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O Pomar das Almas Perdidas: como é viver um momento histórico

Desde o início da pandemia, volta e meia o mesmo tuíte aparece na minha timeline assinado por diferentes arrobas: como é difícil viver um momento histórico. E é mesmo. No futuro (se houver futuro), contaremos às crianças sobre a experiência desesperadora desses meses intermináveis — as filas com distanciamento que se estendiam por estacionamentos, as compras do mercado lavadas antes de irem para o armário, o horror de sonhar que saiu de casa sem máscara. Mas os detalhes que significam tanto para quem está vivendo esse momento provavelmente não vão chegar aos livros de história. Felizmente, podemos contar com a literatura para esse registro. E já começo a esperar por registros tão ricos quanto o que encontrei em O Pomar das Almas Perdidas, livro da escritora somali-britânica Nadifa Mohamed.

Publicado no Brasil em 2016 pela editora Tordesilhas, com tradução de Otacílio Nunes, O Pomar das Almas Perdidas me transportou para um momento histórico sobre o qual não conhecia nada: a guerra civil na Somália. Se a princípio esse universo parece muito distante do nosso, esse não é o sentimento que emana do livro. Nadifa Mohamed consegue contar uma história muito próxima do leitor. A obra é construída em torno de três mulheres comuns — Kawsar, Filsan e Deqo —, de origens e idades diferentes, que vivem aquele contexto cada uma à sua forma e acabam conectadas no meio (e por causa) do caos.

O palco central da narrativa é Hargeisa, a segunda maior cidade da Somália. É lá que as três protagonistas se cruzam pela primeira vez, em um evento promovido pelo governo para celebrar a tomada de poder do regime no país. Kawsar, uma mulher idosa moradora da cidade, está no estádio em que acontecem as comemorações na posição de espectadora, contra a sua vontade: as mulheres são obrigadas a comparecer para representar apoio ao regime. Já Deqo, uma garota de nove anos que vive em um campo de refugiados, foi levada para a cidade pela primeira vez na vida para participar de uma apresentação de dança no evento. Filsan ocupa uma outra função no evento. A jovem é parte do corpo militar da Somália, e, como soldado, está no estádio cumprindo seu papel na segurança do evento.

“As mães da revolução foram chamadas de sua cozinha, de suas tarefas, para mostrar a dignitários estrangeiros como o regime é amado, quanto elas são gratas pelo leite e pela paz que lhes trouxe. Ele precisa de mulheres que o façam parecer humano.”

O acontecimento que coloca as três personagens em contato é uma perturbação do que deveria ser um dia imaculado para o regime. Deqo, deslumbrada com a cidade e com a multidão, se esquece dos passos de dança que deveria executar na apresentação e é duramente repreendida pelas superiores. O ato é a gota d’água para a revolta de Kawsar, que resolve deixar seu lugar nas arquibancadas para enfrentar as organizadoras em defesa da menina. A confusão traz Filsan à cena, e ela leva Kawsar para a prisão.

O Pomar das Almas Perdidas é dividido em partes que focam individualmente em cada uma das protagonistas e esse é mais um acerto da autora: dessa forma, podemos conhecer as três mulheres mais profundamente. Depois desse encontro, elas seguem por caminhos diferentes e separados, e a narrativa vai nos apresentando tanto suas vidas no momento presente quanto no passado, com tudo o que as levou até ali e nos fazendo entender de onde vieram seus pensamentos e ações.

Kawsar vive sozinha, em um bangalô com um belo pomar. Seu marido, um ex-chefe da polícia, e sua filha, uma jovem estudante, estão mortos, e o principal convívio da personagem agora é com suas vizinhas. Depois do encontro no estádio e de sua prisão, Kawsar é espancada por Filsan na cadeia e, quando é mandada de volta para casa, tem que viver acamada. Sua história se desdobra dali, uma cama solitária em um pequeno quarto no bangalô, mas não é parada ou cansativa. É da sua cama que Kawsar interage com Nurto, uma jovem encarregada pela vizinha de cuidar dela. E é também da cama que Kawsar revive seu passado e suas memórias, o que vai mostrando ao leitor mais da vida da personagem e dos conflitos do país. Não demora para descobrirmos que ela tem uma forte aversão pelo governo e, aos poucos, a narrativa vai revelando o impacto do regime na vida da família.

O Pomar das Almas Perdidas

A perspectiva que Filsan tem do regime é completamente diferente da de Kawsar. Afinal, ela faz parte do sistema: Filsan vem da capital, Mogadíscio, e segue a carreira militar assim como fez seu pai, um nome conhecido entre os militares. O primeiro impulso é detestá-la, já que ela incorpora e representa as ações e violências do regime. Mas Nadifa Mohamed não faz com que suas personagens sejam exclusivamente boas ou más, e isso também se aplica à Filsan. A soldado também sofre os efeitos e opressões daquela realidade específica e do regime, ainda que seja parte dele. Ela se sente pressionada pelo pai, é assediada por homens que são seus superiores, sofre por nunca ter encontrado um espaço em sua vida para amar ou se sentir amada, deseja ser reconhecida e crescer na carreira e, por fim, se vê em conflito com as atrocidades da guerra e do regime.

Depois de prender Kawsar e espancá-la na prisão, Filsan segue sua vida com suas funções e deveres de soldado. A história acompanha as tarefas que lhe são designadas, seu convívio com outros militares e flashbacks que nos deixam conhecer sua adolescência na capital e a relação com a família. É na parte de Filsan que a história tem mais contornos de ação: ela vai para o centro do conflito, e, com ela, vemos as mortes, bombardeios e batalhas de perto.

“Filsan não sente culpa nem remorso ao olhar para os corpos, e sim uma curiosidade insaciável e um desejo de saber quando e onde a própria morte virá e que expressão ela usará para enfrentá-la. Nunca foi como as outras pessoas, e os cadáveres confirmam que não há lugar para ela nesta terra; está condenada a ser nada mais que uma das servas da morte.”

Deqo, por sua vez, consegue fugir depois da confusão no estádio que marca o primeiro encontro das três mulheres. A garota, que foi criada no campo de refugiados, nunca soube quem são seus pais: sua mãe a deixou no campo ainda bebê e partiu. Hargeisa é um território totalmente desconhecido, e vamos acompanhando como ela vai sobrevivendo sozinha aos perigos da cidade.

Com Deqo, ao contrário de Kawsar e Filsan, temos uma pessoa que não sabe nada sobre o regime em si. Ela é apenas uma criança perdida nesse mundo, e que tenta navegar a situação com os poucos recursos que vai encontrando à sua volta. Tudo que ela sabe é o que ela vai aprendendo sozinha. E, para Deqo, todos aqueles protestos de estudantes que pipocam pelas ruas fazem pouco sentido. Ela considera esses estudantes ingênuos, não consegue entender seus motivos e acha que eles não sabem nada do que é a vida real — a fome, a sede, a falta de um teto, a solidão.

A vida de Deqo, que está dormindo ao relento e lutando para ter o que comer, muda quando ela é presa misturada a estudantes em uma manifestação. Na prisão, ela conhece Nasra, uma prostituta que, depois, a acolhe e deixa que a menina viva em sua casa, onde ela e outras mulheres recebem homens todas as noites. Deqo não entende nada do que acontece à sua volta; ela trabalha na casa desempenhando tarefas domésticas mas não entende bem o que é “ser uma puta”, não tem noção do que Nasra e as outras mulheres fazem por trás das portas fechadas. Esse entendimento cai sobre ela de forma drástica e, mais uma vez, Deqo consegue escapar, bem quando os conflitos políticos estão se agravando e a guerra está prestes a explodir na cidade.

“Faz muito tempo que Deqo sabe como a carne macia de seu corpo é uma desvantagem; a primeira palavra que se lembra de ter aprendido é “vergonha”. A única educação que recebeu das mulheres, no campo de refugiados, dizia respeito a como evitar essa vergonha: não sente com as pernas abertas, não toque as partes íntimas, não brinque com meninos. A evitação da vergonha parece estar no centro da vida de uma menina.”

Só depois de traçar as histórias individuais de cada personagem é que o livro se encaminha para um reencontro. Gostei muito dessa perspectiva de que um encontro com pessoas desconhecidas pode impactar totalmente a vida de alguém, ainda que essas pessoas não continuem fazendo parte do que acontece a seguir. Não é uma história sobre como as personagens mudaram ao conviver com pessoas novas e diferentes. É, sim, uma história sobre como elas enfrentam as consequências — tanto as consequências do encontro entre elas, quanto as consequências do regime militar. Poder acompanhar a vida de Kawsar, Deqo e Filsan com todas as suas particularidades é um lembrete sempre válido de que (surpresa!) pessoas diferentes, que ocupam posições diferentes na sociedade, vivem o mesmo contexto de maneiras bem diferentes.

Parece óbvio, mas é fácil esquecer que as pessoas não experienciam o mundo do mesmo jeito. Mesmo no meio de um acontecimento tão grande que parece singular. Elas sofrem, choram, enxergam pequenos prazeres ou grandes vitórias em coisas distintas. O acontecimento é o mesmo, mas a situação das pessoas que passam por ele nunca é igual. Não é igual para todas as mulheres que passaram pela ditadura militar na Somália na década de 1980, e não é igual para toda a população mundial mergulhada em uma pandemia agora, em pleno 2020.

É um bom convite para pensar em como “Grandes Momentos” não alteram o mundo apenas em esferas públicas. Pensar no coletivo é, e não pode deixar de ser, essencial. Mas lembrar do individual — do individual alheio, o que vai além do nosso próprio umbigo — também é um exercício importante. Afinal de contas, tudo que a gente enxerga é visto do lugar que ocupamos; e esse lugar está longe de ser o único que existe.

Nadifa Mohamed faz na ficção algo semelhante ao que Svetlana Aleksiévitch faz na não-ficção. A construção da narrativa em torno de mulheres comuns reagindo ao mesmo contexto político geral de O Pomar das Almas Perdidas me lembrou muito os relatos que a escritora bielorrussa traz em seus livros. Números, datas e grandes marcos ficam registrados, mas os pedaços de rotina individual também constroem um momento histórico. Em O Fim do Homem Soviético, Svetlana Aleksiévitch explica bem essa escolha:

“Não faço perguntas sobre o socialismo, mas sobre o amor, o ciúme, a infância, a velhice. Sobre música, danças, penteados. Sobre os milhares de detalhes de uma vida que vai desaparecendo. Essa é a única maneira de enquadrar a catástrofe no contorno do cotidiano e de tentar contar alguma coisa. De compreender alguma coisa. Não canso de me surpreender com o quão interessante é a vida humana comum. A infinita quantidade de verdades humanas…”

Enfim. Depois de seguirem sozinhas por caminhos separados, as três protagonistas de O Pomar das Almas Perdidas voltam a se cruzar. O reencontro acontece no momento mais conturbado, quando os conflitos entre militares do regime e rebeldes estão em ação nas ruas de Hargeisa.

É interessante observar que, apesar de viverem intensamente o caos e a guerra que as cercam, as três mulheres também se sentem desconexas desse mundo. “Tudo em que acreditava já não importa: religião, tradição, civilização foram varridas”, diz um trecho sobre Kawsar. “É um mundo estranho que está sendo destruído, ao qual ela não pertence e pelo qual não tem nenhuma sensação de pertencimento”, diz um outro trecho, sobre Deqo. Quando as duas voltam a se encontrar, Kawsar está sozinha em sua cama, as vizinhas e a cuidadora já partiram. E Deqo vaga pela cidade destruída e abandonada, ainda fazendo o que sempre fez, tentando sobreviver. Filsan chega por último, desconectada de uma forma mais prática: ela se torna uma desertora do exército.

Dessa vez, elas não se separam e seguem juntas até as páginas finais do romance. Nadifa Mohamed não se alonga nesse relacionamento como, aliás, não se alonga em quase nada no livro: a narrativa é objetiva, mas cumpre sua proposta. O final não é feliz, mas é esperançoso — e esperança é uma inspiração que a gente pode (e precisa) tirar da literatura para aplicar aqui fora, na vida real.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.

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