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Billie Holiday e a Fruta Amarga

“Árvores do sul produzem uma fruta estranha,
Sangue nas folhas e sangue nas raízes,
Corpos negros balançando na brisa do sul,
Frutas estranhas penduradas nos álamos”

O trecho acima marca o início da canção que ganhou reconhecimento na voz da cantora norte-americana Billie Holiday, como também foi o estopim do Movimento Pelos Direitos Civis dos Negros nos Estados Unidos, cristalizado em 1960. A música foi cantada pela primeira vez pela cantora em 1939, em Nova York, no Café Society, uma casa noturna que recebia tanto artistas brancos como negros. Sob aplausos, Billie Holiday, conhecida também como Lady Day, teve sua vida transformada pela canção, que aborda de forma explícita o linchamento de pessoas negras.

“Strange Fruit” foi composta originalmente como um poema pelo professor judeu norte-americano Abel Meeropol, sob o pseudônimo de Lewis Allan, e publicado em 1936 no The New Yorker Teacher. “Bitter Fruit” [Fruta Amarga], título original do poema, teve como base o linchamento de dois homens negros, Thomas Shipp e Abram Smith, no ano de 1930, em Indiana. O registro feito pelo fotógrafo Lawrence Beitler dos dois homens pendurados em uma árvore e cercados por uma turba tornou-se famoso e uma dentre dezenas de outras fotos que fazem parte do Museu do Holocausto Negro da América, localizado em Wisconsin. O museu memorial que expõe o extermínio e opressão do povo negro norte-americano foi idealizado em 1988 por James Cameron, amigo de Thomas e Abram e único sobrevivente do linchamento.

A música, inspirada no assassinato cruel de dois homens negros que não tiveram chance de defesa — tanto das acusações que lhes foram atribuídas, como também da multidão furiosa —, infundiu em Billie Holiday o anseio em combater o inimigo que esteve presente em toda a sua vida e na vida de todos os homens e mulheres afroamericanos: o racismo.

Nascida Eleonora Fagan, em abril de 1915, na Filadélfia, Billie Holiday viveu na chamada Era Jim Crow, época em que as práticas de segregação racial eram institucionalizadas nos Estados Unidos. Ainda muito criança, Billie compreendeu que não era bem-vinda em muitos lugares e que a lei não estava a seu favor em razão da cor da sua pele. Aos dez anos, em Baltimore, Billie foi estuprada por um vizinho, um homem branco de quarenta anos. Os vizinhos ouviram seus gritos e chamaram a polícia, que julgou que Billie era uma prostituta e a mantiveram numa cela por dois dias. O homem que a abusou foi sentenciado a três meses de prisão, enquanto Billie foi condenada a ficar um ano em um reformatório, onde sofreu abusos físicos para punir a sua indisciplina.

Billie Holiday cantando

Quando saiu do reformatório, Billie seguiu para o Harlem, onde estaria sua mãe, Sadie. Lá, a menina acabou tendo o mesmo destino que sua progenitora: se prostituir a troco de ninharias. As drogas e o álcool então se tornaram o refúgio da jovem, uma forma de afogar as lembranças do abuso e de tempo que passou na prisão por prostituição.

Certa vez, a procura de qualquer trabalho que pudesse apaziguar sua fome, Billie se ofereceu para cantar em um bar chamado Log Cabin. Seu talento ficou evidente e, logo Billie ficaria conhecida nas casas de shows e no meio musical. Porém, mesmo vivendo em Nova York, já uma das principais cidades do mundo, cantando jazz, ritmo com grande popularidade, e fazendo sucesso nas casas noturnas, Billie Holiday não conseguia se desvencilhar das garras do racismo. Em grande parte, foi a segregação racial que a incentivou a seguir carreira solo, pois mais difícil do que cantar em uma banda com homens negros, era integrar um grupo com músicos brancos. Artie Shaw, líder da banda em que a cantora fez parte, precisou contratar uma cantora branca para revezar com Billie, e era comum Holiday ser impedida de subir ao palco.

Foi apenas quando assinou contrato com o Café Society, em Greenwich Village, que a vida de Billie se transformou. “O lugar errado para as pessoas certas”, como a casa noturna era conhecida, foi palco para a mudança na carreira e na postura política da cantora. Em contato com diversos músicos e ativistas, Billie Holiday percebeu que poderia usar sua voz para protestar. Foi se apresentando no Café Society que Billie ganharia grande reconhecimento, e sua fama também chegaria aos ouvidos do homem que se tornaria peça fundamental para o fim trágico da cantora: Harry Anslinger, Comissário do Serviço de Narcóticos dos Estados Unidos por mais de trinta anos. Anslinger é conhecido por ter iniciado e liderado a Guerra às Drogas norte americana.

O livro-reportagem Na Fissura: Uma História do Fracasso no Combate às Drogas, de Johann Hari, publicado pela Companhia das Letras e com tradução de Hermano Freitas, aponta que Anslinger foi também responsável por disseminar a tese de que drogas, como a maconha, eram responsáveis por transformar cidadãos de bem em criminosos violentos, contrariando médicos e especialistas da época. O argumento do Comissário ganhou ainda mais força quando Anslinger acusou minorias étnicas, como mexicanos e asiáticos, mas, sobretudo, os negros, de serem os maiores usuários de drogas e de usarem as substâncias químicas como instrumento para corromper os brancos. Apoiando-se na tensão racial, Anslinger recebeu apoio popular e do governo a suas ações, dado que a sua guerra contras às drogas era, na verdade, uma guerra contra os negros. Mas Anslinger encontrou um obstáculo, uma cantora negra em ascensão.

Considerada a primeira música de protesto contra o racismo — outras haviam sido cantadas anteriormente, mas sem o mesmo reconhecimento —, “Strange Fruit” passou a fazer parte do repertório de Billie Holiday, apesar de muitos donos de casas noturnas tentarem convencê-la a não cantar a música, por medo de afastar a plateia. O FBI exigiu que Billie não cantasse a música, proibida também nas rádios, mas a cantora se recusou e continuou a entoar o hino antirracista. Anslinger então iniciou sua caçada contra a cantora, infiltrando agentes nas casas de jazz para prender a cantora por seu vício em drogas. Billie Holiday tornou-se então mais uma figura importante do movimento negro a ser perseguida pelo governo, assim como o ativista Martin Luther King e Fred Hampton, líder dos Panteras Negras.

Billie Holiday e um cachorro

Mas Billie enfrentava também outra forma de violência, e essa ocorria dentro da sua casa. Louis McKay, seu antigo cafetão, promovido a marido e empresário, a agredia frequentemente e esse era um fato sabido pelas pessoas que os cercavam. Anslinger se aproveitou da aproximação que McKay tinha da cantora para armar uma cilada para ela por posse de drogas.

Holiday foi condenada à prisão em West Virginia, local que não fornecia tratamento adequado para dependentes químicos. Com a condenação, Billie perdeu sua licença de cantora, não podendo se apresentar em nenhum local que servisse bebidas alcoólicas, ou seja: todas as casas de jazz no país. Não podendo fazer o que mais gostava, Billie se afundou ainda mais nas drogas e se afastou dos poucos amigos que ainda restavam por medo de que a polícia pudesse persegui-los também.

Aos quarenta e quatro anos, Billie foi levada à ala pública do Metropolitan Hospital de Nova York. Os médicos apontaram que ela tinha cirrose hepática causada pela bebida, desnutrição, problemas cardíacos e respiratórios devido ao cigarro e úlceras nas pernas pelo uso de heroína. Seu estado era grave e os médicos a alertaram que não a restava muito tempo. O estado crítico da cantora, no entanto, não comoveu Anslinger, que enviou seus agentes ao hospital. Eles entraram na Justiça pedindo que ela fosse indiciada, alegando terem encontrado drogas no quarto em que Billie estava hospitalizada. Proibida de receber visitas e algemada à cama, a cantora precisou lidar com a abstinência com pouquíssimo amparo médico.

Do lado de fora do hospital, manifestantes pediam que Billie fosse transferida para uma clínica de recuperação de dependentes químicos, mas isso nunca aconteceu. Billie Holiday morreu sozinha no dia 17 de junho de 1959, com dois policiais na porta do quarto para impedir o contato da cantora com amigos e fãs. A voz marcante de Billie transformou a história do jazz e também o movimento pelos direitos dos afroamericanos. “Strange Fruit” ganhou o título de canção do século pela revista Time, em 1999, e também foi incluída no Registro Nacional da Biblioteca do Congresso dos EUA, em 2002, tornando-se um dos patrimônios musicais do país. A cantora é aclamada por muitos movimentos de minorias por fazer mais do que o esperado por uma mulher negra e por ir contra os sensores que tentavam calá-la. Billie era uma figura, em simultâneo, heroica e perturbada, mas que, infelizmente, não foi bem tratada pela mídia de sua época, que focou mais na sua conturbada vida pessoal e no vício em drogas do que no seu poder musical.

A literatura e a ficção procuraram contar a história da grande figura que foi Billie Holiday. O público brasileiro pode ter acesso à biografia da cantora escrita por Sylvia Fol, publicada pela L&PM Pocket, bem como duas biografias em quadrinhos: Blues for Lady Day: A História De Billie Holiday, publicada pela Veneta, e Billie Holiday, lançada pela editora Mino. Em 1972, foi lançado o drama biográfico sobre a cantora com Diana Ross no papel principal. Já o livro de Johann Hari tem início com a história de Holiday com Anslinger para mostrar o pano de fundo sinistro e racista da guerra às drogas que transformou diversos países. A cinebiografia da cantora intitulada Estados Unidos vs. Billie Holiday, do diretor Lee Daniels, é baseada na obra de Hari. O filme, disponível no Brasil na plataforma Amazon Prime Video, concorreu ao Oscar 2021 na categoria de Melhor Atriz para Andra Day, que ganhou o Globo de Ouro pela sua interpretação da cantora.


** A arte em destaque é de autoria da editora Paloma.