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Mitski não é a típica garota americana, mas a rockstar do nosso futuro

No início do ano, o New York Times lançou um especial que buscava apontar, através de 25 músicas, aonde o cenário musical estava indo. Entre nomes com propostas tão distintas como Missy Elliot, Mitski, Lady Gaga, Solange, Kanye West e Leonard Cohen, o denominador comum que unia os 25 artistas era que, cada um à sua maneira, todos estavam construindo trabalhos profundamente voltados para a ideia de identidade. Faz sentido. Vivemos um zeitgeist mundial em que esse tipo de questionamento — quem somos? de onde viemos? — parece pautar toda a nossa produção artística: minorias sociais estão em destaque e seus membros estão descobrindo o que significa ser mulher, ser negra, ser imigrante, ser homossexual, em uma sociedade estruturalmente machista, racista e homofóbica, que sempre suprimiu e apagou essas identidades; a internet permitiu uma autonomia maior para criar, produzir e colocar nossas vozes no mundo, desafiando os meios já estabelecidos e restritos, permitindo que pessoas tenham a chance de dizer a que vieram sem a intervenção enviesada de intermediários. Um exemplo é este site que você está lendo agora.

A maioria dos nomes elencados na lista pertence à faixa demográfica dos millennials, jovens e jovens adultos que cresceram estimulados a investigar a própria identidade desde o “quem sou eu” do Orkut até o formato que as redes sociais têm hoje, que permite a construção de uma identidade que pode ou não estar de acordo com aquilo que verdadeiramente somos — o que, de novo, nos leva a questionar quem somos. Estamos vendo instituições em decadência no mundo todo, não fazemos ideia de onde ou como estaremos daqui a cinco ou dez anos, e esse sentimento de instabilidade geral também nos faz voltar para dentro na esperança de encontrar algo sólido naquilo que somos, algo que nos ajude a enfrentar a bagunça lá fora e que nos oriente na descoberta e construção do que vem por aí.

O rock surgiu num contexto mais ou menos parecido: depois da Segunda Guerra Mundial, num momento em que os Estados Unidos estava se reestruturando política, econômica e socialmente, com a ascensão de uma cultura jovem que questionava e desafiava as instituições estabelecidas. O rock era a trilha sonora de todo esse movimento, o som que representava rebeldia e mudanças — pelo menos até a página sete. O ritmo é produto da mistura de outros gêneros, principalmente o blues, o R&B e o gospel, estilos musicais que têm origem nas comunidades negras que, no entanto, não foram convidadas para a festa roqueira. Vale lembrar que na mesma década de 50 que o rock surgia, ainda havia segregação racial nos Estados Unidos. As mulheres também demoraram para conquistar seu espaço entre os baixos e guitarras, uma vez que o ritmo não combinava com o lugar relegado às mulheres daquela época para além do cargo de musa ou groupie. Ainda que alguns nomes tenham conseguido quebrar esse teto de vidro e se estabelecer no meio, criando resistências significativas e importantes, na década de 90, Kathleen Hanna ainda precisava chamar as garotas para a frente do palco para que assim elas se sentissem seguras nos shows de punk rock. Para todos os efeitos, o gênero continua sendo terra do nosso típico homem branco.

Isso ajuda a explicar por que hoje, mais de meio século depois, o rock se tornou irrelevante nas conversas sobre cultura, sobrevivendo mais por apego e nostalgia do que qualquer outra coisa. Sendo assim, qual o sentido de celebrar o rock no ano de 2017?, vocês devem estar se perguntando, com alguma razão. Bem, a chatice do rock contemporâneo dá uma folga quando surgem novas figuras que dão um fôlego novo ao gênero e nos lembram, afinal, a que veio aquele ritmo que um dia foi sinônimo de subversão e mudança.

Uma dessas figuras é Mitski Miyawaki, ou apenas Mitski, filha de mãe japonesa e pai americano, que passou a infância e o início da adolescência entre vários países até se firmar definitivamente nos Estados Unidos, aos 15 anos, quando começou a estudar música clássica e composição. Em junho do ano passado, Mitski lançou Puberty 2, seu quarto álbum de estúdio, que apareceu em diversas listas de melhores do ano e deu a ela holofotes e um nível de atenção muitas vezes desnecessário, se a ideia for transformá-la — como muitos fizeram — num símbolo, a “garota-japonesa-do-rock”, que ela já disse detestar em várias entrevistas.

É uma armadilha fácil de cair, principalmente quando se é uma pessoa branca e bem intencionada, que reconhece as limitações de um gênero musical ocupado por homens brancos, hostil a tudo que é diferente, ao mesmo tempo em que não possui muito acesso às nuances de ser a pessoa diferente, ser o Outro — principalmente num país como os Estados Unidos — a não ser pelo fato de ser mulher. A própria Mitski reconhece que é complicado fazer essa separação uma vez que ela mesma tende a (e gosta de) transformar seus artistas favoritos em símbolos de alguma coisa, de modo que talvez a melhor forma de falar sobre ela seja aceitar essas nuances complicadas e entender que Mitski pode ser a garota-japonesa-do-rock, ao mesmo tempo em que é uma mulher de 25 anos tão acostumada a se sentir estranha e deslocada que disse numa entrevista que “se um dia encontrar um lugar ao qual ela sente que pertence, isso se tornaria uma crise de identidade”.

“Eu nem sequer sabia que era asiática até vir para os Estados Unidos. Na Ásia eu era americana”

Essa ambiguidade é clara na música “Your Best American Girl”, de seu último álbum, onde ela descreve uma fantasia romântica com um típico garoto americano, que é uma fantasia que ela não pode realizar uma vez que sua identidade a afasta disso. Num perfil assinado pela escritora Jenny Zhang, americana de origem chinesa, as duas falam sobre essa dimensão do amor na vida de mulheres não-brancas: “Almas gêmeas são apenas para pessoas brancas. Essa ideia de encontrar um lar e encontrar uma alma gêmea — tudo isso são sonhos brancos, de certa forma. Mas eu amo que suas músicas dizem algo como, embora você saiba de tudo isso, você ainda quer essas coisas, você ainda sonha, você ainda deseja.” No clipe, Mitski vê seu crush americano, tão americano como um modelo da Calvin Klein, trocá-la pela típica garota americana com uma coroa de flores no cabelo. Enquanto os dois se entregam a um amasso exagerado, Mitski faz o mesmo — beijando e lambendo a própria mão.

A música vai num crescendo calmo até explodir numa guitarra ruidosa e na frase que ajudou a consolidar Mitski como porta-voz de alguma coisa: “Sua mãe não aprovaria a forma como minha mãe me criou, mas eu aprovo”. Numa das últimas vezes em que o refrão se repete, ela adiciona que finalmente aprova a maneira como foi criada, como uma pessoa que começa a fazer as pazes com suas raízes e vê-las como algo além do que aquilo que sempre a colocou numa posição de estranhamento e distanciamento do que era considerado a norma. Reconhecer que não pode escapar de ser quem é e abraçar isso, saber que nunca vai ser parte de um clubinho — seja ele o amor romântico branco ocidental ou o rock’n’roll — mas admitir querer fazer parte dele da mesma forma — é sobre esses confrontos que o trabalho de Mitski se estrutura. Se ela ainda não se acertou na vida amorosa, por outro lado, sabemos que o rock deveria ficar honrado em tê-la como representante.

Mitski gravou sozinha todos os instrumentos de seus quatro álbuns, contando com ajuda apenas do produtor Patrick Hyland, que esteve com ela em todos os seus trabalhos. Um pouco disso vem do fato dela estar sempre se mudando e precisar assegurar que sua música pode ser feita com ou sem a ajuda de uma banda de apoio. Seus primeiros dois discos foram escritos tendo o piano como instrumento principal, mas a artista decidiu aprender a tocar violão e guitarra quando percebeu como os instrumentos eram mais práticos e poderiam ser levados a qualquer lugar. Foi assim que Bury Me At Makeout Creek e Puberty 2 se tornaram discos construídos em torno do som de guitarras e violões. Mitski costuma sair em turnê junto com uma banda para ajudá-la nas apresentações ao vivo, mas não é raro vê-la em apresentações solo, onde há só ela e uma guitarra, e o resultado nunca é menor em comparação. O controle de Mitski sobre sua obra garante que a música esteja em todo lugar, independente das circunstâncias.

Esse controle é algo do qual ela se orgulha e chama para si, principalmente diante de quem classifica suas composições como confessionais, como se o fato de ela falar sobre sentimentos de forma tão crua e real significasse que não há ali um trabalho de composição. “Por que é tão difícil entender que meu cérebro está no controle?”, ela questiona numa entrevista ao The Guardian. A classificação de confessional é bastante comum no trabalho de artistas mulheres, principalmente aqueles cujo foco é a emoção, uma vez que as mulheres estão sempre associadas ao aspecto emocional das coisas, sendo esse emocional destituído de qualquer racionalidade, controle ou construção elaborada possibilitada por esforço e talento. Mitski escreve, e muito bem, sobre suas emoções, e basta analisar a complexidade de suas letras para perceber que é necessário dominar o ofício para compor de maneira tão visceral e honesta.

Além da dualidade entre sua identidade enquanto humana e nada mais versus a identidade projetada por conta de sua descendência asiática, outra constante no trabalho de Mitski é o conflito das relações amorosas graças ao desequilíbrio de gênero que vivemos nas relações heterossexuais. Seu eu-lírico é constantemente uma mulher que deseja a atenção masculina, que quer ser vista como bonita e atraente aos olhos dos homens, que até mesmo fantasia em ser a fantasia de alguém — algo bastante comum para mulheres asiáticas, fortemente fetichizadas pelos homens —, ao mesmo tempo em que sente mal por tudo isso, rejeita a posição de objeto e tem medo do que o amor de um homem realmente significa, e tudo isso acompanhado de um senso inescapável de solidão, que se pergunta quando, ou se, as coisas irão mudar.

É essa pergunta que ela faz em “Townie”, letra que descreve uma festa como as festas de Melodrama, álbum mais recente da Lorde, e é cheia de uma urgência por entrega e experiências, onde a artista clama por uma paixão avassaladora, beijos de acelerar o coração, e conclui: “Não vou ser aquilo que meu pai gostaria que eu fosse”. Na letra ela usa o termo daddy, que pode se referir tanto ao seu pai, como aos interesses amorosos que a tratam com uma postura dominante e paternalista, ou aos homens em geral — ou, ainda, aos homens que vieram antes dela, aqueles que até pouco tempo atrás eram a voz hegemônica do rock. Independente do destinatário, para todos eles ela só tem uma resposta: Mitski não vai abaixar a cabeça, mas a pergunta que se repente no final da música — quando? quando? quando? — deixa claro que resistir é exaustivo.

Essas identidades conflitantes nos levam, por fim, a olhar novamente para o título de seu trabalho mais recente: Puberty 2. A primeira puberdade seria a tão conhecida adolescência, com sua descarga de hormônios e nosso cérebro se reestruturando, transformações físicas que ajudam a catalizar uma bagunça complicada que é abandonar a infância, nossos antigos ídolos e certezas, e se jogar no mundo. Esse processo, no entanto, não para quando fazemos 18 anos. Puberty 2 é sobre os 20 anos, ou sobre o processo de descoberta que talvez seja eterno, uma adolescência tardia que é privilégio e sina da nossa geração, em que a gente sente que talvez não tenha mais idade para tanta confusão mental e emocional, mas não há muito o que fazer com relação a isso, principalmente diante das incertezas do mundo de hoje. Ao mesmo tempo, que bom é poder reconhecer e ver reconhecidas essas vulnerabilidades, com o alto e bom som de guitarras barulhentas. Em entrevista para o The Fader, Mitski diz que “Quando se é adolescente, tudo é dramático. É o fim do mundo todos os dias. Minha música é o resultado de não ser mais adolescente, mas ainda ser triste. O mundo segue em frente, e você não é importante. É menos a sensação de ser o protagonista de uma grande tragédia e mais como reconhecer que a tristeza está aqui, tenho que lidar com ela. Gostaria que isso não estivesse acontecendo, mas estou acostumada.”

Parece a adolescência toda de novo, mas dessa vez os sonhos e idealizações que tínhamos da vida adulta são assombrados por alguns fatos inevitáveis dessa nova realidade. “Quero ver o mundo todo, quero ver o mundo todo, não sei como vou pagar o aluguel, mas quero ver o mundo todo”, Mitski canta em “My Body Is Made of Crushed Little Stars”, faixa mais punk e mais millennial do álbum.

É possível afirmar que identidade é a tônica do trabalho de Mitski sem correr o risco de transformá-la no símbolo destituído de humanidade que a artista tanto detesta. Sua música é sobre identidade porque toda a ideia de fazer música, e também falar sobre identidade, no fundo é falar sobre pessoas. Toda produção artística começa com a pessoa do artista — quem ele é, de onde ele veio, para onde ele quer ir. Se Mitski se destaca nesse momento é justamente porque seu trabalho não se limita a uma caixa restrita de identidade, mas se espalha e revela todas as multidões que podem conter em uma pessoa só. Mitski é mulher, japonesa, americana, apaixonada, cética, controladora, engraçada, fã de música pop, com uma crush por Harry Styles, ainda que ele não seja seu tipo, uma jovem adulta com coração adolescente e uma jovem com alma de velha e tudo isso se escuta na sua música.

Ela não é a rockstar do futuro por ser a garota-japonesa-do-rock, a salvação politicamente correta perfeita para um gênero que agoniza por suas limitações e que se beneficiaria de qualquer marketing social. Mitski é o futuro do rock porque é uma pessoa com algo a dizer, e é excelente nisso. É disso que o rock precisa — vida longa ao rock’n’roll.