Categorias: LITERATURA

A origem da poesia de Marcela Alves

Dizem que quem trabalha com o que ama passa a odiar aquilo que amava. No meu caso, um dos trabalhos que tenho enquanto escritora é triturar um dos gêneros literários que mais aprecio, em pequenos pedaços, separar através de processos mecânicos cada parte, analisar em microscópio as partes diluídas em análise, contabilizar as células de inspiração em comparação com as de técnica que se encontram no fluido do texto.

No ofício de escrever sobre poesia e criticá-la, eu poderia facilmente deixar de enxergar a poesia como um todo e passar a ver apenas em microscópio a técnica e a ideia, componentes separados. Mas o poema não é um código preciso guardado no núcleo de células, como o DNA humano. A poesia tem sua gênese não na costela de Adão ou em um genoma, a origem é, ao mesmo tempo, mítica e prática: da costela do impossível, o poema nasce.

Pelo menos é esta a gênese da poesia de Marcela Alves, indicada em “a terceira realidade”, um dos poemas da primeira divisão do livro de estreia da autora, publicado pela editora Urutau. Sem deixar de lado o cuidado com palavras e a criação artesanal dos significados em imagens, Da Costela do Impossível tem uma poesia caracteristicamente narrativa, quase como o Velho Testamento bíblico, coleção de fábulas sobre a origem da humanidade e seu destino que não deixa de ter também lirismo.

da costela do impossível

De forma eficiente enquanto narrativa, o livro conta a origem do eu-lírico que nos escreve: dividido em três partes — três atos clássicos do drama, poderia-se dizer —, a obra é também uma narrativa de amadurecimento da relação entre o eu com a própria existência, sendo este talvez o tema central em torno do qual giram os subtemas das poesias.

Em “Para recepcionar o sol”, a psicóloga escolhe o tema do nascimento para abrir a jornada épica em direção do destino de heroína que o eu-lírico vai buscando. Em rememorações da infância, alguns poemas são retratos das figuras materna e paterna enquanto outras questões do amadurecimento fazem aparições nos textos de tamanho médio, pontuados em versos que conduzem a uma leitura em voz alta bastante enfática. As imagens e sentimentos convocados à mente através dos versos são de grande familiaridade para muitos leitores.

Particularmente, me vi em diversos momentos ali narrados pela poesia. Nunca me proponho a ler como crítica. Mesmo os livros que preciso resenhar são primeiramente vistos como leitura de fruição. Mas Marcela me fez, ainda nessa primeira parte de Da Costela do Impossível, esquecer que eu estava em um laboratório de análises poéticas. Este fenômeno ocorre quando a técnica colabora com o significado. E, como meu  trabalho neste artigo é justamente explicar porque a poeta mineira precisa ser lida, eu deveria dissecar sua escrita e separar os dois componentes essenciais que compõem as proteínas das palavras. Ao concluir a leitura da primeira divisão do livro, eu soube: definitivamente ler este livro até o final não mataria meu amor pela poesia.

Trago as palavras da própria autora em “quando ainda” para definir o que senti ao retomar a leitura, tentando equilibrar a vontade de ler tudo que a autora mineira tinha a entregar e o desejo de não terminar nunca e sempre me surpreender a cada página do livro.

“enquanto não encontro
a palavra de te perder
em caudalosa espera
piso movediça
parando sempre que posso”

E ainda que a leitura tenha sido tão prazerosa pela qualidade da escrita e pelo poder dos sentidos transmitidos, é preciso dizer: não consegui exatamente dominar o ritmo de leitura, porque a escritora trouxe ao livro uma cadência própria que acompanha também a segunda parte, “Lusco-Fusco”. Aqui os poemas continuam tecendo significados para a existência e saem da esfera familiar mais nuclear e passam a observar outros personagens: a terapeuta — que poderia ser perfeitamente um auto retrato ou uma fotografia de outra pessoa — e a cirurgiã — que pode ser alguma criança do convívio do eu-lírico sendo observada por um olhar adulto. Os questionamentos e entendimentos sobre a vida seguem se intercalando a estes retratos escritos que surgem nas páginas.

Além da questão existencial, o amor é tema recorrente em todas as sessões da obra lançada em 2022. Em “Me anuncia a noite”, a jornada da poeta tem como paradas o amor, mas não sob uma perspectiva romântica e individualista. Através de um olhar desnudado para o sentimento, o amor e todas as suas faces aparecem junto a outras emoções que se prendem a ele. Se a poeta se anuncia, ainda no primeiro poema do livro, “da pertença”, como tendo sobrevivido desde o nascimento através do amor, é com as outras emoções que acompanham o sentimento que ela vai se despedindo e compreendendo a existência — que só tem sentido e poesia porque tem fim. E este fim, como indica o título do último poema — é mais um início.

Da Costela do Impossível tem uma poesia que questiona a vida e a divindade desta, encontrando, por conta própria, maneiras de honrar a existência que vem sendo narrada, episódio por episódio ao longo do livro. É bonito e prazeroso ver a maneira como as relações humanas vão transcendendo a própria mortalidade e se interligando na teia da vida que costura quem o eu-lírico é. Marcela Alves ainda está em seu livro de estreia, mas tem a maturidade linguística para transmitir uma vida inteira e mais todas as vidas que a compõem — outro tema de vários poemas — em um livro de apenas 76 páginas.

Na proposta de analisar estas poesias, recomendo que não se use técnica laboratorial alguma. Meu conselho a quem ler o livro da autora estreante na poesia é sentir a química poética em Da Costela do Impossível sem pensar muito em como a liga entre as palavras se dá. Porque absorvendo sem processos muito mecânicos cada poema, se entende — não com um olhar externo e analítico, mas por um reconhecimento interno do DNA constando em cada uma das nossas células — que a poesia de Marcela Alves vem da costela do impossível. E, tendo esta origem, a escrita da autora faz quem deveria ter um olhar crítico esquecê-lo para sentir apenas amor pela própria ideia de poesia, tão bem executada é toda a obra.

O impossível e sua costela dão origem a todas as formas de existência e são a própria imagem e semelhança de deus — onipresente ao longo do livro. Outro tema dos poemas, a coexistência, acaba sendo recorrente e nos explica nossa própria divindade plural. A poesia da autora, portanto, vem do particular que toca a todos nós, que também recebe os nomes de amor, deus, ou mesmo realidade.


O exemplar foi cedido como cortesia pela autora.