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De Brokeback Mountain a Lil Nas X: a reapropriação do mito do caubói

Durante muito tempo, a figura do caubói estava estritamente associada à masculinidade branca cisheterossexual, sobretudo estadunidense. Isso se deve bastante aos Westerns da década de 1940 a 1960, muitos deles estrelados por Clint Eastwood, como representante máximo do caubói. Além do protagonista “machão”, os filmes de faroeste contam com outros elementos em comum que remetem a uma imagem da América ideal, como os duelos armados, a conquista do Oeste, e uma ideia de liberdade individualista e senso de justiça do cavaleiro solitário, guiado pelo patriotismo.

Nos últimos anos, a estética Western ressurgiu em diversas produções midiáticas e está presente, tanto na obra, quanto no visual de novos artistas. No entanto, diferente dos filmes clássicos de faroeste e dos cantores de música country tradicionais, acompanhamos uma diversidade de vozes e narrativas, que desconstroem ao mesmo tempo que se apropriam, do mito do caubói. Assim, o caubói deixa de representar apenas uma maioria e tem se tornado um símbolo para pessoas diversas.

Na música dos últimos cinco anos, diversos artistas não brancos e/ ou LGBTQIA+ vêm apresentando uma nova imagem do caubói. Um desses exemplos é Lil Nas X, rapper, cantor e compositor, voz do sucesso “Old Town Road”, música que ficou mais de 17 semanas em primeiro lugar nas paradas da Billboard. O artista se tornou conhecido a partir desta canção, que, posteriormente, ganhou uma versão com um dos maiores nomes da música country estadunidense, Billy Ray Cyrus.

Lil Nas X contraria todas as expectativas que temos quando ouvimos falar em caubóis. Em suas músicas, o cantor expõe suas experiências enquanto homem negro e gay assumido, ao mesmo tempo que mescla diversos gêneros musicais, como o country, o rap e o pop. Isso sem falar do seu visual, que frequentemente conta com acessórios da moda Western, como o chapéu, as fivelas, as franjas e as botas, sem deixar o fashionismo de lado, apresentando cores vibrantes, brilho e muito glamour.

Seus clipes são sempre muito bem produzidos e, enquanto o vídeo de “Old Town Road” se passa em uma espécie de faroeste moderno, as produções mais recentes, como “MONTERO (Call me by Your Name)”, “Industry Baby” e “That’s What I Want”, apresentam várias referências da cultura pop e das comédias românticas, mas também críticas à homofobia no ambiente religioso e ao sistema de encarceramento dos Estados Unidos. Se os Western dos anos 1960 exaltam a Terra da Liberdade, Lil Nas X expõe o conservadorismo americano, sem perder o carisma e a postura do caubói.

Outro caubói nada convencional da música recente é Orville Peck, cantor sul-africano/ canadense de música country. O artista, também assumidamente gay, não revela sua identidade por completo e se apresenta com um chapéu e longas franjas que cobrem boa parte do seu rosto. Suas letras falam principalmente sobre masculinidade e as desilusões amorosas de um caubói solitário. Seus clipes desafiam a heteronormatividade e o artista sempre convida mulheres, drag queens e pessoas da comunidade LGBTQIA+ para participar de suas produções.

Apesar da música country ainda ser  frequentemente associada a conservadores, Orville Peck defendeu em uma entrevista à revista Gay Times que, para ele, o caubói é “essencialmente alguém que é um fora da lei, marginalizado, que vive nos arredores, e não sabe qual o seu lugar na sociedade, basicamente o oposto de um Republicano.” Ainda, segundo o cantor, “pessoas  marginalizadas, especialmente as não brancas e/ ou queer [termo guarda-chuva para aqueles que não se identificam com a cisheteronormatividade], se conectam com a imagem do caubói porque ela é inerentemente rebelde e poderosa. É uma figura icônica que mostra que está tudo bem viver fora do padrão.”

Também é preciso citar que, apesar do imaginário do caubói ser predominantemente masculino, muitas vozes icônicas da música country são femininas. O que seria o gênero sem os sucessos de Dolly Parton e Shania Twain? Grandes cantoras, como Miley Cyrus e Taylor Swift, que hoje são ícones do pop, também começaram suas carreiras nesse estilo musical. Mais recentemente, quem tem se destacado na cena é Kacey Musgraves, ganhadora do Grammy de Melhor Álbum do ano em 2016. Por meio de seus hits, as artistas expressam uma perspectiva feminina sobre relacionamentos, questões pessoais, sentimentos, entre outras temáticas.

O universo country, assim como o sertanejo no Brasil, é muitas vezes lembrado pelo seu conservadorismo, e visto como hostil para com pessoas LGBTQIA+. No entanto, isso não significa que o estilo musical não tenha espaço para vozes e fãs diversos. No Brasil, Gabeu, filho do cantor Solimões, inaugura o Queernejo (junção das palavras queer + sertanejo), apresentando músicas sertanejas com um toque de pop, a partir do ponto de vista de pessoas LGBTQIA+. Assim como os outros cantores mencionados, Gabeu não abre mão do visual caubói e reapropria a estética Western, mesclando referências do sertanejo rural com a cultura pop, tudo isso com muito bom humor.

E a apropriação da figura do caubói não se restringe apenas ao universo do country. Em 2018, a cantora nipo-americana Mitski, lançou um álbum intitulado Be The Cowboy, no qual, assim como em suas obras anteriores, ela canta sobre solidão, desilusões, desejos, e alguns conceitos mais abstratos. Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com “ser o caubói”? Quando questionada em uma entrevista no programa The Daily Show with Trevor Noah, Mitski expressa que, para ela, a figura do caubói (e aqui, falando do tipo tradicional Clint Eastwood) é atraente porque há “uma certa arrogância e liberdade nela.”

A cantora explica que, “enquanto mulher asiática, ela sempre sente a necessidade de se desculpar por existir”, o que seria o contrário do caubói ideal, que representa a ideia de “liberdade e arrogância, sem desculpas”. Segundo Mitski, o protagonista do álbum Be The Cowboy é “alguém como ela, que sente e quer canalizar e incorporar a energia de um caubói.” Ela defende, ainda, que o mito do caubói é algo que se distancia muito da cultura asiática, por exemplo, porque “a ideia um homem branco entrando em uma cidade, causando o caos, destruindo coisas e saindo como se fosse o herói é inerentemente americana”.

E é impossível falar sobre desconstrução e reapropriação do mito do caubói sem mencionar uma das obras cinematográficas mais marcantes da década de 2000. Baseado em um conto de Annie Proulx, Brokeback Mountain narra a história de amor complexa entre dois caubóis americanos entre os anos de 1963 e 1983. Trata-se de um Western revisionista que discute, principalmente, a masculinidade tóxica, a homofobia e o conservadorismo do contexto no qual os personagens estavam inseridos.

A partir da história de amor de Jack Twist (Jake Gyllenhaal) e Ennis Del Mar (Heath Ledger), o longa desconstrói a imagem do caubói ideal, além de ser considerado um marco para o cinema LGBT. Os personagens são complexos, e estão longe de serem estereótipos. Mas, se nos filmes clássicos de faroeste os caubóis são  livres para fazerem o que querem, em Brokeback Mountain vemos o contrário disso: a liberdade só é garantida caso você seja o caubói ideal e não desvie de nenhuma norma estabelecida pela sociedade conservadora.

Recentemente, tivemos o lançamento de outros dois filmes que também podem ser considerados Westerns revisionistas e que apresentam outras perspectivas sobre os caubóis. O primeiro deles é Ataque dos Cães, que rendeu a estatueta do Oscar de Melhor Direção para a diretora Jane Campion. O longa narra a história de Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) e a relação complicada com Rose (interpretada por Kirsten Dunst) e, especialmente com Peter (Kodi Smith-McPhee), esposa e enteado de seu irmão, respectivamente.

Por fora, Phil é o caubói ideal: másculo e até mesmo sádico em alguns momentos, se orgulhando de ter uma aparência suja e desgrenhada. Enquanto isso, Peter, filho de Rose, é o oposto: afeminado, sempre preocupado com a mãe e que, no início do longa, não sabia nem mesmo montar a cavalo. À medida que o filme progride, vemos que Phil se esconde atrás da figura do caubói, tem questões mal resolvidas com a própria sexualidade, e na verdade, tem até mesmo educação formal em uma faculdade prestigiada. E, por outro lado, Peter, que representava a imagem da inocência, se mostra bastante calculista e confiante consigo mesmo. Ataque dos Cães explora a masculinidade tóxica e mostra que, às vezes, a figura do caubói é só uma fachada que esconde as vulnerabilidades.

O segundo filme é Vingança e Castigo, longa da Netflix estrelado por Idris Elba, Regina King, Jonathan Majors, Zazie Beetz e Lakeith Stanfield. Apesar do cinema Western ter um século de história, são poucos os filmes que contém protagonistas negros em suas narrativas. Vingança e Castigo junta um elenco de peso para dar vida a alguns caubóis que existiram na vida real, como Mary Fields, também conhecida como Stagecoach Mary, e Nat Love. O filme, dirigido por Jeymes Samuel e produzido por Shawn Carter, o Jay-Z, conta com uma fotografia inspirada nos Westerns, mas é completamente original ao representar caubóis que nem sempre vemos nas telas, de forma aprofundada, além de contar com uma trilha sonora impecável que mistura country com jazz, rap e até mesmo reggae.

Entretanto, é importante lembrar que, apesar de termos vozes diversas se reapropriando do Western, ainda há muita resistência por parte das indústrias musical e cinematográfica, e de reacionários norte-americanos em geral, em reconhecer que a figura do caubói pode representar mais do que uma maioria masculina branca e cisheterossexual. Os puristas do Western e alguns grupos conservadores costumam atacar, com críticas vazias e claramente ideológicas, as obras e artistas que apresentam versões de um caubói que não corresponde ao padrão imaginado por eles.

Como exemplo recente, temos os comentários de Sam Elliott, intérprete famoso de caubóis em filmes clássicos de faroeste, sobre o filme Ataque dos Cães. Em entrevista ao podcast WTF with Marc Maron, o ator descreve o longa como “pedaço de m*erda”, dizendo que trata-se de uma “evisceração do mito americano”, e que há “alusões à homossexualidade durante todo o filme”. Ainda, Elliott opinou sobre a diretora Jane Campion: “Mas que c*ralhos essa mulher de lá debaixo, da Nova Zelândia, sabe do Oeste Americano? E por que c*ralhos ela roda esse filme na Nova Zelândia, chama de Montana e diz ‘é assim que era’?”.

As críticas de Sam Elliott soam realmente como um ataque vazio, homofóbico e machista quando lembramos que, entre os grandes filmes de faroeste, como a Trilogia do Dólares, estão os Western Spaghetti, filmes de caubóis filmados na Itália, também bem distante do “verdadeiro” Oeste dos Estados Unidos. Além disso, Sergio Leone, um dos cineastas mais importantes do gênero, não é americano, e sim italiano. E, por mais que os puristas do Western tentem impedir, já deu para perceber que a figura do caubói não é mais única — é só olhar no nosso próprio referencial, na novela Pantanal, as diferentes vivências explicitadas na produção por meio dos personagens Jove (Jesuíta Barbosa), Tenório (Murilo Benício), Joventino (Cláudio Marzo), Zé Leôncio (Renato Góes), Tibério (Guito) e Tadeu (José Loreto)— todos atuando como faces distintas de uma mesma moeda. A figura do caubói já se tornou um símbolo para vozes e audiências diversas.

1 comentário

  1. Tinha pensado em um texto abordando esse novo country que surgiu nos últimos anos, principalmente por conta do boicote que esses artistas que se posicionam sofrem junto às rádios e até nas premiações – tipo a Kacey Musgraves, o próprio Orville, que não tem o mesmo espaço de seus pares e a Maren Morris, que foi bastante atacada por posar pra Playboy. Mas adoreei o enfoque que você deu, pra abordar como eles estão longe – ainda bem – do mito do cowboy republicano perpetuado por décadas.

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