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Succession: as crianças quebradas de Logan Roy

Vendida como um drama sério durante sua promoção para a primeira temporada, a gigante Succession se trata, na verdade, de uma sátira shakespeariana com um humor afiado e completamente consciente da sua estrutura narrativa. E a série não funcionaria caso contrário. Mais do que isso, ela não seria tão eficiente em falar sobre o capitalismo (e dos seus problemas) de forma tão clara quanto faz se não fosse exatamente por esse aspecto.

Atenção: este texto contém spoilers

No quinto episódio da segunda temporada de Succession, “Tern Heaven”, os Roy, a família que conduz o conglomerado midiático chamado Waystar Royco, tem que participar de um jantar para tentar cair nas graças de uma outra família dona de sua concorrente, tudo isso para que eles possam comprá-los e se tornarem uma empresa com um fronte único, que não poderá ser desfeito ou ameaçado. O único problema é que na hora do jantar, quando todos eles estão reunidos e o verdadeiro teste tem início, os Roy começam, mais uma vez, a discutir sobre quem será o herdeiro do patriarca Logan (Brian Cox). Ainda que o façam de maneira civilizada, mas passivo-agressiva, como estão bem acostumados a fazer, toda a ocasião se transforma em algo constrangedor, mas divertido de assistir. Quando Shiv (Sarah Snook) e seu marido Tom (Matthew MacFadyen) sobem para o quarto, ele vira para ela e diz algo como: “p*ta merda, essa foi a coisa mais Roy que já vi acontecer”. Mais tarde no mesmo capítulo, e apesar do fracasso no jantar, Logan consegue fechar o acordo com um oferecimento maior de dinheiro. No final da reunião, ele fala sobre o seu “quote” favorito de Shakespeare: “aceite a porcaria do dinheiro”. 

Succession é um sucesso absoluto dentro da HBO e com apenas duas temporadas já conquistou um público fiel e, em 2020, fora indicada em todas as 18 categorias em que se inscreveu ao Emmy Awards, incluindo Melhor Série Dramática, da qual saiu vencedora. Existem muitos episódios espetaculares dentro da segunda temporada da série, mas citar “Tern Heaven” significa evidenciar o que fez, e faz, com que Succession se tornasse tão grande e amada: uma sequência de eventos absurdos e caóticos, que se desenrolam por causa de pessoas moldadas pelo dinheiro — em sua abundância e medo de perdê-lo —, ao mesmo tempo em que buscam a aprovação do pai a qualquer custo. Isso tudo envolto em um texto que é brilhante ao mesmo tempo em que engraçado, que explora a persona dos personagens para quando longe do patriarca, assim como grandes planos sequências com a família toda reunida, onde encarnam as figuras que são para sobreviver dentro do mundo selvagem dos Roy.

De muitas formas, Succession é o anti-This is Us. As duas são séries sobre família e caíram na graça do público e da crítica, mas enquanto This is Us tem uma história mais água com açúcar, leve e cotidiana, que destaca o amor como maior legado, Succession é o seu oposto, girando em torno do poder, do dinheiro e da ambição descontrolada. Nas duas famílias, o papel do patriarca é considerado a verdade absoluta, mas enquanto Jack (Milo Ventimiglia) faz de tudo para acolher e entender seus filhos, apesar de suas diferenças, Logan utiliza suas fraquezas para fazê-los ceder para o seu lado. Ele manipula, maltrata e até mesmo agride fisicamente, e aos poucos cria uma teia de onde nenhum de seus familiares consegue sair. Mas as crianças de Logan Roy são muito mais do que aparentam ser no início — e talvez nem mesmo Logan perceba direito isso –, em especial Kendall (Jeremy Strong), Shiv e Roman (Kieran Culkin).

Existe um certo mistério permeando a narrativa de Succession quando se trata da figura de Logan em si. O público sabe que ele é um chefe de família e dono da Waystar. Sabe também que ele tem um irmão chamado Ewan (James Cromwell) com quem carrega um relacionamento complicado e que ambos foram morar nos Estados Unidos ainda pequenos, apesar de terem nascido na Escócia. Fica claro desde o começo que eles tiveram uma infância miserável e que isso moldou — e muito — a personalidade dos dois, mas a história, até então, não entra em situações específicas sobre esse passado. Sabemos, por exemplo, que a mãe é citada como uma figura dura, bem como uma situação delicada envolvendo a irmã dos dois – que, quando mencionada para Logan, desperta seu lado mais nervoso e cruel.  Enquanto a maioria das produções optariam por contar essa trama e amarrar as pontas, talvez até mesmo por meio de flashbacks, existe um ar de dúvida que paira eternamente sobre o imaginário criado por Succession, e perpetua essa ambiguidade da personalidade de Logan, sendo, por esse motivo, ainda mais difícil de lê-lo.

Um tratamento parecido acontece com algumas histórias que os próprios filhos de Logan contam de suas infâncias. Eles discutem situações que se passaram anos antes e percebem que cada um deles tem uma perspectiva do que realmente aconteceu. Apesar deles nem mesmo perceberem, ao telespectador fica óbvio que muitas vezes, essas determinadas situações foram induzidas e manipuladas pelo próprio pai, que mesmo naquela época já puxava cordinhas para que seus filhos pensassem de acordo com suas vontades e necessidades. Mas, ao contrário do que acontece com o Roy-pai, o telespectador sabe exatamente quem são os filhos de Logan – e o que crescer ao redor de um homem como esse fez com que eles se tornassem.

Number #1 boy

Logo no primeiro episódio somos introduzidos a uma versão mais confiante de Kendall, aquele supostamente cotado para assumir, e logo, o legado do pai frente a empresa Waystar. Nesse contato inicial, o personagem parece ser mais um estereótipo do playboy com dinheiro e ambição demais, cujo a motivação é passar por cima das pessoas para chegar ao seu objetivo: no topo. Sua linguagem corporal, o jeito como fala e se veste, ou até mesmo as companhias que mantém, são clássicos indicativos de que essa é sua assinatura, e não existe nada além disso ali. Porém, as coisas mudam quando Logan diz que Kendall não assumirá a empresa agora – tampouco com previsão para que o faça.

O mais engraçado na trajetória inteira de Kendall é perceber que, talvez, se ele tivesse sido criado em um ambiente normal, teria sido uma pessoa decente. Na primeira temporada, quanto mais ele tenta manobrar para tirar a empresa do pai das suas mãos — já que o velho literalmente urina no chão do seu escritório para marcar território e sofre para lembrar de comandos básicos —, mais ele parece se afundar. Outros aspectos da sua personalidade aparecem: seu vício em cocaína e como ele luta todos os dias para ficar sóbrio (mesmo que ninguém ao seu redor ligue muito para sua saúde mental e física), seu divórcio recente com a mulher e o fato de que ele não consegue superar a perda sua família causada pelas drogas e, principalmente, a forma quase patética pelo qual ele busca aprovação de Logan. Essa necessidade de aprovação é algo que o pai está completamente ciente, e usa disso ao seu favor em cada momento que os dois estão juntos.

O final da primeira temporada sela de vez a dependência de Kendall em relação ao pai. Quando ele está prestes a dar o golpe final e tomar a empresa da mão de Logan, ele se droga “em comemoração” com um dos garçons do casamento de Shiv. Assim que ele sente precisar de mais, os dois saem de carro e acabam sofrendo um acidente onde o jovem (que tinha sido humilhado por Logan horas antes e não ganha nem um nome na narrativa, de forma proposital) morre, enquanto Kendall sai vivo. Por óbvio, rapidamente Logan descobre o que aconteceu utiliza a informação ao seu favor, manipulando para que Kendall não siga em frente com o golpe para tomar a empresa enquanto se safa de arcar com as consequências. O que faz tudo ficar tão assustador é como Logan faz com que tudo isso pareça um ato de bondade, como se estivesse ajudando Kendall. O próprio personagem, inclusive, parece acreditar nisso. “Você é meu garoto número 1”, Logan diz para ele.

Na segunda temporada, o confiante e playboy Kendall desapareceu de vez. Ele ainda está ali na superfície, usando drogas e mantendo a postura, mas basta olhar com mais atenção para saber que existe algo muito errado na forma como age. Kendall está desconectado do mundo e completamente vazio, sem conseguir entender direito o que aconteceu com ele e com o fato de que, mesmo que de forma indireta ou sem intenção, de certa forma, ele matou alguém. Kendall não sofre as consequências de seus atos e, apesar de viver em uma família onde as pessoas não estão acostumadas a seguir as regras da sociedade (como as pessoas ricas não costumam fazer), ele não consegue superar o que aconteceu. A atuação de Jeremy Strong é brilhante e coloca ainda mais camadas no personagem, que é com certeza um dos mais complicados da série. Existe uma cena específica onde ele e Shiv estão conversando e ele pede, por favor, para que ela cuide dele. E apesar de todos os instintos apontarem para o fato de que você, telespectador, não devesse estar torcendo por Kendall, existe uma pontada de empatia sempre presente ali que é quase impossível ignorar.

Toda a sua trajetória é para reforçar um aspecto: Kendall Roy é um homem perdido. Nesse ponto, ele bebe, se droga, faz tudo que o pai pede para fazer, não se importa com as consequências e contempla o suicídio mais de uma vez. Ignora sua bússola moral. Fazendo, até mesmo, uma homenagem humilhante para o patriarca, que rende uma das melhores e piores cenas da série, tudo ao mesmo tempo (L to the OG!). Mas são as decisões de Logan que empurram Kendall para o lugar que ele precisa estar.

O primeiro evento que é decisivo na mudança de Kendall durante seu arco na segunda temporada é o fato de que Logan o faz visitar os pais do garçom que matou no final da primeira temporada. Os parentes do menino acham que Logan é em parte responsável por sua morte, já que algumas horas antes ele tinha gritado e humilhado o jovem. Tentando resolver a questão, ele arrasta Kendall para lá sabendo muito bem dos efeitos que isso terá na mente do filho. Depois, nos episódios finais, a Waystar tem que resolver os problemas de ter encoberto durante anos esquemas de abuso sexual e psicológico (e até mesmo assassinato) dentro da empresa. Para isso, eles têm que escolher um bode expiatório para tomar a culpa. Ao invés de colocar Tom no centro, já que ele era o chefe da divisão responsável, é Kendall quem Logan escolhe para admitir os problemas, ao mesmo tempo que confessa nunca ter realmente pensado nele como seu sucessor. “Você nunca teve o necessário”, ele diz. É essa mistura de elementos que impulsiona Kendall a finalmente sair do seu estupor, rebater seu pai, não deixar que ele o empurre até o fundo do poço.

É quase poético que sua necessidade de lutar para não se afundar de vez tenha se alinhado com a de Greg (Nicholas Braun). Greg sempre foi, de certa forma, um forasteiro dentro da estrutura familiar dos Roy. Neto do irmão de Logan, o personagem começou inseguro na narrativa, como um homem-gigante e puxa saco, sem nada para acrescentar. Sua jornada logo se entrelaçou com a de Tom e durante os 20 episódios ele foi colocado para baixo, abusado e transformado em uma mula para triturar e esconder papéis pertinentes aos casos de abuso dentro da empresa. Mas assim como todos os personagens de Succession, Greg é muito mais do que aparenta ser. Após guardar os documentos que foi mandado para destruir, ele se junta com Kendall e, na hora que a culpa dos eventos recai sobre Logan, é Greg que está ao seu lado.

Aos poucos, Kendall e Greg se tornam o coração da série. Eles são impulsionados por ambição, como todos ali, mas existe algo a mais que os move para a frente. E seja pelo coração mole e até meio patético de Greg, ou simplesmente porque Kendall tem a jornada mais dura de acompanhar, eles sempre parecem se encaixar bem no centro da narrativa.

É sobre poder (e humilhação) 

Sempre que penso em Roman Roy me vem na cabeça a cena em que está observando um lançamento de foguete que ele mesmo coordenou a pedido de Logan, para que começasse a assumir mais responsabilidade dentro da Waystar. Quando a coisa toda explode e dá terrivelmente errado, ele simplesmente pega o celular, coloca no bolso e finge que nada aconteceu. Interpretado por Kieran Culkin, não existe outra palavra para descrever Roman no começo que não seja babaca. Muito como Kendall, ele também carrega uma personalidade de playboy, mas no início da trama, Roman não parece muito interessado em ser o grande herdeiro do pai. Ele pula de relacionamento em relacionamento, e parece estar sempre com uma resposta absurda e altamente ofensiva na ponta da língua. Roman é imaturo, irresponsável e não possui nenhum foco, e ainda assim parece ser confiante em si o suficiente para deixar qualquer pessoa que realmente o conheça chocada com tal habilidade. No primeiro episódio, humilha um menino latino oferecendo uma grande quantidade de dinheiro para sua família caso ele acerte uma jogada no beisebol – o que ele não acerta, obviamente. Desde o primeiro momento da série é quase impossível não detestar Roman porque, ao contrário da maioria dos homens escrotos, ele não faz questão nenhuma de esconder o quanto ele é, sim, todas essas coisas. O conceito do “cheguei onde estou por sacrifícios e muito trabalho duro” é algo que você nunca vai ouvir de Roman, porque ele sabe que não é verdade — e não poderia ligar menos para isso.

Toda essa imagem é construída com perfeição até o momento em que você percebe que Roman é, na verdade, o maior saco de pancadas de Logan — às vezes de forma literal. Ele é considerado pelo pai o elo mais fraco e apesar de dar a entender que não liga para quem eventualmente vai assumir o legado do patriarca, sua necessidade de sentir aprovação é talvez a maior de todas entre os irmãos. E sem dúvidas o afeta de forma profunda, mesmo que sua assinatura não sejam as drogas e bebidas como Kendall, ou bater de frente com o pai, como Shiv. A trajetória de Roman dentro da série é com certeza a mais sutil e menos dramática, mas sua necessidade de se provar para o pai e principalmente para os irmãos faz com que ele tenha que enfrentar alguns demônios, mesmo que ele nem mesmo entenda alguns deles.

Existem dois pontos fundamentais na narrativa para entender Roman. O primeiro é quando eles começam a discutir o fato de que Connor e Kendall tinham mania de prender o mais novo em uma jaula no canil e alimentá-lo com comida de cachorro. Algo que os dois irmãos mais velhos dizem não ter acontecido bem assim: Roman, na verdade, pedia para ser preso e tudo que ele comia era bolo de chocolate. Como resultado dessa “atormentação”, Roman começou a fazer xixi na cama e, eventualmente, Logan o mandou para a escola militar. Como foi apontado antes pelo texto, ele é considerado a parte mais “fraca” da família e o patriarca jamais iria admitir isso de algum dos seus parentes (assim como ele vê o vício de Kendall e o fato de Shiv ser uma mulher como uma fraqueza). O segundo é sua incapacidade de engajar em relações sexuais. Apesar de ter namoradas e apresentá-las para a família, ele nunca faz sexo com as mesmas. Quando é questionado sobre isso por uma das companheiras, Roman pede para que ela se finja de morta durante o ato. Roman só consegue ter algum tipo de prazer quando Gerri (J-Smith Cameron) xinga-o enquanto ele se masturba (ou quando ele faz a mesma coisa depois de ser promovido e ganhar seu próprio escritório).

No começo, confesso que eu tinha muita dificuldade em entender porque, afinal, Roman agia daquele jeito. Ele é um homem gay com medo de assumir sexualidade e por isso não gosta de fazer sexo com as namoradas? Ou Roman tinha sido abusado quando criança? É, inicialmente, difícil ter um senso do que realmente acontecia com Roman. Mas, apesar de nada ser dito de forma concreta pela trama, com o passar do tempo fica claro que o personagem tem o que pode ser uma mistura perigosa de ódio por si mesmo, insegurança e dificuldade de se conectar e criar intimidade. É claro que os eventos da sua infância — apesar de não serem explorados com total honestidade pela série e sim de forma ambígua — e a forma como seu pai lhe tratou pela maior parte da vida são os fatores chaves para criar o Roman que o seriado conhece e explora, bem como todos os seus problemas. Seu relacionamento com Gerri é um bom exemplo: ele, que só conhece comportamentos tóxicos e humilhação, vê que ela oferece isso durante o ato sexual. Ao mesmo tempo, ela também parece ser a única que oferece uma mão para ele, ajudando-o para que ele se torne o próximo sucessor de Logan. O que faz com que, automaticamente, ela se torne uma figura de afeto e acolhimento, algo que lhe foi negado pela maior parte da sua vida (já que ele é o abandonado da família, que foi mandado para a escola militar muito jovem e sempre foi excluído pelos irmãos mais velhos).

No final do segundo ano, existe uma mudança presente na atitude de Roman. Ele ainda é o mesmo cara babaca, mas há um pouco mais de maturidade e responsabilidade pelo cargo que ocupada na empresa do pai. Ele até mesmo tenta defender Kendall, tentando convencer o patriarca de que o irmão não é a pessoa certa para assumir a responsabilidade pelos casos de abuso dentro da Waystar. O relacionamento entre Gerri e Roman, apesar de ser um dos mais complicados da obra, é com certeza um fator a ser contabilizado por essa mudança. A dinâmica não foi realmente explorada até o final, mas acredito que vai ser fundamental para o arco do protagonista e o caminho que ele vai trilhar daqui para frente.

Um aspecto interessante na narrativa de Succession é que em nenhum momento a série tenta usar o passado complicado dos personagens, ou o abuso que eles sofreram do pai, como uma justificava para as ações e escolhas ruins que cada um deles toma de forma constante. O que o roteiro faz é utilizar a história que eles criaram em uma área cinza, e não preta e branca, para acrescentar camadas para os personagens, dar profundidade e nuance para que eles saiam do status clichê no qual são apresentados inicialmente. Isso pode ser visto principalmente nas trajetórias de Kendall e Roman.

“Lady duty, soft skills shit work”

Em certo momento da história, Rhea Jarrell (Holly Hunter), que está trabalhando como uma espécie de consultora para Logan, diz para ele que Shiv é “menos esperta do que a própria pensa que é”. O que, na verdade, não é nem um pouco o caso. Siobhan Roy, ou Shiv, para os mais chegados, é uma personagem complexa. Comparada aos irmãos, tem um viés político que os estadunidenses chamam de “liberal”, algo que, nesse caso específico, apenas significa que ela acredita que mulheres são pessoas e têm direitos (…porém nem sempre). Shiv é realmente esperta e inteligente de uma forma quase engenhosa, e sabe moldar as situações apresentadas ao seu favor. Ela também é a única filha mulher de Logan Roy e sabe bem que isso não chega sem quaisquer consequências. Até certo ponto, ela nunca tinha sido considerada apta para assumir a sucessão da Waystar. E, enquanto Kendall parece sempre lutar para “conquistar” seu respeito pelo pai dentro da empresa, Shiv tem os seus próprios métodos.

Na primeira temporada, isso significa trabalhar para um político cuja a plataforma é completamente voltada contra tudo o que a Waystar Royco representa. Até certo ponto, a ideia funciona. Shiv ensina o político um pouco mais sobre como funciona a cabeça de Logan, bem como encontra os pontos fracos da empresa, para que ele possa montar sua campanha a partir desse raciocínio. Nesse processo, Shiv chama a atenção do seu pai e entra no seu radar, talvez pela primeira vez na sua existência. Com a segunda temporada, Shiv é posta como alguém com “potencial”, e Logan pergunta se ela gostaria de ser a sua sucessora, algo que a personagem aceita sem pensar muito sobre o assunto. O único problema é que o processo para Shiv suceder o pai não é o mesmo que foi para Kendall ou seria para Roman e Connor. Porque Shiv é uma mulher, seu treinamento terá que vir do básico, e tudo será dez vezes mais árduo de conseguir. Shiv indaga o pai: “É por que sou mulher?” A resposta é, sem hesitação, sim. Não é Logan que faz as regras, ele explica, mas é assim que as coisas funcionam.

De longe, Shiv talvez realmente seja um símbolo da aquisição de poder e autonomia por parte da mulher. Como já apontado antes, ela é mais inteligente e ardilosa que os irmãos e não tem medo, nem por um segundo, de lutar pelo o que quer. Sem contar suas impecáveis roupas e um estilo que mistura o clássico com o moderno. De perto, no entanto, sua política é menos liberal do que ela gostaria de acreditar. Afinal, ela quer herdar o império do seu pai e, para isso, precisa da aprovação do mesmo. Apesar de cometer alguns erros no caminho, Shiv parece disposta a cruzar a linha do certo e o errado para conseguir o que quer, algo que fica claro quando uma testemunha sobre o abuso dentro da Waystar aparece para testemunhar contra a empresa.

Quando Kira (Sally Murphy) entra na jogada, pronta para soltar a língua com tudo que aconteceu dentro da empresa, Logan manda Rhea (que está atuando como CEO na ocasião) e a própria Shiv para lidar com a mulher e tentar descobrir o que ela realmente tem contra eles. Quando as duas chegam no local, Rhea diz que aquilo não parece ser certo; tentar convencer uma mulher que sofreu abuso por anos em seu local de trabalho a não falar é, na percepção de Rhea, algo errado (em parte porque é, mas também porque Rhea está preocupada com sua reputação). Mas Shiv apenas responde: “No, it’s lady duty, soft skills shit work” (em tradução literal: não, é trabalho de mulher de merda para mulheres com habilidades suaves). Ela não percebe que Rhea está falando sobre a situação em si, não sobre o fato dela ser mulher e ser mandada para fazer um trabalho que nunca seria considerado para Kendall ou Roman. De qualquer forma, Rhea desiste e Shiv vai falar com Kira, e o que acontece na sequência é triste e revoltante.

Apesar de acreditar que 90% de Succession é realmente uma sátira, existem certos segmentos onde é impossível ignorar o peso dramático apresentado pelo roteiro — onde o humor desaparece sem deixar vestígios, simplesmente porque o que os personagens estão fazendo ou dizendo é mais sério do que o normal para os padrões mostrados até então. A série traça essa linha com certa substância e a cena em que Shiv tenta convencer Kira a deixar seu testemunho de lado é um desses momentos. Ela faz isso tentando usar sua honestidade como uma arma, criando uma manipulação sutil, porém eficaz. Shiv diz para Kira que quer mudar as coisas dentro da Waystar e quer fazer ao seu lado, ao mesmo tempo que deixa claro que ela não é confiável e que ela tem uma agenda: proteger a empresa da família. Mas que, ao mesmo tempo, os responsáveis pela investigação também têm um objetivo final e o bem-estar de Kira é a última prioridade na lista de cada um deles. O que não é exatamente mentira, mas não faz com que tudo ali seja menos ilegal e completamente antiético.

No final, Shiv convence Kira a não depor contra a empresa do pai. E, claro, sua verdadeira personalidade vem à tona: não a da mulher liberal que tem um viés político razoável — ao contrário do resto da família —, mas sim alguém que está tão acostumada com seu status, estilo de vida e privilégio que lutaria por tudo isso, e pela possibilidade de se tornar a sucessora com unhas e dentes. Shiv, no fim do dia, quer o que é melhor pra ela e ela somente. Isso faz com que Shiv seja uma personagem muito interessante do que ela foi montada para ser na superfície — além da série não deixar ela cair no conto do girlboss: ela não é alguém que devemos admirar.

Depois da segunda temporada, minha conclusão mais pertinente foi de que Shiv Roy é, dos filhos, a mais parecida com Logan. Seja na forma como ela lidou com Kira ou na maneira como trata seu marido Tom, Shiv se mostra mais implacável, ambiciosa e até mesmo cruel do que seus irmãos. É óbvio que as manipulações do seu pai ainda afetam a forma como ela vê o mundo, mas os efeitos parecem ser diferentes nela em comparação aos homens da família. E tudo isso só faz com que ela se torne um dos melhores personagens da série.

“You can’t make a Tomelette without breaking some Greggs”

É importante dar os parabéns para Matthew Macfadyen, que passou de interpretar um dos mocinhos mais amados e queridos da literatura, um herói de Jane Austen, para um homem completamente amoral, sem escrúpulos e uma das figuras mais pomposas e canalhas que já existiu no mundo das séries. Mais do que isso, fez isso sem necessariamente estragar sua imagem como Mr. Darcy (fiz o teste e resolvi rever Orgulho e Preconceito outra vez depois de Succession, só para ver se o retrato de Macfadyen como Tom tinha arruinado o que considero até hoje a adaptação perfeita e um dos meus filmes preferidos da vida. É meu prazer dizer que não, não arruinou. Mas não foi falta de tentativas).

Quando alguns personagens de Succession chegam ao fundo do poço em suas breves existências, a narrativa não tem medo de retratá-los da forma mais patética que existe. E em alguns casos, é possível sentir até mesmo dos mesmos e da situação em que eles estão inseridos. Essa mistura de sentimentos é uma prova de que a narrativa funciona de forma espetacular dentro do seu próprio escopo e, de alguma forma, Tom parece ser o catalisador da produção quando se trata de causar sensações distintas e que se contradizem.

Primeiro de tudo, seu sobrenome é Wambsgans. Como se isso não fosse o suficiente na fila da desgraça, ele não tem o respeito de nenhum dos Roy, nem mesmo o da própria mulher. Ao longo da primeira temporada ele é jogado de um lado para o outro dentro da Waystar e acaba se tornando o chefe do departamento de cruzeiros — onde tem que lidar com os maiores problemas da empresa e acobertar o esquema já citado no texto, que inclui de abuso sexual e psicológico até mesmo assassinato de pessoas que eles consideram “ninguém”. No caso, imigrantes. Apesar da sua inteligência claramente limitada e a forma como ele não parece nem um pouco preocupado com o que aconteceu ali, apenas de que ele precisa esconder os casos sem causar sua demissão, Tom lida com isso da melhor forma que ele consegue. O que, francamente, não quer dizer muita coisa.

Quando todos esses anos de corrupção finalmente começam a aparecer, ele está bem no meio da confusão e quando é chamado para depor, as coisas realmente ficam feias para o seu lado. A entrevista é tão incrivelmente mal feita e despreparada que é quase impossível ignorar sua reação perante a própria ruína. Mesmo que ele tenha sido estúpido o suficiente para enviar vários e-mails para Greg sobre o assunto, usando inclusive um dos trocadilhos mais tristes da história. “You can’t make a Tomlette without break a few Greggs” (uma versão bizarra de você não pode fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos). Quando ele tenta confrontar Logan sobre o assunto, depois de passar por humilhação seguida de humilhação (Boar on the floor!), e rouba um frango do seu prato, em uma clara tentativa falha de intimidação, é impossível não rir com escárnio.

Na vida pessoal as coisas não são muito melhores. Depois de passar um bom tempo o traindo, Shiv resolve contar para ele na noite do seu casamento que quer um relacionamento aberto. Um desejo que ele claramente não compartilha, mas aceita, pois, sua vontade de pertencer como um Roy é agora o fator mais determinante da sua personalidade. Aos poucos, a protagonista vai destruindo a personalidade de Tom, pedaço por pedaço, até o momento que ele finalmente toma coragem para enfrentá-la e diz que é, na verdade, bem infeliz.

Tudo isso, talvez, seria o suficiente para fazer com que Tom fosse um dos personagens mais queridos de Succession, e durante alguns momentos a possibilidade de sentir por ele é real e palpável. Mas então ele aparece em uma cena aleatória usando um dos funcionários como uma mesinha de centro, apoiando seus pés no mesmo, ou simplesmente sendo a pior pessoa possível com Greg, que não ofereceu nada além de sua lealdade para todos eles. E aí todo esse fio de empatia vai pelo ralo no mesmo minuto. Na lista dos 100 melhores personagens do século XXI, o site Thrillist colocou Wambsgans na 18ª posição. Na ocasião, ele foi descrito como um “oportunista frio com ataques de crueldade.” É justamente isso que faz com o ultimato de Tom na narrativa seja o mais difícil de prever. Ele finalmente vai cansar de ser o cachorrinho de Shiv e dos Roy e buscar vingança? Ou ter um ataque de nervos? As possibilidades são muitas, e as apostas também.

O único que continua tendo a trajetória ainda mais difícil de traçar dentro da série é o próprio Connor, o primogênito cujo desejo de agradar o pai só não é maior do que sua vontade de fazer absolutamente nada, a não ser cuidar do seu rancho no Novo México e alimentar a profissão da sua namorada Willa (Justine Lupe), uma ex-garota de programa que agora é dramaturga. Isto é, até a hora que ele resolveu se candidatar ao cargo de Presidente dos Estados Unidos. A questão com Connor é que nem sequer a narrativa parece levar ele a sério (ainda menos do que leva os outros personagens) e ele é sempre uma sombra dos irmãos. Sua opinião não conta. É difícil dizer se existe algum ultimato para o personagem ou se simplesmente ele é o que é, e as coisas não vão mudar muito nesse sentido. De certa forma, Connor me lembra um membro de qualquer realeza que ficou perdido no seu próprio papel. Muito ocupado em gastar o dinheiro alheio, preso a história (ele adora colecionar peças e figuras históricas) e sempre que acorda está um pouco mais irrelevante do que no dia anterior.

Mesmo assim, não consigo negar que quero ver um pouco mais sobre sua trajetória dentro da política. Ele é incompetente e um fanfarrão de primeira, mas é impossível não perceber que ele tem o mesmo perfil de vários políticos de hoje em dia. No mundo absurdo de Succession, tudo pode acontecer.

Na verdade, a característica de realeza é algo que aparece também em outros aspectos de Succession. Assim como membros de uma monarquia, a vida dos Roy é assunto discutido em tabloides de forma constante e as regras das pessoas comuns estão longe de se aplicarem aos mesmos. As músicas de Nicholas Britell, inclusive, só reforçam esse aspecto e dão um ar épico para cenas onde eles simplesmente andam pelas ruas da Inglaterra com uma comitiva de carros maior do que a da própria Rainha Elizabeth II. É quase como se a série fosse uma sátira da própria The Crown — e o tratamento de classe que a obra recebe dentro da Netflix, com um orçamento exorbitante e pomposo, onde os dramas da família real ganham proporções novelescas e mais grandiosas do que mereciam.

Na abertura da série, a música tema composta por Britell mistura imagens da sociedade hoje com filmagens clássicas de família, onde os Roy aparecem em um grande jardim, apenas interagindo entre si. Naquele cenário, Connor, Kendall, Shiv e Roman ainda são crianças. Durante o desenrolar da série, eles são adultos, com vidas e personalidades independentes, objetivos diferentes. Mesmo assim, quando todos estão juntos, ou quando se trata do pai, eles ainda são crianças, eternamente buscando a aprovação do mesmo, brigando entre si para ver quem fica no centro das atenções por mais tempo. No final, Succession sempre será sobre as crianças quebradas de Logan Roy. Resta saber se no final do jogo quem vai ganhar a sucessão é o filho que se manter fielmente ao seu lado ou aquele que conseguir de alguma forma superá-lo.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.

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