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O Homem Invisível: um filme alegórico e tenso sobre abuso

Desde que o gênero surgiu, o terror foi uma espécie de catalisador para falar sobre assuntos importantes e relevantes. Mesmo sendo considerado inferior por alguns estudantes e amantes da sétima arte, a maioria das produções sempre tiveram a alegoria perfeita para falar sobre problemas mais sérios da sociedade, usando o horror literal ou figurativo — principalmente aquele que vem de dentro e está na nossa cabeça — como um dos recursos mais poderosos para contar sua história. Apesar de ter explorado muito essa característica, sempre existiu uma necessidade de se aprofundar nesses problemas, entender os monstros do passado e transformá-los em algo compatível com o presente, e o que assusta nessa época tão complicada. É por isso que Jamie Lee Curtis voltou como Laurie Strode em Halloween com uma trama que aborda o trauma passado por gerações; ou que Ari Aster criou Dani de Midsommar, uma mulher solitária que lida com seu namorado babaca durante suas férias na Europa, além da sua necessidade de pertencer. Adaptar sentimentos monstruosos como solidão, abuso e o medo do desconhecido se torna cada vez mais essencial, e é por isso que uma releitura de O Homem Invisível parecia cada vez mais inevitável. 

A história do novo longa adapta o clássico de H. G. Wells, publicado pela primeira vez em capítulos de uma revista semanal no século XIX. A narrativa acompanha um cientista solitário que cria uma tecnologia que permite com que ele fique invisível. Dessa forma, ele se hospeda em um motel na beira de uma estrada e começa a atormentar as pessoas que estão nos outros quartos. Em 1933, a trama foi transformada em um longa dirigido por James Whale, mas que ainda tinha um viés masculino, sempre fiel ao livro, e que faz uma mistura de humor com um estudo dos laços de um homem isolado com a sociedade, e como ele se vê perante a mesma. O novo longa, no entanto, não tem fotografia preta e branca, é menos fiel ao material fonte e o mais importante de tudo: apresenta uma visão feminina, sendo que a protagonista é vivida por Elisabeth Moss.

A decisão de mudar tão radicalmente o ponto de vista da história acontece porque o diretor e roteirista Leigh Whannell adaptou o vilão, o homem invisível, para uma figura que seria ainda mais aterrorizante no século XXI: um homem que comanda um relacionamento abusivo. A história ainda é sobre solidão e incompreensão, mas o ponto de partida é a vida e o relacionamento de Cecilia Kass (Moss), uma vítima de abuso. Não existia outra saída para contar essa história a não ser colocar a protagonista como a única fonte de perspectiva, criando um terror que ignora o sobrenatural e brinca com problemas sociais e reais, que acontece com milhares de mulheres todos os dias. Relacionamentos tóxicos sempre existiram, mas a trama parece pertinente ao chegar durante uma época em que movimentos contra esse tipo de dinâmica parecem cada vez mais fortes e presentes.

Liberdade para o homem é ter poder e dinheiro, enquanto para a mulher é ter independência, financeira e emocional. O Homem Invisível entende isso, e é por isso que a jornada de Cecilia em busca dessa liberdade é algo tão duro e tenso de acompanhar. Privada da sua forma de se vestir, de falar e até mesmo de pensar, a mensagem do longa nunca para de ser óbvia, justamente porque trata de relacionamentos abusivos, onde não existe espaço para interpretações. Existe a vítima, e existe aquele que perpetua o crime, que manipula e isola. O humor, que era tão presente na obra original, é substituído por uma sensação de desconforto constante.

Atenção: este texto contém spoilers

Quando o público conhece Cecilia pela primeira vez, ela já bolou um plano para fugir do seu relacionamento abusivo com Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen, de The Haunting of Hill House), que tem um nome grande e importante no mundo da tecnologia. Ela dá um remédio para o seu parceiro dormir pesado e consegue correr desesperada para fora da mansão em que eles vivem na praia, com a ajuda da irmã Alice (Harriet Dyer). Sem conseguir superar o trauma e com medo de que o homem possa ir atrás dela, a protagonista se esconde na casa do seu amigo mais antigo James (Aldis Hodge) e passa grande parte dos seus dias o ajudando com sua filha Syd (Storm Reid), sem conseguir sequer ir até a caixa de correspondência e pegar as cartas. Duas semanas depois, ela descobre que Adrian cometeu suicídio e que ele deixou 5 milhões de dólares como sua herança.

É importante mencionar que o terror já é estabelecido desde o começo na narrativa. Toda a sequência onde ela foge da casa e todos os pequenos passos que ela dá em busca de resgatar sua independência emocional, como tentar buscar a correspondência ou simplesmente olhar pela janela, são aterrorizantes e tensos justamente porque tratam de um assunto tão comum e real, algo que acontece todos os dias. A história, no entanto, começa a ganhar mais profundidade quando Cecilia começa a ser atormentada por uma figura invisível, que ela acredita ser Adrian.

Se na versão original o homem é um cientista que encontrou uma fórmula para ficar invisível, aqui a tecnologia é o ponto chave. No caso, Adrian usou seus recursos tecnológicos disponíveis para criar uma espécie de roupão que o deixa invisível e que é a prova de basicamente tudo, inclusive a luz.

Como todo homem manipulador e abusivo, ele aplica seu golpe com calma e cuidado. Começa com pequenas mudanças, como aumentar o fogo de uma panela e fazer a comida de Cecilia queimar. Depois, passa a atormentá-la ao puxar os cobertores, apagar e acender a luz e finalmente drogá-la e plantar dúvidas sobre sua sanidade mental. Afinal, ela está vendo coisas e sendo paranoica, ou aquilo realmente está acontecendo? Ao plantar a dúvida na sua cabeça, ele afasta todas as pessoas que ela ama. Primeiro sua irmã, com um e-mail falando sobre a relação entre elas. Depois James e Syd. Assim, Cecilia se encontra isolada, com medo e, o principal: com fama de louca. Um sentimento de solidão imbatível abala a protagonista, que vive na sombra da mulher que um dia foi, mas que ao mesmo tempo parece determinada a provar para o mundo o papel de Adrian na sua tormenta e na sua recém missão contra ela. Algumas cenas brincam com a ambientação e os jump scares para criar um clima mais tenso, mas o terror mais eficiente ainda é aquele que está presente na cabeça da protagonista.

Adrian faz com que Cecilia não só questione sua sanidade, mas também qual o seu papel nisso. Em certo ponto da narrativa, Cecilia passa a acreditar piamente que talvez a culpa do que está acontecendo seja realmente sua, já que ela trouxe o homem para a vida de seus amigos e familiares. Para sua vida. Em determinado momento na história, Emily diz que Cecilia é fraca por deixar Adrian se “aproveitar” dela desse jeito, mas o próprio roteiro não deixa transparecer essa mentalidade. A protagonista é uma vítima, claro, mas isso não quer dizer que ela não tenha forças ou seja fraca. Pelo contrário. Envolvida pelas circunstâncias, ela luta por sua liberdade e às vezes pensa em desistir. Mesmo com poucas cenas que mostram o relacionamento entre ela e Adrian no começo, fica muito claro o nível de loucura e como exatamente ele a manipulava — controlando a forma como ela se vestia, falava, pensava e até mesmo se ela tomava pílulas anticoncepcionais ou não. Nesse ponto, O Homem Invisível chega a flertar com a possibilidade de explorar o estupro marital, mas acaba nunca chegando a desenvolver muito bem esse aspecto, deixando apenas como uma menção superficial. O problema é que, mais tarde, ela acaba aparecendo grávida, algo que também não parece ser completamente estudado pelo roteiro — e acaba sem uma resolução.

Depois de viver Offred em The Handmaid’s Tale, Elisabeth Moss entrega outro trabalho que exige muito emocionalmente e um dos melhore desempenhos da sua carreira. A violência física de Adrian não chega a ser mostrada de forma explícita no longa, apenas mencionada (outro acerto do roteiro, inclusive), mas a forma como os problemas psicológicos são abordados é tão crua e honesta que é quase impossível assistir sem se sentir desconfortável.

Abordar essa narrativa pelo viés tecnológico e menos sobrenatural também se prova uma decisão precisa ao longo do filme. Cecilia não é atormentada por um fantasma, mas sim por um homem obsessivo. Mais uma vez, o roteiro deixa claro que o problema não é ela, mas o comportamento abusivo de Adrian. Ao mesmo tempo, a história também se beneficia de uma fotografia e direção que são inteligentes e sabem muito sobre como podem criar uma ambientação melhor para a trama. Como o vilão é literalmente invisível, a câmera foca nos cantos escuros para chamar atenção do público e da própria Cecilia, que não sabe o que pode falar ou em quem confiar. Adrian é onipresente e onipotente, e ciente disso, a protagonista não consegue usufruir de um momento sequer de privacidade. Eventualmente, no entanto, aprende a usar isso ao seu favor.

Como foi apontado antes pelo texto, liberdade é uma das palavras chaves para entender narrativas que contêm protagonistas mulheres, e com Cecilia não é diferente. Ao chegar no que parece ser uma encruzilhada, a protagonista não vê escolha e parece disposta a tomar uma decisão mais radical para acabar de vez com o relacionamento abusivo e ganhar a famosa e tão sonhada liberdade. É por isso que, quando age, o momento é catártico e parece se encaixar perfeitamente. Ela o mata, com um traje invisível, igual ao que Adrian criou, oferecendo um pouco do seu próprio veneno. Quando termina, sobe as escadas da casa e para na frente. Ela sorri. Liberdade, finalmente. Nesse momento, é impossível não fazer um paralelo com milhares de protagonistas que, após irem até o inferno e voltar, tiveram seus tão esperados momentos de libertação: Dani, de Midsommar; Thomasin, de A Bruxa; Suzy, de Suspiria; e agora Cecilia, de O Homem Invisível, entre muitas outras.

O filme é acompanhado por uma trilha sonora que é tão intensa e taciturna quanto a história sendo contada, com músicas compostas por Benjamin Wallfisch. No final, quando Cecilia finalmente consegue paz, a característica pesada da canção é substituída por algo mais leve, que representa a esperança e um recomeço. Algo que deixa a última sequência ainda mais poderosa e eficiente, fechando o roteiro em uma história com começo, meio e fim completamente satisfatórios, ainda que contenha pequenos e perdoáveis deslizes.

Uma releitura de O Homem Invisível não parecia ser uma boa ideia no começo, já que os remakes parecem cada vez mais saturados e com dificuldade de entender para o que eles realmente servem: para atrair um novo público, ou causar nostalgia. Apesar das circunstâncias e da pouca expectativa, Whannell fez um ótimo trabalho, que não só manteve a essência da obra de Wells sobre solidão, mas ao mesmo tempo criou algo novo e essencial no século XXI, entendendo que os monstros que ficam escondidos no nosso guarda-roupa ou debaixo da nossa cama nem sempre são literais; às vezes eles andam ao seu lado e de mãos dadas.

1 comentário

  1. Fui ver esse filme no cinema e lembro do silencio que todos faziam dentro da sala enquanto Cecilia fugia. Parecia que ninguém respirava. Me lembro também de ficar agoniada pelo modo como a instrumentação parecia entrar na minha cabeça toda vez que algo dava errado pra ela. Me surpreendeu de um jeito muito bom.
    Parabéns pelo texto, resumiu bastante do que eu senti e pensei.

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