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Por que Rainha do Sul é uma narrativa decolonial sobre a força das mulheres latinas?

Rainha do Sul (Queen of the South), série original da USA Network, conta a história de Teresa Mendoza (Alice Braga), uma mulher forçada a sobreviver e se adaptar às ruas do México, sozinha, desde a infância. Logo no início da série somos apresentadas à figura de uma mulher trabalhadora, resiliente e observadora atuando como cambista em Sinaloa, mas a história se inicia propriamente quando Teresa se envolve com Guero (Jon-Michael Ecker), um piloto de avião e traficante de cocaína do cartel Vargas no México.

A partir do relacionamento de Teresa com Guero, adentramos a narrativa do tráfico de drogas e universo dos cartéis por uma perspectiva quase antropológica que mostra o lado do “outro”, do traficante, do criminoso, do marginalizado dentro da sociedade, mas principalmente o lado das mulheres dentro deste contexto. É nesse ponto que Rainha do Sul, obra adaptada do livro homônimo de Arturo Pérez-Reverte, começa a se diferenciar das outras ficções do gênero.

Quando, já no piloto da série, Teresa Mendoza diz: “Sei que muitos de vocês ouvem a palavra do ‘cartel’ pensam em armas e drogas, mas para mim estar com Guero era a primeira vez em que me sentia ligada a alguém”, vemos pela perspectiva dela, ainda que na posição de namorada de traficante — posição repleta de preconceitos dentro desse universo — que o crime não é uma prisão, mas uma saída, uma forma de ter uma vida melhor depois de tanto tempo em uma luta para sobreviver.

A luta pela sobrevivência da protagonista, no entanto, está apenas começando visto que a narrativa se desenvolve a partir do suposto assassinato de Guero, transformando Teresa em uma refugiada nos Estados Unidos, lutando pela sua vida e segurança no meio de um conflito interno do cartel. Ao fugir com um caderno contendo informações valiosas das movimentações financeiras e geográficas das drogas traficadas, Teresa se torna uma inimiga, mas também uma arma para Camila Vargas (Veronica Falcón), esposa de Epifanio Vargas (Joaquim de Almeida), o líder do cartel e candidato a governador de Sinaloa, que está interessada em tomar o controle das operações para si e expandir os negócios da família por conta própria.

Em uma narrativa marcada pelo jogo de poder concentrado na mão dos homens dentro do espaço da criminalidade, vemos as personagens femininas se desenvolvendo e desconstruindo o estereótipo da representação da mulher latina na televisão. Ao concentrar as narrativas femininas da série nas personagens Tereza Mendoza e Camila Vargas, uma pseudo-vilã com tendências heroicas, deixamos de ver a mulher latina somente pelo corpo e a beleza e passamos a identificá-las pela astúcia e inteligência.

É comum vermos a representação da América Latina e de suas cidadãs em um padrão de muito estereótipo e preconceito. Obras como Breaking Bad, Velozes e Furiosos, e muitas outras, apresentam o México com um filtro de cor amarelado, como um lugar de muito calor, escassez e criminalidade, uniformizando toda a diversidade de um país em um frame só.

No que diz respeito às pessoas, vemos a mulher latina como a mulher sexy, sedutora e geralmente na posição de amante ou prostituta. Fora dessa imagem, temos um segundo estereótipo, o da mulher latina como empregada doméstica, camareira, cozinheira ou em subempregos, como é o caso da personagem da Jennifer Lopez no filme Encontro de Amor (2002).

Em Rainha do Sul, temos a apresentação de uma alternativa para a imagem da mulher latina, onde a beleza deixa de ser elemento central e de sexualização para ser um instrumento de manipulação e conquista de objetivos pessoais, junto a isso, a posição de subalternidade e submissão é combatida a todo o instante. Na luta de Camila Vargas, para conquistar a liderança e controle do cartel Vargas, e na luta de Teresa Mendoza para continuar viva e ganhar seu espaço no mundo, vemos duas mulheres conquistando espaços de poder e controle com unhas e dentes, indo contra os papéis de subordinação de esposa e namorada, respectivamente, para terem controle das próprias vidas.

Ao deixar com que essas personagens contem suas histórias, e ainda mais, escrevam as próprias histórias por meio das escolhas que fazem no desenvolvimento da trama, os produtores permitem que haja uma quebra da forma de se mostrar as narrativas das mulheres latinas na televisão. Este processo antropológico do Outro, ou melhor, da Outra, contando a sua história, a sua versão dos fatos e perspectiva interna dentro de um contexto de criminalidade faz com que vejamos a América Latina pelos olhos de suas mulheres e não pelos olhos de seus colonizadores europeus ou dos dominadores norte-americanos, como é tão comum em outras obras.

A série discute questões de aquisição de poder feminino, independência emocional e financeira dentro do universo da criminalidade, mas que poderia facilmente ser substituído por qualquer outro cenário e ainda fazer sentido com as lutas femininas na modernidade. Poderíamos estar falando de um ambiente empresarial ou do ambiente acadêmico e a narrativa dessas personagens continuaria a representar muitas mulheres latinas no mundo, lutando pelo seus direitos e espaços em atmosferas majoritariamente masculinas e masculinizadas.

Ao trazer a perspectiva do crime por quem vive os conflitos desse universo, Rainha do Sul não somente aborda e desconstrói questões consideradas tabus na nossa sociedade, mas que são fatores culturais nos países da América Latina, como também retrata a emancipação de mulheres marginalizadas e apresenta uma alternativa para a representação da mulher latina na televisão. É um retrato simbólico do que poderemos ver em obras futuras se concentramos o protagonismo das narrativas em personagens reais e representativas como a Teresa Mendoza de Alice Braga.

2 comentários

  1. Achei muito interessante, principalmente por toda a desconstrução que a obra aparentemente apresenta, não só das mulheres mas da forma que o cinema americano trata o México e as culturas latinas. Me lembrou um seriado que eu amo muito, Mayans, spin off de Sons Of Anarchy, que mesmo mostrando as gangues e carteis mexicanos pela perspectivas de homens, ainda nos apresentam mulheres fortes que se colocam à frente do cartel e também de movimentos para salvar os desfavorecidos no México, principalmente as crianças. Mesmo sendo um seriado voltado para o crime e por horas político, ainda se consegue extrair muitas coisas dele a respeito das personagens femininas, que nos são apresentadas de maneira diferente da forma machista que são colocadas na obra original (SOA).

  2. Fora a abordagem da força feminina e da descontração da latina como “sub”, a série apresenta grandes lições sobre negociação.

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