é uma incógnita tanto para Paul quanto para Ellie, já que nenhum dos dois a conhece realmente, então eles apenas imaginam como ela é. No entanto, ela também não sabe realmente quem ela é e está tão perdida em suas próprias questões quanto os outros adolescentes.

Aster Flores vem de uma família latina religiosa, é filha do pastor, frequenta a igreja todos os domingos e acredita em Deus. Ela tem um namorado e tem certeza de que eles vão se casar assim que o colégio acabar, que terão dois filhos, um cachorro e uma casa com cerca branca — não porque eles se amam, mas porque é assim que a vida funciona. Aster é a garota que as outras garotas do colégio querem ser e se relacionar. Ela obedece os preceitos de seus pais e de sua comunidade, reproduzindo tudo o que lhe foi ensinado e sem questionar nada até então.

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Na igreja, o pastor pergunta “Como Satanás passa a sua mensagem? Ele escreve cartas? Ele nos faz questionar”. As cartas que Aster recebe a fazem questionar o seu mundo e tudo aquilo que foi ensinada a reproduzir e acreditar. Quando Aster diz que as coisas que Paul (na verdade, Ellie) escreve não são seguras, ela quer dizer que ele a tira de sua zona de conforto e do mundo que ela conhece. Eles a fazem questionar quem ela é e no que ela acredita. Até então ela foi ensinada a apenas seguir o que seus pais e a igreja dizem, mas a dúvida plantada nela por Paul e Ellie a faz temer um pouco. “Questionar nossas vidas, nossos caminhos. Satanás planta a semente da dúvida e, a partir dela, cresce o pecado”. Morar em uma cidade como Squahamish, em que a igreja está tão presente na vida das pessoas e as pessoas têm a certeza de que não vão sair dali, não te faz pensar nas possibilidades que existem fora dali ou como é o mundo longe daquele lugar, porque aquele lugar é o mundo inteiro e a vida que você tem ali é o que existe de real e verdadeiro.

Nas pequenas trocas entre as personagens femininas podemos perceber como aquela sementinha da dúvida cresce em Aster, que é comprovado ao final do filme. “Se as coisas fossem diferentes ou se eu fosse diferente” — Aster não precisa ser diferente, mas ela precisa, sim, descobrir coisas que ela ainda não teve a chance. Ela precisa descobrir quem ela é e quem ela quer ser fora de Squahamish, fora dos preceitos da Igreja e a sua família rígida. Ela precisa ir para algum lugar diferente sem as expectativas que todo mundo tem para ela e descobrir as suas possibilidades.

“E se o amor não é o esforço que você faz, então o que é?” — Ellie Chu

Quando Ellie aceita escrever uma carta se passando por Paul, ela não entende como ele sabe que está apaixonado por Aster.

“— O amor te deixa esquisito. Você nunca se sentiu esquisita?
— Não.
— Ah, eu entendi.
— O quê?
— Você nunca se apaixonou.”

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Ellie é uma adolescente de dezessete anos que não sabe o que é estar apaixonada e não entende sobre qualquer outra coisa envolvendo romance. Ela é uma pessoa prática e racional. Ellie possui uma lista de afazeres para cumprir todos os dias, cuida de seu pai viúvo e da estação de trem, se mantém focada escrevendo redações para outros estudantes e repete isso no dia seguinte. Passar horas questionando seus sentimentos e o mundo dos jovens extrovertidos que saem para ficar com outros jovens não faz parte da sua vida. Quando se é um jovem LGBTQ+ em uma cidade como Squahamish, é quase uma questão de sobrevivência empurrar esses questionamentos para dentro e viver como se eles não existissem.

No entanto, nessa mesma cena, Paul não consegue explicar realmente como sabe que está apaixonado por Aster. A verdade é que ninguém com dezessete anos realmente sabe o que é amor, porque esse é um sentimento muito complexo e há tantas coisas acontecendo em nossas vidas quando temos dezessete anos que não é fácil ter certeza de nada. Mas quem somos nós para dizer que Paul Munsky não está apaixonado por Aster Flores?

A nossa referência do que é o amor vem muito da cultura pop, dos filmes que assistimos e de seriados, das letras de músicas que compositores apaixonados escrevem. Eles dizem que nós só conhecemos o amor quando o sentimos e que é diferente de todas as outras sensações, mas, quando somos adolescentes, existem muitos sentimentos que experimentamos pela primeira vez e parece ser a melhor (ou a pior) coisa que já nos aconteceu. Então nós apenas replicamos aquilo que assistimos na televisão, assim como Ellie faz quando vai escrever a carta e copia uma frase de Asas do Desejo, de Wim Wenders, para reproduzir o sentimento exato que quer passar com suas palavras.

O amor mostrado no filme está no esforço em que Ellie faz para deixar Paul entrar na sua vida solitária, em ver que ele também não tem muito em quem se apoiar, o que faz com que ela permita que o novo amigo crie laços com seu pai, outro solitário. É amando Paul, à sua maneira, que algo muda para Ellie: ela se permite experimentar o famoso taco de salsicha feito por ele, descobre que a família Munsky não o apoia como deveria. É por conta desse amor que Ellie também decide enviar cartas para críticos gastronômicos pedindo para que eles experimentem o prato de Paul.

O amor também está no esforço que Ellie faz para cuidar de seu pai e ter certeza de que tudo está bem na casa deles. O amor está no esforço que o pai de Ellie faz para se reerguer e permitir que a sua filha siga com a vida e vá para a faculdade sem ter que se preocupar com ele. Essas pequenas coisas ao longo da trama compõe as histórias de amor no filme, que vai além de qualquer coisa que imaginamos.

“Já amou tanto alguém que não quer que nada nela mude?” — Edwin Chu

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Após passarem tanto tempo juntos, Paul começa a ficar ainda mais confuso com os seus próprios sentimentos. Então, depois do jogo de futebol, ele tenta beijar Ellie, que se afasta rapidamente. Paul acredita de verdade que ele está apaixonado por Ellie, porque quando se cresce em uma sociedade amatonormativa (termo que exemplifica a crença de que o relacionamento romântico é superior a qualquer outro relacionamento) e allonormativo (a crença de todos sentem atração sexual) é fácil demais acreditarmos que qualquer sentimento forte que experimentamos seja amor romântico.

Essa certeza que Paul sente, de que está apaixonado por Ellie, só existe porque foi ensinado a ele que esse é o padrão. E é essa certeza que o impede de ver que Ellie está apaixonada por Aster. Quando a possibilidade nunca foi apresentada em sua vida, é como se ela não existisse, se ela não existe não tem como você se perguntar sobre. Paul fica chocado ao descobrir os sentimentos de Ellie por Aster e, novamente, o adolescente reproduz o que lhe foi ensinado, o que resulta em uma cena vazia em que ele diz que Ellie vai para o inferno, embora ele não acredite de verdade naquilo mas foi o que lhe disseram que aconteceria com quem ama pessoas do mesmo gênero.

O que, felizmente, ele vem a perceber, é que ele ama Ellie mais do que qualquer coisa e que não quer que ela mude ou seja hétero, porque isso quer dizer ela deixaria de ser quem ela é, deixaria de ser exatamente a pessoa que ele aprendeu a amar.

“Sempre achei que só havia um jeito de amar. Um jeito certo. Mas tem mais. Mais do que eu imaginava. E nunca quero ser o cara que deixa de amar alguém por amar do jeito que quer.” — Paul Munsky

O processo de desconstrução de Paul sobre o que é amor não é apenas sobre Ellie amar garotas, é também sobre ele amar Ellie de um jeito extremamente profundo e isso não ser romântico.

“O amor não é paciente, bondoso e humilde. O amor é complicado. É horrível, egoísta e ousado. Não é encontrar sua metade. É tentar e se esforçar e falhar. O amor é estar disposto a estragar seu quadro bom pela chance de um ótimo.” — Ellie Chu

“Daqui a dois anos, eu vou ter tanta certeza”, diz Aster com um sorriso no rosto. O que acontece depois é um promessa tanto para Ellie quanto para Aster quanto para quem está assistindo. O final do filme pode acontecer ali, porém a vida das duas continua e quem sabe o que pode acontecer no futuro.

Quando as duas se reencontram, Aster revela que talvez já desconfiasse sobre Ellie estar por trás das cartas. A questão é que Aster ainda precisa se descobrir, criar a sua própria pessoa antes de se comprometer com outra. Não há nada de errado em nos darmos tempo para fazermos o nosso próprio descobrimento, porque não precisamos de outra pessoa para iniciarmos essa jornada.

No fim, Ellie parte para uma nova jornada, satisfeita pelas descobertas que fez no último ano, enquanto Paul corre atrás do trem em que ela está, imitando a cena de um filme que eles viram juntos e do qual Ellie debochou do gesto romântico do protagonista masculino. Enquanto ela observa as outras pessoas presentes no trem, ela entende que não existe um “e viveram felizes para sempre” porque depois do beijo final, a vida continua e as pessoas precisam lidar com o cotidiano. Depois do beijo final vem as reticências.

Você Nem Imagina cai em um lugar extremamente pessoal para mim. Como alguém dentro do espectro arromântico, eu me vi a todo momento em Ellie Chu e a sua confusão com coisas que parecem básicas para o resto do seres humanos: como alguém sabe que está apaixonado? Como o momento do beijo funciona? O que exatamente acontece em um encontro? O amor não é algo fácil de entender e ele não acontece apenas de uma forma, como somos condicionados a acreditar. O fato de não conseguirmos entender o que é o amor ou um relacionamento romântico não nos faz menos humanos ou menos capazes de amar alguém de outras maneiras. Assim como Ellie, eu nunca me deixei estressar sobre o desentendimento com o mundo romântico, porque ele nunca foi o meu mundo inteiro, eu sempre tive outras obrigações e, assim como ela, aos poucos vou lidando com pequenas camadas e dividindo-os com aqueles que eu sei que me amam de volta. Uma boneca russa de descobertas.

Quando pedimos por filmes com representação não é apenas por enredos em que as personagens possam namorar quem elas quiserem e viver grandes clichês protagonizados geralmente por casais héteros; é também a possibilidade de termos enredos que as personagens descobrem suas sexualidades sem as partes estereotipadas que todo mundo já cansou de ver, que elas possam se entender e se orgulhar de quem são sem terminar com outra pessoa, porque nós não somos LGBTQA+ apenas quando estamos com alguém.

Você Nem Imagina é sobre Ellie Chu se entendendo e descobrindo o que é o amor e como lidar com seus próprios sentimentos diante de um mundo que ela nunca havia explorado antes. É sobre Aster ter que sair de sua bolha e se afastar de todas as expectativas dos outros, desvendar o mundo e quem ela é. É sobre Paul entender que existem diferentes formas de amar alguém e que o amor vence qualquer tipo de ódio. É sobre como ser adolescente é confuso, complicado e ousado, assim como o amor.

3 comentários

  1. Texto maravilhoso sobre um filme incrível!!! Já reassisti esse filme umas 5 vezes, com certeza se tornou um dos meus filmes favoritos.

  2. Belas palavras e Belo texto. Li enquanto assistia “você nem imagina” pela 6 vez, minha filme favorito da vida e que nem dá pra acreditar que fizeram um filme tão incrível assim. ♡

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