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Crítica: The Post – A Guerra Secreta

A grosso modo, ler jornais é um hábito rotineiro. Normalmente, pela manhã, pegamos um exemplar e lemos brevemente as manchetes do dia sobre os acontecimentos mais recentes, nos atemos a algumas notícias mais do que outras, terminamos de tomar o café, e como uma efemérida, aquele jornal se torna obsoleto, pronto para seu próximo destino: embrulhar postas e filés no mercado de peixes, forrar latas de lixo, embrulhar louças em mudanças, etc. Para a população mediana, jornais são apenas um veículo, um método corriqueiro de tomarmos contato com o que acontece no mundo. Pouco, senão nunca, se pensa sobre os bastidores de uma redação — o que acontece para aquelas notícias serem impressas e chegarem até nós, e esse é um dos desdobramentos de The Post – A Guerra Secreta, filme dirigido por Steven Spielberg que aborda, em primeiro plano, um impasse midiático sobre a publicação de estudos secretos que os Estados Unidos vinham escondendo, relativos à Guerra do Vietnã, no início dos anos 70.

“A notícia é apenas o primeiro rascunho da história”, cita Katherine Graham (Meryl Streep) em uma sequência próxima ao final do filme. Ela atribui a citação a seu falecido marido, Phil Graham, original herdeiro do jornal na ocasião da morte de Eugene Meyer, pai de Kay, mas na verdade dizem que a citação circulava no jornal muito antes. Todavia, até aquele momento em que Kay anda tranquilamente pelo prédio onde as máquinas de impressão estão trabalhando, ao lado de Ben Bradlee (Tom Hanks), um de seus principais editores e fiel escudeiro, ela passa por muitas provações. E tudo começa anos antes, quando, em 1966, o analista militar Daniel Ellsberg (Matthew Rhys) é chamado para documentar o desempenho das tropas americanas em campo para o Secretário de Defesa, Robert McNamara (Robert Greenwood); ambos haviam chegado à conclusão de que o prospecto não era nada positivo para o lado dos Estados Unidos, que estavam ajudando a defender o Vietnã do Sul, mas McNamara mentia para a imprensa (e, consequentemente, para o povo) e mantinha o país no banho de sangue. Anos depois, Ellsberg, tendo acesso aos arquivos de análise da RAND Corporation, um instituto de pesquisas, deu um jeito de copiar documentos ultrassecretos do governo, conhecidos como Papéis do Pentágono, cujo conteúdo revelava que há anos eles sabiam que o envolvimento dos EUA na guerra era, em palavras curtas e grossas, um caso perdido, e forneceu essas informações de caráter confidencial para o jornal The New York Times, guiado pelo senso de dever com o povo americano que, por sua vez, assistia, impotente, suas famílias serem destruídas pela guerra.

Enquanto isso, somos introduzidos aos bastidores do The Washington Post, administrado por Katherine Graham, que àquela altura tinha como maior preocupação conseguir um financiamento com o banco para que pudesse expandir o jornal sem que este deixasse de ser um negócio de família. Embora tivesse todos os argumentos muito bem estruturados, Kay não conseguia apresentá-los com firmeza, precisando sempre de seu porta-voz para transmitir aquilo que ela sabia, passando a imagem de que era incapacitada para tocar o jornal. Ao mesmo tempo, a redação envidava esforços para se manter páreo ao seu concorrente, o The New York Times, e assim se mostrar capaz de transmitir as notícias mais relevantes simultaneamente, e não a um passo atrás, como até então estavam. Responsável por divulgar notícias diretas da Casa Branca, enquanto o Times trabalhava secretamente em divulgar as informações ultrassecretas dos Papéis do Pentágono, o The Post, inocentemente, tentava conseguir fotos do casamento da filha de Nixon para matéria de capa, uma vez que sua repórter havia sido banida do evento.

As tentativas de Bradlee de espionar os passos da redação do The Times — mais especificamente, de um de seus principais jornalistas, Neil Sheehan (Justin Swain) — eram frustradas, e a publicação da primeira parte dos documentos pelo jornal acabaram sendo uma surpresa até para a própria mídia. A repercussão do caso foi, inevitavelmente, estrondosa, e só aumentou as manifestações do povo para que o governo retirasse as tropas do Vietnã. O governo americano se viu encurralado com a revelação de tais informações e emitiu um mandato para que o The New York Times cessasse a publicação do restante dos documentos pelo menos até a audiência sobre o caso. Eis que surgiu a chance do The Washington Post tomar a dianteira desse furo jornalístico. O problema residia no tempo curto e, a princípio, no fato de eles não terem uma cópia dos tais documentos para serem reportados — se tivessem que dar sequência à publicação do caso, teriam que parafrasear o concorrente como fonte, o que Ben Bradlee, principalmente, não estava muito contente em fazer. No entanto, entre entregas misteriosas e uma troca entre contatos com envolvimentos estratégicos, o The Post consegue as 4.000 páginas do documento e seus editores e principais jornalistas começam a trabalhar madrugada adentro para continuar a publicação dos documentos. Tudo que eles precisavam, no fim, era do aval de uma hesitante Kay Graham.

É engraçado como em várias entrevistas com a roteirista Liz Hannah, The Post é promovido como um filme não sobre o vazamento dos Papéis do Pentágono, mas sobre o grande dilema e os desafios enfrentados pela mulher por trás do jornal, uma vez que o filme falha em vários momentos em centrar sua trama nela. Liz foi altamente ovacionada pela mídia americana por criar um roteiro tão atraente com tão pouca idade — ela tem apenas 32 anos — e, da noite para o dia, ter um roteiro especulativo transformado em filme pelo olhar de Spielberg e com nomes de peso como o de Meryl Streep e Tom Hanks no elenco principal. Um verdadeiro conto de fadas tornando-se realidade para uma jovem aspirante na indústria do cinema, mas o fato de uma mulher assinar o roteiro não nos induz a relevar o produto final que foi apresentado aos cinemas ao redor do mundo — e com uma indicação para Melhor Filme no prêmio mais aguardado do cinema. Embora a intenção de Liz Hannah tenha sido abordar a história não muito conhecida de Katherine Graham, uma figura cuja biografia ela absorveu e admira, o que nos foi entregue não estava exatamente centrado em Graham, porque a jornada dela está interligada a fatos históricos tão importantes para a trama quanto a sua decisão final, e em contraste, acaba sendo difícil fazer o lado dela prevalecer.

O talento de Meryl Streep, neste caso, não conseguiu traçar a linha de quem tinha o destaque, afinal. Sua Kay Graham, que já teve um tempo de tela limitado, demorou para se distinguir em meio a uma sala cheia de homens (brancos) que a faziam parecer coadjuvante em seu próprio domínio. Durante a maior parte de desenvolvimento do filme, era Ben Bradlee e sua ânsia pelo “big scoop” que estava guiando o curso dos eventos; os papéis já estavam sendo organizados, analisados e reportados quando ele entrou em contato para Kay para pedir a permissão dela, concedida com muito nervosismo e expectativa. Foi apenas quando a esposa de Bradlee, Tony (Sarah Paulson), comentou, no meio do frenesi, como devia ser difícil estar na pele de Kay, pensando em tudo que ela estava arriscando (seu nome e o legado de sua família, em troca do risco de uma condenação), que ele colocou a mão na consciência e deu uma abertura para ela desistir da publicação, o que ela não fez, já que àquela altura a aposta era grande demais para deixar de ser feita. Em meio à inconsistência da retratação de Kay Graham, entretanto, não é possível deixar de simpatizar com aquela mulher que assumiu, sem muita preparação, uma posição de poder. Ela não deixa de lamentar o suicídio do marido oito anos antes — foi para ele que seu pai deixara o jornal, era ele quem deveria ter conduzido os negócios enquanto ela assumia seu papel de mãe e esposa. Embora não se sentisse apta, Kay não desistiu antes de tentar e não negou a honra que era ter o The Washington Post como herança de sua família e por isso o jornal valia o esforço de ser mantido dentro dela.

Em sequência à cena que enche os olhos daqueles que se sentem fascinados pelo processo de impressão e distribuição de um jornal, o The Post ganhou o destaque que tanto almejava ao publicar a continuação do vazamento dos Papéis do Pentágono. Em consequência, a restrição do The New York Times acabou estendida ao The Post, agora tidos como cúmplices de uma mesma ofensa contra o governo americano. No entanto, a denúncia não havia se limitado só a esses dois jornais, e em pouquíssimo tempo redações por todo o país tinham suas próprias manchetes sobre esses documentos. Assim, o foco da trama se desviou para a questão da liberdade de imprensa, sobre o governo exercer poder sobre as informações veiculadas pela mídia mesmo quando o assunto era do interesse do povo americano em massa, que se sentia agoniado e sem esperança toda vez que um familiar era convocado e mesmo morto em uma guerra que estava durando tempo suficiente. Foi um marco quando o juiz da Suprema Corte sentenciou a favor da mídia; com uma menção honrosa, Kay Graham teve o mérito do envolvimento do The Post no caso e, de repente, ela caminhava pelos andares do jornal mais confiante de sua posição, refletindo sobre a citação mencionada anteriormente neste texto, aparentemente vislumbrando um futuro consistente para seu império jornalístico. E, como que para endossar essa perspectiva, o filme termina mostrando a invasão ao Complexo de Watergate, escândalo de corrupção que coube ao The Post investigar e que foi responsável pela renúncia do presidente Nixon.

The Post trabalha com um recorte da história de Kay Graham e do The Washington Post que tem como pano de fundo um período de acontecimentos históricos determinantes para o país, e deixar de contextualizá-los traria enormes furos para a trama. Por outro lado, em virtude de tentar retratá-la com o máximo de precisão histórica possível, os fatos e os outros personagens envolvidos acabaram desviando o foco da mulher que deveria ser o centro do filme de acordo com a intenção de sua roteirista. Com tanta minuciosidade nas informações sobre o envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã e com tantos nomes de figuras que na época ocupavam a Casa Branca, fica evidente que o filme foi feito sob medida para o público norte-americano, e falha em situar com autossuficiência aqueles que não são conhecedores do contexto histórico e político do país. Ainda assim, The Post conseguiu uma nomeação para a categoria de Melhor Filme no Oscar e bastante aclamação, porque o timing é muito propício: desde a eleição de Donald Trump, o governo americano virou alvo de questionamentos, debates e controvérsias — ainda que o país não esteja envolvido com uma guerra de proporções tão grandes quanto a Guerra do Vietnã, a ameaça de estourar em uma guerra com a Coreia do Norte e fazer a história se repetir é diariamente acendida, e cada passo está ali, sendo noticiado no primeiro rascunho.

The Post é um filme ambicioso. E, como bem sabemos, se não acertar a medida, a ambição pode ter efeitos extremamente opostos.

The Post – A Guerra Secreta recebeu 2 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme e Melhor Atriz (Meryl Streep).


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.