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De frente com Valkirias: Kerri Maniscalco e o rastro de sangue

Na era vitoriana, uma série de assassinatos derivados de uma terrível sede de sangue amedrontou a cidade de Londres. O bairro de Whitechapel foi manchado com os respingos de uma selvageria desenfreada que vitimou mulheres marginalizadas pela sociedade. O responsável? O misterioso Avental-de-Couro, cuja identidade permanece uma incógnita até hoje. Talvez você o conheça por outro nome: Jack, o Estripador.

Misturando diálogos afiados, uma protagonista empoderada e um mistério implorando para ser desvendado, Kerri Maniscalco constrói seu livro de estreia, Rastro de Sangue: Jack, o Estripador, no qual une realidade e ficção para contar a história de Audrey Rose, uma garota que passa longe de ser a típica donzela inglesa e, em vez de se contentar com jantares festivos e chás importantes, prefere dissecar cadáveres e, bem… entrar na trilha do serial killer mais notório da história.

Tive o prazer de conversar com a autora e, durante a conversa, falamos um pouco sobre sua trajetória até a publicação, seu processo de pesquisa, como foi crescer em uma casa mal-assombrada e, é claro, sobre o empoderamento feminino através da literatura.

Rastro de Sangue: Jack, o Estripador foi o primeiro livro que você publicou, mas não o primeiro que escreveu. Como foi essa trajetória? Por que você acha que Rastro de Sangue: Jack, o Estripador se tornou seu ponto de partida e foi abraçado pelo James Patterson?

KERRI MANISCALCO: Acredito que aquele velho ditado sobre publicação ter muito a ver com sorte e momento, assim como talento, é uma parte importante disso. Ter o livro certo, na hora certa, enviado para o editor certo, que está buscando aquele tipo específico de história, é algo que não pode ser fabricado, precisa acontecer organicamente. Meus outros livros chegaram perto de ser publicados, mas creio que estava escrito que Audrey Rose e Rastro de Sangue: Jack, o Estripador seriam os primeiros. Eu ainda me belisco quando lembro que James Patterson chegou a ler meu livro, ainda por cima publicou e começou seu selo com ele. É um sonho que se tornou realidade e é ainda maior do que eu poderia ter imaginado.

Rastro de Sangue: Jack, o Estripador é um daqueles livros que cativam o leitor pela atmosfera realista. Qual foi a parte mais difícil ao criar a ambientação do livro?

K.M.: A ambientação foi uma das minhas partes favoritas ao escrever o livro — penso que ficção histórica se adequa bem aos fãs de fantasia. É algo familiar, só que não. O que permite que o leitor sinta-se transportado a outro lugar (pelo menos pra mim!). A parte mais difícil foi incorporar a precisão histórica e, ainda assim, manter a história acessível e moderna para os leitores de hoje em dia. Encontrar esse equilíbrio entre incluir detalhes suficientes, mas não ao ponto de ser arrogante, é uma linha tênue, e espero mesmo ter conseguido capturar as sutilezas da época. Coisas como o sabão carbólico, que são apenas uma fração de uma frase, mas que espero que acrescentem à leitura do livro.

Você deve ter se divertido muito durante o processo de pesquisa. Você encontrou alguma informação bizarra ou curiosa que não foi para o livro, mas que você guardou na memória?

K.M.: Ah, teve tanta coisa estranha que eu aprendi, mas tentei incorporar o máximo que pude ao livro. Por exemplo, a forma como o corpo do morto cheira diferente dependendo se foi um trauma ou uma morte tranquila (toda aquela parte da galinha crua no livro ainda mexe comigo!).

É bem comum ver autores transferirem paixões e interesses pessoais em seus livros. A Kimberly Brubaker Bradley, por exemplo, sempre se interessou pela história das crianças refugiadas na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, e escreveu sobre isso. De que modo seus gostos pessoais influenciaram seu trabalho na série Rastro de Sangue?

K.M.: Me interesso por ciência forense e psicologia criminal desde que me entendo por gente. O caso do Jack, o Estripador, em particular, sempre me fascinou, já que foi uma das primeiras vezes que a ciência forense foi aplicada durante uma investigação. Muitos procedimentos são os mesmos usados até hoje, o que, para mim, é incrível.

Durante a leitura fica bem claro que existe uma dinâmica de Sherlock Holmes e Dr. Watson entre Audrey Rose e Thomas. Essa interação foi inspirada na obra de Arthur Conan Doyle?

K.M.: Ah, sim. Eu amo esses relacionamentos que giram em volta da atração e dissuasão, do tipo que você fica basicamente gritando com os personagens para eles se beijarem logo. Eu sabia desde o primeiro rascunho que eu queria basear meus personagens nessa dupla famosa, exceto que eu queria que meu Dr. Watson fosse uma jovem libertando-se das amarras da sociedade.

A mudança de sentimentos de Audrey por Thomas foi muito divertida de acompanhar. Qual foi a parte mais marcante de escrever essa dinâmica entre os dois? Alguma cena preferida?

K.M.: Fico tão feliz por saber disso, obrigada! Honestamente, quando fiz o primeiro rascunho do livro, não tinha imaginado o Thomas ocupando o papel que ele ocupou. Eu o imaginei como um personagem secundário, que era divertido ter por perto, mas ele meio que tomou conta da situação e se inseriu na história (e no coração de Audrey Rose) por conta própria. É difícil não se deixar levar pelas brincadeiras deles e pela admiração mútua. Ambos são tão inteligentes e apaixonados por seus trabalhos. Thomas é péssimo flertando, mas ele é inteligente e está lutando contra as ideias da sociedade sobre como um cavalheiro adequado deveria ser, assim como ela. O que é um dos fatores principais, creio eu, que contribuiu para a lenta mudança de opinião de Audrey Rose.

Nossa… Cenas favoritas… Me diverti muito quando eles estavam juntos no laboratório. Quando a Audrey Rose corre para o laboratório ainda vestindo seus sapatos de seda e o Thomas está sendo o Thomas. Eu também amei a cena do beco, aquela próxima do final. E quando Thomas decidiu se arrumar e perseguir Jack, o Estripador junto com a Audrey Rose. Seu parceiro de todas as formas.

Eu amei a Audrey Rose e como ela não exclui um traço de sua personalidade em favor de outro. Num minuto ela está costurando um cadáver e no outro querendo aprender um penteado diferente. Por que você achou importante construi-la dessa maneira multifacetada?

K.M.: Acho que é importante que as meninas — e os meninos — vejam alguém que aceita todos os seus diferentes lados. O estereótipo de garotas que gostam de exatas e que não podem gostar de roupas e de maquiagem é absurdo. Particularmente, eu amo vestidos e maquiagem, e sou obcecada por tudo que tem a ver com ciência e tecnologia. Não importa o que você goste ou não goste, está tudo bem. Seja você mesmo e tenha orgulho de todos os seus interesses, desinteresses e peculiaridades.

Audrey Rose é totalmente um fruto da sua imaginação ou você se inspirou em alguma mulher histórica para construir essa personagem? Você já parou para se perguntar se, naquela época, também existiu uma garota que aprendia a dissecar cadáveres em segredo e desafiava as regras da sociedade?

K.M.: Audrey Rose é completamente fictícia, apesar de haver várias mulheres que vieram antes dela que dividiam algumas de suas características. As mulheres lutavam por igualdade anos antes de ela ter nascido, e um dos primeiros hinos feministas (Reivindicação dos Direitos da Mulher) foi escrito pela mãe de Mary Shelley, Mary Wollstonecraft, cem anos antes dos eventos que ocorrem em Rastro de Sangue: Jack, o Estripador.

Recomendo muito ler sobre ela e também conferir a famosa carta escrita por Abigail Adams a seu marido para “lembrar-se das mulheres”. Uma citação em particular é bastante impressionante, e foi escrita em 1776: “Se cuidado e atenção especial não forem dedicados às mulheres, estamos determinadas a fomentar uma rebelião. Não nos consideraremos na obrigação de obedecer a quaisquer leis em que não tenhamos voz nem representação”. Algumas mulheres para conhecer: Rebecca Lee Crumpler (1831-1895), publicou A Book of Medical Discourses, em 1883; Mary Eliza Mahoney (1845-1926), a primeira enfermeira negra profissionalmente certificada nos EUA; Alice Ball (1892-1916), criou uma cura injetável para a lepra.

Audrey é uma protagonista tão empoderada e dona de si que acaba passando um pouquinho disso pra gente. Como tem sido a recepção da leitoras nesse quesito?

K.M.: Recebi muitas mensagens nas redes sociais e por e-mail de mulheres que me contaram o quão empoderadas elas se sentiram após a leitura. Muitas disseram que iriam para a área de exatas, outras que tinham mais confiança para escolher seus próprios caminhos, sem se importar com o que os outros dissessem ou pensassem. Não consigo nem descrever o quão honrada me sinto por saber que tantas mulheres se identificaram com a Audrey Rose nesse nível e estão agora vivendo suas vidas do jeito que querem viver.

Ainda sobre empoderamento, em vários trechos do livro a Audrey comenta sobre querer fazer justiça às mulheres assassinadas. Isso é algo que continua ligado à nossa realidade hoje em dia, em que mulheres ainda são brutalizadas e mortas pelo machismo. Como você acha que Rastro de Sangue: Jack, o Estripador pode fazer diferença?

K.M.: Espero que o livro ajude a chamar atenção para o fato de que mulheres desaparecem e são brutalmente assassinadas todos os dias — sendo um número significativo de prostitutas, simplesmente porque foram a algum lugar sozinhas com um estranho. Eu gostaria que as pessoas não as descartassem por causa do que as levou ali, elas são pessoas, têm famílias, entes queridos e vidas fora daquilo que fazem para ganhar dinheiro, e merecem o mesmo tratamento que qualquer outra vítima de um crime.

É muito comum que seus assassinatos fiquem sem solução ou sejam empurrados para o fim da fila, porque “elas estavam pedindo por isso”. Espero que a luta de Audrey Rose por uma justiça que seja íntegra e igualitária inspire a próxima geração de solucionadores de crimes.

Por que você decidiu dar um novo passado para as vítimas de Jack, o Estripador?

K.M.: Não havia muita informação sobre quem elas eram antes de serem prostitutas no East End de Londres, e achei que era importante mostrar que elas eram pessoas acima de tudo. A história tende a se prender aos assassinos e esquecer as vítimas. Queria que essa história fosse mais sobre elas e sobre a determinação de uma jovem por buscar justiça, em vez de glorificar Jack, o Estripador.

É bem comum ver romances YA com histórias que dependem do próximo volume para continuarem, deixando no leitor aquele gostinho de quero mais. Rastro de Sangue: Jack, o Estripador também causa esse efeito, mesmo sendo um standalone. Por que você decidiu trabalhar com tramas fechadas em cada livro?

K.M.: Como leitora, gosto de mistérios e thrillers adultos que sejam de natureza semelhante. Gosto de seguir o mesmo grupo de personagens e sair em novas aventuras com eles, e queria fazer o mesmo com o meu trabalho.

Rastro de Sangue: Jack, o Estripador foi publicado pela linha DarkLove, que revela novos talentos da literatura feminina. Partindo do ponto que você escreveu uma protagonista super feminista, qual sua opinião sobre ser publicada no Brasil por uma linha editorial que empodera mulheres?

K.M.: Sinceramente? É uma das coisas mais incríveis que já aconteceram desde que fui publicada. Nunca poderia imaginar que estaria aqui hoje, tendo meu trabalho publicado no Brasil. E ainda por uma linha dedicada ao empoderamento feminino. É uma honra e estou muito feliz por ser parte de algo que admiro, e sei que minha protagonista também iria adorar.

Você já leu ou conhece algum dos livros da linha DarkLove?

K.M.: Já! Na verdade eu tenho alguns dos títulos publicados e até já li alguns deles (como as Crônicas de Amor e Ódio), e estou aguardando ansiosamente ter tempo para mergulhar nas Crônicas de Morrighan e outros. Todos e cada um dos livros fazem o meu tipo!

Sobre qual tema você adoraria escrever, mas ainda não teve a chance?

K.M.: Assim que Rastro de Sangue: Jack, o Estripador foi vendido, eu estava trabalhando numa fantasia dark histórica e eu gostaria muito de voltar a fazer isso e deixar minha musa livre. Tem também essa outra ideia para uma fantasia dark que está implorando por atenção e eu estou esquematizando algumas coisas aos poucos enquanto trabalho no quarto livro.

Você cresceu numa casa mal-assombrada mesmo? Como foi isso?

K.M.: Cresci! Minha casa era muito antiga, algumas partes de 1700 e outras de 1800, e tinha definitivamente atividade paranormal lá. Quando começamos as reformas, vários dos pedreiros não voltavam porque suas ferramentas mudavam de lugar e eles ficavam apavorados. A gente nunca se sentiu desconfortável, só rolavam umas coisas como passos subindo as escadas ou andando pelo corredor quando você estava sozinho em casa, a TV ligando, coisas assim. Acho que só aumentou meu amor por todas as coisas góticas e assustadoras.

Nilsen Silva é editora, escritora e jornalista. Apaixonada por livros, por terras distantes e por pessoas que só existem na ficção. Gosta de incensos, plantinhas e roupas confortáveis, e queria passar as horas livres capturando Cartas Clow. Newsletter | Twitter | Instagram | Facebook


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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