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Best Wishes, Warmest Regards: o mundo aconchegante de Schitt’s Creek

Em 2019, o Emmy Awards nomeou para a categoria de melhor série de comédia algumas das produções mais aclamadas dos últimos tempos dentro do seu gênero. Fleabag (que foi a grande vencedora da noite, com destaque para Phoebe Waller-Bridge), Barry e Veep da HBO, Boneca Russa da Netflix, The Marvelous Mrs. Maisel da Amazon Prime e The Good Place, da emissora norte-americana NBC. Apesar de serem bem diferentes entre si, todas elas têm características para se tornarem clássicos dos seus tempos, e levantam pautas e debates importantes para o mundo da cultura pop. No meio da mistura, no entanto, havia uma pequena surpresa: Schitt’s Creek. Apesar de ser um nome relativamente desconhecido no Brasil, a produção se tornou um pequeno fenômeno nos Estados Unidos e principalmente no Canadá, onde é gravada. Produzida em parceria da CBC com a Pop TV (a mesma que comprou One Day at a Time), a obra subverteu expectativas e antes mesmo de aparecer em uma categoria da maior premiação da TV, já era um clássico. 

Criada por Eugene Levy e Daniel Levy, Schitt’s Creek acompanha uma família rica dona de um grande império de locadoras, a Rose Video. Quando perdem todo o dinheiro que têm por causa de uma fraude cometida por um de seus funcionários, eles são obrigados a viver no único bem que ainda possuem, a cidade que dá o nome da obra — e que está cheia de townies (ou caipiras, em português). Não existe absolutamente nada de original na trama da produção em si, sendo que a história de um grupo de pessoas incrivelmente ricas e fúteis que perdem o dinheiro já foi explorado milhares de vezes por obras semelhantes. E sempre, devo acrescentar, com um humor datado e quase sempre ofensivo. Mas, nessa pequena preciosidade da TV canadense, esse não é nem um pouco o caso. Ao longo de seis temporadas, os Levy (pai e filho) criaram um mundo que é leve e divertido ao mesmo tempo que é incrivelmente pessoal e inclusivo. Um lugar livre de homofobia, onde qualquer tipo de pessoa pode encontrar uma mensagem otimista e aconchegante. Bem-vindo a Schitt’s Creek, onde todo mundo se encaixa.

Atenção: este texto contém spoilers

Apesar da série ultrapassar as próprias barreiras e abordar uma história comum com certa classe, não se enganem: quando os Rose chegam em Schitt’s Creek, eles são sim pessoas que dão muito valor para as coisas erradas. Extremamente vaidosos, fúteis e até mesmo um pouco cruéis e indiferentes uns com os outros, eles chegam com o nariz empinado e desesperados para achar uma maneira de escapar. Mesmo com tal atitude, eles são recebidos com generosidade e conforto, sendo que o prefeito da cidade, Roland Schitt (Chris Elliott), oferece uma estadia gratuita no único motel simples da região, onde Stevie Budd (Emily Hampshire) trabalha sozinha todos os dias. Mesmo assim, Moira (Catherine O’Hara) e Johnny (Eugene Levy) começam a procurar um possível comprador para a cidade. O único problema é que naquela pequena cidade norte-americana, nada parece funcionar muito bem — fazendo com que sua prioridade seja arrumar alguns problemas e fazer com que ela seja mais atraente para os olhos de quem passa. Ao mesmo tempo, seus filhos David (Daniel Levy) e Alexis (Annie Murphy), passeiam despretensiosamente pela vida sem nenhum objetivo ou perspectiva de vida.

Mesmo com todos os problemas, é importante ressaltar que os Rose não eram totalmente desprovidos de humanidade, mesmo no começo. Ainda que com tendências fúteis, o casal principal, por exemplo, mostrava constantemente um amor duradouro e extremamente saudável, baseado completamente em respeito e comunicação. Ao invés de retratar ali duas pessoas que estavam juntas apenas por causa de dinheiro, ou para manter o império deles de alguma forma vivo, como é comum em casos assim, Moira e John eram (e ainda são) casados por uma admiração mútua quase palpável. E isso, claro, se desenvolve mais para frente. Se a pressão de perder a fortuna deles ou o estilo de vida anterior seria capaz de causar mais conflitos do que o normal e, eventualmente, uma separação, com os Rose o que acontece é justamente o contrário. Eles parecem se aproximar e oferecer conforto um para o outro, algo sempre muito bonito de se acompanhar.

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Apesar do conjunto de Schitt’s Creek fazer com que a série seja um sucesso, Moira por si só é um pequeno fenômeno. A protagonista vivida por Catherine O’Hara é um ícone fashion e extremamente vaidoso. Suas perucas (que recebem nomes diversos e são chamadas de “as meninas”) são quase personagens em si e seu guarda-roupa extravagante é o convite perfeito para sua personalidade: chamativa, dramática e extremamente caricata. Mais de uma vez vi pessoas falando que Moira é a personagem da série com o menor desenvolvimento, mas esse não é o caso. Apesar de ter vivido sempre com um padrão de vida absurdamente alto e ter trabalhado em uma das soap operas mais famosas do mundo fictício da série, intitulada de Sunrise Bay, Moira não demora para se encaixar na cidade, ainda que de forma relutante. Sua cautela é clara e está sempre ali, mas ao longo da sua jornada ela acaba se tornando conselheira de Schitt’s Creek, faz parte de um grupo de coral e protagoniza algumas das cenas mais doces e importantes da trama, onde aparece como alguém generosa, sensata e acessível. Ela tem o pensamento no lugar certo.

No final do dia, Moira é uma diva. Mesmo levando uma vida bem mais simples e morando em um motel na beira da estrada, seu espírito extravagante nunca chega realmente a morrer. Ao invés de sucumbir e adotar um estilo mais adequado a sua nova vida, ela permanece com as perucas e as roupas pretas e brancas tão dramáticas, que se tornaram característica importante da personagem. Inclusive, O’Hara tirou uma inspiração da vida real para compor o visual da protagonista, a designer de moda Daphne Guinness. Mas ao contrário de outras “divas” que foram construídas no mesmo estilo — e também conquistaram uma legião de fãs —, Moira se mostra uma versão melhor e até mais empática dessas. Ela não é amarga e cruel com as pessoas da cidade, mesmo que ainda tivesse mais dificuldade em se adaptar do que o resto da família. Ela é apenas um pouco condescendente, como se tivesse algo para ensinar a cada um deles. Ao invés de lamentar o tempo inteiro, canalizou seu amor pela arte e o fato de ter um olho bom para esse assunto para participar de atividades importantes da cidade (como o grupo de coral Jazzagals, ou simplesmente conduzir uma versão adaptada do musical Cabaret).

Moira também representa um lado pouco visto quando se trata de inclusão na TV. Como uma mulher mais velha, ela enfrenta uma nova fase na sua carreira e tem que lidar com o fato de que os papéis não chegam para ela com a facilidade de outrora. Sua empreitada eterna para tentar voltar ao showbusiness mostra, ainda que de forma indireta, um problema que é muito real na indústria hollywoodiana, que exclui mulheres mais velhas e lhe privam de certas oportunidades em razão da idade. Moira passa por tudo isso e mais um pouco. Mesmo assim, é incrível ver sua resiliência e, mais do que isso, seu amor pelo trabalho. Esse aspecto fica completamente claro quando a protagonista consegue um papel no terceiro filme de uma franquia chamada The Crows Have Eyes. Apesar de ser um longa B com um orçamento quase inexistente — e até mesmo ter uma qualidade bem duvidosa —, ela se empenha, vai atrás do diretor para se aprofundar no seu papel e dá sugestões. Eventualmente, claro, seu esforço é recompensado e a produção é adquirida por uma plataforma de streaming chamada Interflix (uma paródia óbvia da Netflix), com ótimas críticas que lhe abrem novas portas (até mesmo uma oportunidade para voltar e reprisar seu papel na novela Sunrise Bay).

Era muito mais fácil os roteiristas da série simplesmente levarem o desenvolvimento de Moira para um lugar distinto, com ela se conformando com a perda da carreira e tentando se encaixar na rotina pacata de Schitt’s Creek. Mas até o final, ela permanece fiel a sua essência e quando finalmente volta ao mundo glamouroso da indústria, é impossível não sentir um quentinho no coração. Afinal, seu esforço é notável e apesar dela ter feito amizades e conexões importantes durante os seis anos da série, sua carreira e o amor pela música são partes indispensáveis de Moira Rose. E ainda bem. Mas isso tão pouco quer dizer que sua jornada seja menos satisfatória, tocante e pessoal do que o do resto dos personagens.

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Quando os Rose chegam em Schitt’s Creek, eles não sabem como ser uma família. Como citado anteriormente, Moira e John têm um relacionamento incrível e são uma dupla unida, tendo viajado pelo mundo juntos, mas a relação que eles têm com os filhos é quase inexistente, sendo que eles desconhecem aspectos básicos da personalidade uns dos outros. De certa forma, esse também é uma das características mais interessantes do desenvolvimento de Moira em si. Sua dinâmica com David sempre foi mais ou menos estabelecida — já que eles compartilham o mesmo gosto refinado e algumas manias —, mas a protagonista e Alexis quase não conversam ou sequer parecem entender como elas devem se relacionar, ou qual é o padrão para um relacionamento entre mãe e filha. O que a série deixa claro, no entanto, é que não existe um certo ou errado no caso. Aos poucos, elas vão descobrindo um pouco sobre a outra, sobre o que gostam, seus sonhos e esperanças. O verdadeiro pay off dessa narrativa só fica realmente claro quando Alexis finalmente vai se formar no ensino médio (de forma tardia, já que ela tinha abandonado o colégio anteriormente): esperando que sua família não vá para a cerimônia, ela se surpreende quando a mãe e suas amigas do coral aparecem para cantar e prestar sua homenagem, da forma que só Moira sabe fazer.

Ninguém, inclusive, representa a evolução de Schitt’s Creek tanto quanto a própria Alexis. Quando o seriado começa, ela é apenas uma mulher que nunca precisou realmente se esforçar para conseguir qualquer coisa na vida. Seu tempo é gasto pensando em roupas, ou no próximo relacionamento que ela vai entrar e grande parte do seu discurso envolve alguma situação absurda que passou com algum famoso aleatório (aliás, essas pequenas referências que ela solta naturalmente nos diálogos foi com certeza uma das maiores inspirações para a criação de Tahani, de The Good Place, que faz basicamente a mesma coisa). Mas, no fundo, Alexis é uma pessoa não só completamente perdida, mas também muito solitária, algo que é refletido na forma como ela aborda seus relacionamentos amorosos. Sua jornada na série é, mais do que tudo, sobre independência e liberdade. Depois que ela se forma, vai procurar um curso na faculdade mais próxima e começa a explorar a possibilidade de seguir uma carreira na área de relações públicas — cuidando das aspirações artísticas da mãe e ajudando David na loja que ele, mais tarde, abre na cidade.

Ao mesmo tempo que tudo isso acontece, ela também trabalha e ajuda Ted (Dustin Milligan) na sua clínica veterinária. O personagem, que começou como apenas um terceiro elemento no romance entre Alexis e Mutt (Tim Rozon), se torna muito mais do que isso ao longo dos episódios e passa a ser o principal interesse amoroso da protagonista. É incrível ver como o desenvolvimento pessoal e profissional de Alexis anda lado a lado com o seu amoroso, sendo que Ted é, muitas vezes, a pessoa que mais acredita e incentiva a mesma. Quando Alexis finalmente percebe que está apaixonada por Ted, ela já tem meio caminho andado nos outros aspectos da sua vida: sabe o que quer, no que é boa, sabe que consegue ser independente e livre de relacionamentos que não são bons para ela. O fato de que ela tem esse desenvolvimento tão firme até ali só faz com que a junção dos dois seja ainda mais satisfatória, e o momento ainda mais bonito e aguardado. Eles são bons um para o outro, e isso é fundamental para a narrativa que o seriado cria.

Na medida em que a série vai avançando e chegando perto do seu final, os dois já não estão mais na mesma página. Ted consegue um emprego para estudar animais raros em uma ilha distante, e Alexis se aprofunda cada vez mais no futuro da sua carreira. Isso culmina em uma separação que acontece não porque eles deixam de se amar ou respeitar um ao outro, mas simplesmente porque eles esperam coisas diferentes da vida e de seus respectivos futuros. Poucas vezes na TV uma história de amor e o fim de um relacionamento foram abordados de forma tão natural e saudável. E como a própria Alexis mesmo aponta, os dois se ajudaram a chegar no ponto da vida que eles se encontram, o que faz tudo ser ao mesmo tempo doce e ainda mais dolorido.

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Assim como Moira, Alexis também aspira por algo mais do que viver em Schitt’s Creek pelo resto dos seus dias. Enquanto seus pais seguem para Los Angeles, ela decide morar em Nova York sozinha, onde vai buscar novas oportunidades de carreira. Mas seja com Ted ou até mesmo sua amizade com a garçonete Twyla (Sarah Levy), que também vai se desenvolvendo aos poucos e de forma tímida, a cidade deixa uma grande marca nela e se antes ela era incapaz de demonstrar sentimentos mais profundos e complexos, agora é o oposto.

Uma zona livre de homofobia

Durante o episódio “Honeymoon” da primeira temporada, é revelado que David Rose se identifica como pansexual. O personagem explica sua sexualidade após passar uma noite com Stevie, sendo que ele usa uma analogia com vinhos para explicar seus sentimentos: ele não se importa de beber vinho branco ou tinto, ou rosé. Ou até mesmo um rosé que foi um merlot, e vice-versa. “Eu gosto do vinho e não do rótulo”, ele diz para sua amiga. Mais tarde, John aparece falando para Roland que seu filho se identifica como pansexual.

Não é novidade que não existe uma grande quantidade de representatividade pansexual na cultura pop no geral. Os exemplos mais recentes podem ser encontrados em How To Get Away With Murder, já que o criador Pete Nowalk disse em uma entrevista para a Entertainment Weekly que a protagonista Annalise Keating (Viola Davis) é pansexual, bem como Donald Glover disse que seu personagem de Star Wars, Lando Calrissian, também é. Jack Harkness (John Barrowman) de Doctor Who e Torchwood é considerado pansexual, assim como Elim Garak (Andrew Robison), da série de Star Trek, Deep Space Nine. Nenhum desses casos, no entanto, é confirmado nas telas, sendo que a confirmação vem de entrevistas ou análises daqueles que estudam e consomem tais obras. É por isso que essa afirmação de Schitt’s Creek é tão importante, ainda mais apresentada com uma metáfora tão simples e bem feita.

A pansexualidade de David é explorada pela narrativa por meio da breve relação sexual que ele tem com Stevie (que depois se transforma em um dos melhores aspectos da série), e mais tarde na sua relação com Patrick (Noah Reid), a melhor e mais sensível história de amor apresentada pela série e, sinceramente, na história da TV. Os dois homens se conhecem quando David está prestes a abrir seu boticário na cidade, ao mesmo tempo que precisa de ajuda para tocar o lado administrativo do seu negócio. Logo, eles se tornam sócios. Patrick fica responsável pela parte financeira, enquanto David cuida da curadoria dos produtos e do controle de qualidade. Na medida em que eles se mostram uma dupla perfeita profissionalmente falando, eles também vão se apaixonando.

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O romance entre eles é importante e um divisor de água para os dois. Para David, é por causa da sua incapacidade de confiar nas pessoas e se entregar aos seus sentimentos. Mesmo com uma sexualidade segura e bem definida, a parte emocional é completamente negligenciada por uma insegurança que o acompanha há anos. Já para Patrick, os desafios que se apresentam tem haver com o fato de que ele nunca se relacionou com um homem antes, e não sabe como prosseguir. Mas o mundo de Schitt’s Creek é um mundo sem homofobia, e se esses empecilhos em outra série poderiam criar um abismo entre os dois, aqui serve para os unir.

Apesar de entender pouco sobre o universo das relações homoafetivas, Patrick não parece ter vergonha dos seus sentimentos, de perguntar para David e tentar entender o que ele está sentindo. Ele embarca no relacionamento de forma cautelosa, mas não evita demonstrar carinho em público, ou falar para o mundo o quanto está apaixonado. Quando ele vai se assumir para os pais, a resposta não poderia ser mais positiva dos dois. O conflito vem do fato de que ele não se sentiu tão seguro assim para compartilhar com os pais imediatamente, o fazendo após alguns meses depois de entrar no seu relacionamento. Tampouco existem problemas na cidade, e todos parecem aceitar a relação entre eles com a mesma naturalidade que eles oferecem para Ted e Alexis, por exemplo.

Cada vez mais, naturalizar as relações de casais do mesmo sexo e a forma como elas são tratadas na frente da tela é essencial. Abandonar o queerbating, parar de matar personagens LGBTQ+ para avançar a trama e desenvolver os relacionamentos de forma saudável é mais do que uma necessidade nesse ponto, mas sim um direito. Um dos meus casais favoritos da ficção é Gallavich, a junção de Mickey (Noel Fisher) e Ian (Cameron Monaghan) de Shameless. Apesar dos dois terem uma das relações mais genuínas da série, o desenrolar do romance é complicado sendo as consequências mais graves e tristes do que os próprios esperavam. Entre idas e vindas, trancos e barrancos, é dolorido ver como a homofobia e o mundo que eles cresceram afetam o que poderia ser algo frutífero e lindo. E esse tipo de relacionamento é mais comum do que o normal na TV.

É por isso que o mundo de Schitt’s Creek se tornou um aconchego e um refugio para milhares de pessoas LGBTQI+ ao redor do mundo. A narrativa de que existe um lugar seguro onde todo mundo pode amar quem quiser, do jeito que quiser, é uma das mais importantes já inventadas, e uma das mais pertinentes da série em si. No documentário Best Wishes, Warmest Regards, que aborda a jornada da produção durante suas seis temporadas, fica claro a importância de ter tal representatividade embutida na essência da obra, enquanto David Levy lê uma carta assinada por mais de 1800 mães, que falam sobre como a forma no qual o assunto é abordado na trama foi importante para elas e a forma que seus filhos exploram sua sexualidade e entendiam o amor. A mensagem é clara: relacionamentos queer estáveis, confortáveis, com família e amor tranquilos e reconfortantes existem. O relacionamento entre Patrick e David se tornou tão importante que, para promover o sexto e último ano da série, foram pendurados billboards do casal se beijando em cidades enormes como Nova York ou Toronto. Tal qual casais héteros de séries famosas também tinham tido.

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A história de David e Patrick faz sentido para a narrativa e evolui na medida em que os personagens estão prontos para dar o próximo passo. E apesar disso ser revolucionário em si, os momentos são naturais, sinceros e emotivos. Quando os dois dizem “eu te amo” um para o outro pela primeira vez, quando Patrick pede David em casamento no topo de uma montanha após uma escalada onde tudo deu errado, quando eles finalmente tem o “final feliz” que merecem com um casamento grande e pomposo… esse talvez é o impacto mais importante e duradouro que Schitt’s Creek deixou e sempre vai permanecer. E isso não é pouca coisa.

Se o final de Moira e Alexis as leva para longe da cidade, o de David é o oposto. Sua vida agora é em Schitt’s Creek, com seu marido e sua loja. É no mundo seguro e confortável que eles criaram juntos, na casa que eles compraram e vão morar. É no futuro, na possibilidade de envelhecerem e criarem um legado. O único personagem, além do próprio David, que carrega uma conexão mais fixa também com que eles construíram ao longo das temporadas é o próprio Johnny, que se torna parceiro de Stevie e começa a comandar o motel junto com ela.

Muito como Moira, Johnny é um homem apegado ao seu ofício. Mas no seu caso ao invés de ser arte, é o mundo dos negócios. Ao passar das temporadas, o protagonista lamenta não só a perda do seu dinheiro, mas também a falência da Rose Videos (seu antigo império) e passa grande parte do seu tempo procurando algo novo para se dedicar. Eventualmente, ele descobre que seu futuro jaz no próprio motel que os abrigou quando foram despejados. É assim que ele, Stevie e eventualmente Roland procuram expandir o Rosebud (nome que vem da junção Rose + Budd) e criam um plano de negócios que finalmente o leva para fora da cidade. Mas o maior mérito no personagem é, talvez, o fato de que ele é a cola que mantém todos eles unidos.

Quando eles mudam para Schitt’s Creek falidos e sem perspectiva de vida, Johnny é o primeiro a perceber que a relação entre ele e os filhos não é das melhores. Ele lamenta a perda do dinheiro e do estilo de vida, claro, mas parece se adaptar relativamente bem a sua rotina e, principalmente, parece querer reunir sua família e fazê-los mudar a forma que eles tratam uns aos outros. Um homem acolhedor e um grande entusiasta dos seus dois filhos, bem como da sua mulher, John é mais uma das figuras que desconstroem a masculinidade tóxica do homem provedor e pai de família na série. Algo que fica claro, por exemplo, quando ele tem uma conversa com Patrick quando ele e David estão prestes a casar, ou quando ele não hesita em acolher Stevie como parte de sua família.

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A música como parte fundamental da narrativa

Apesar de ser uma série de comédia e ter o humor como o principal catalisador para falar sobre os assuntos que a narrativa explora, Schitt’s Creek também usa de momentos musicais para expressar os sentimentos mais profundos dos seus protagonistas. Uma das cenas mais memoráveis de toda a série é quando Patrick declara seu amor para David em uma serenata de “Simply the Best”, de Tina Turner. É impossível saber o que é mais lindo na cena: a voz de Patrick e o cover em si, a reação de David — que passa de vergonha para amor, satisfação e um afeto quase invejável —, ou até mesmo a de Moira, que fica comovida com o ato de presenciar uma declaração amorosa tão imponente e ainda por cima vê-la dedicada ao seu filho.

Mas esse momento, apesar de ser icônico, não é o mais importante da série. Na quarta temporada, Moira se encarrega de conduzir uma versão do musical da Broadway, Cabaret. Quem fica com o papel da protagonista Sally é Stevie, que tem um momento libertador nos palcos, quando ela canta “Maybe This Time”. E para entender mais sobre esse momento em específico, é preciso falar sobre a jornada da personagem dentro da série.

Quando a família dos Rose chega na cidade, ela é a única funcionária do hotel e passa grande parte do seu tempo atrás do balcão. Stevie não tem grandes aspirações, e não sabe que tipo de vida ela pode levar fora de Schitt’s Creek, onde nasceu e foi criada. Ao contrário da família dos protagonistas, cuja principal missão na série é aprender e resgatar formas melhores de lidar uns com os outros, além de não ser tão dependente de dinheiro, Stevie embarca na sua própria jornada de independência, algo que é contado principalmente por meio da sua amizade improvável com David e que, mais tarde, a transformam em uma das melhores personalidades dentro do seriado.

A relação entre Stevie e David começa tímida, sendo que por um momento ali os dois compartilham uma breve atração sexual. Os roteiristas, no entanto, resolveram cortar essa narrativa e deixá-los apenas como amigos, uma decisão que se prova certa e precisa — o que os dois compartilham é algo muito complexo e importante. Veja bem, quando os Rose chegam e ficam no motel onde ela trabalha, uma revolução é colocada em moção. Apesar de não entender exatamente qual seu lugar no mundo ainda, Stevie é segura de si, engraçada, sarcástica e vem de um mundo e uma realidade onde as coisas não são tão fáceis, como foi para David. Ao mesmo tempo, David traz uma perspectiva nova e refrescante para ela, abrindo seus novos olhos para todas as coisas que podem ser.

O desenvolvimento de Stevie é com certeza mais calmo e gradual do que o dos Rose. O crescimento da família é tão espalhafatoso e chamativo quanto eles e as roupas caras que eles usam, enquanto a evolução de Stevie é quieta e tímida, mas ao mesmo tempo corajosa e extraordinária. Quando sua tia morre e deixa o hotel para ela como herança, a personagem se vê num beco sem saída, sem conseguir decifrar qual é o próximo passo. Ao entrar em uma parceria inesperada com Johnny para tocar o hotel, não só ela passa a ser parte fundamental da série e até mesmo uma espécie de adição à família dos Rose, como também muda radicalmente da recepcionista para uma mulher de negócios. Mas ela não para por aí: ao perceber que todos ao seu redor estão evoluindo e está ficando para trás, ela sai em busca de novas possibilidades, empregos, amores. Ela aspira por algo novo, por viver.

Toda a sua jornada, esses sentimentos e desejos, são culminados e explorados durante sua apresentação de “Maybe This Time”. Um pouco antes de subir aos palcos, ela compartilha suas inseguranças com Moira, que dá um dos melhores discursos da série, falando sobre a forma que ela sempre admirou Stevie e o jeito como ela lida com a vida. Então, a personagem sobe aos palcos, onde entrega uma performance que começa tímida, mas se torna poderosa e emocionante, muito como sua jornada pessoal na série. É possível perceber o momento que ela se solta, como se estivesse se reinventando ali mesmo. Toda essa sequência, inclusive, é um dos momentos que prova a força de Schitt’s Creek e a dinâmica que ela cria entre os seus personagens, que é sempre sobre crescimento, amor e lealdade.

“Qual é o seu segredo Stevie? Você vive em terra firme, se recusando a ser qualquer outra coisa além de você mesmo. Eu nunca pensei que iria falar isso para alguém nessa cidade, mas você é muito, muito legal. Se você resolver partir daqui, ou se resolver ficar, esse aspecto nunca vai mudar.” 

É importante falar sobre a forma como a produção explora suas personagens femininas, como elas crescem e ajudam umas às outras, bem como tem nuances e personalidades completamente diferentes. Stevie não é vaidosa e artística como Moira, ou sequer tem a personalidade explosiva e chamativa de Alexis. Ela é uma mulher do interior, satisfeita em usar calças jeans e blusas xadrez todos os dias, mas que não se conforma com o que a vida lhe oferece e procura sempre mais. Ela é uma ótima parceira para Johnny (com quem ela desenvolve uma das melhores relações da série), e a única amiga que David teve na vida, algo que ele admite para ela em mais uma das cenas preciosas da obra (aliás, os dois são os donos do bordão “Best Wishes, Warmest Regards”, que deu nome ao documentário), é uma mulher de negócios e dona do seu próprio destino.

Em meio a tantos personagens e desenvolvimentos incríveis, é quase impossível não desejar que outros tivessem tido a mesma atenção. Roland e sua mulher Jocelyn (Jennifer Robertson) são alguns exemplos que me vêm a cabeça, mas até eles têm seus breves momentos. Ronnie (Karen Robinson), a única personagem negra da série, e lésbica, também merecia mais atenção, bem como Twyla, que tem participações que são sempre tímidas, mas que representam o melhor da essência da série: otimista e leve.

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Entre os diálogos inteligentes e dinâmicos, o humor inclusivo e um mundo extremamente aconchegante, Schitt’s Creek é uma daquelas raras produções que coloca os personagens como prioridade e, por isso, triunfam. Cada aspecto da série parece ser recheada de afeto e carinho, criando uma história de amor que vai prosperar e alcançar novas audiências com o passar dos anos. Um pequeno milagre da cultura pop, o seriado é realmente maravilhoso como dita o rumor (e até um pouco mais).


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.

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