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Mulheres em um mundo de homens: as garotas dos BLs

Boys’ love é um tipo de produção artística bastante difundida no leste asiático e que vem se popularizando no mundo em diferentes mídias: quadrinhos, livros, filmes, séries para TV e internet. No audiovisual, os serviços de streaming facilitam o acesso, e muitas séries asiáticas — em particular da Tailândia, país onde o mercado dos BLs acabou se especializando em séries para a TV — trazem romances entre homens. Elas estão ganhando a atenção de crítica e público: premiações, hashtags e trending topics das redes sociais apontam o reconhecimento deste tipo de obra.

Desde os anos 70, quando surgiram as primeiras histórias que consolidaram o gênero, os BLs vêm produzindo massivamente tramas com protagonismo LGBT+. Só na Tailândia foram produzidas, em média, cerca de 90 séries por ano, nos últimos anos — o que abre a possibilidade para uma variedade de temas, formatos, subgêneros e gêneros das produções. No entanto, um traço importante comum a este tipo de narrativa é que, embora as histórias sejam ambientadas em nosso mundo, no seu universo ficcional, se relacionar com alguém do mesmo gênero não chega a ser uma questão muito dramática ou o centro das atenções dos protagonistas. Neste tipo de obra, outras questões e as próprias conexões humanas costumam ganhar destaque, já que a homofobia, externa ou internalizada, não toma parte do tempo de tela. Dependendo do gênero, podem haver muitas outras motivações para a trama: um suspense que pode focar na resolução de um mistério, uma história de ação sobre disputa entre gangues etc. Assim, as produções não costumam centralizar seus roteiros em questões sobre aceitação da identidade LGBT+.

É importante lembrar, no entanto, que quando se fala sobre protagonismo LGBT+, as vivências em tela são de homens. Até existem GLs — séries protagonizadas por mulheres que se envolvem afetivamente —, mas são raras. Como explicado no episódio sobre Tóquio na série documental Christiane Amanpour: Amor e Sexo Pelo Mundo, a cultura dos BLs surgiu nos anos 70, em histórias em quadrinhos feitas por mulheres e para mulheres, como um meio de experimentação através da criação e consumo literário, uma liberdade maior para os relacionamentos românticos e a sexualidade. Ainda assim, eles são produtos culturais nos quais predominam a presença de personagens masculinos. Normalmente, até personagens secundários são homens, algo que, em partes, pode ser explicado por uma cultura patriarcal universal que prioriza o protagonismo masculino, já que homens ainda comandam e pagam pela realização de produtos de entretenimento e usam a oportunidade para perpetuar narrativas de poder masculino.

O fenômeno pode ser, também, observado do ponto de vista mercadológico, em um olhar mais aprofundado para o modelo de negócios que se organiza nos países asiáticos — não muito diferente do nosso quando se trata de desigualdade de poder, oportunidades e salários na indústria do entretenimento. Este texto, porém, não pretende discutir o mundo dos homens dos BLs que, em muitos aspectos (embora não todos), espelha o mundo real.

Mulheres em um mundo de homens

Tanto no mundo real quanto no ficcional existem mulheres que se destacam, personagens que acabam brilhando e, muitas vezes, roubam a cena dos protagonistas homens pela sua ampla complexidade e diversidade entre si — uma prova de que, até mesmo quando gira ao redor de um homem, uma trama pode ter personagens femininas bem construídas que não são apenas arquétipos genéricos escritos para servir à narrativa. Mulheres podem ser personagens com histórias e personalidades próprias.

É preciso observar que, ainda que se destaquem, as mulheres dessa lista são poucas já que poucos dramas têm papéis femininos, e menos ainda papéis relevantes. Comumente, as produções nem sequer passam no teste de Bechdel — proposto pela escritora Allie Bechdel para conferir, de forma bastante básica, se personagens femininas de uma história serviam apenas ao desenvolvimento de um personagem do sexo oposto. Para passar no teste, uma obra precisa ter mais de duas personagens femininas, com nome e falas, que tenham um diálogo entre elas que não seja sobre um homem. Embora pareça muito simples, muitas obras em diversos gêneros e mídias não são capazes de passar pelo teste. O fato de não passarem, portanto, não pode ser uma crítica direta a este tipo de mídia asiática, já que também no ocidente muitas obras com personagens femininas reprovam no teste — entre elas, inclusive, produções com foco na vivência LGBT+.

A lista serve para lembrar que países como a Coreia do Sul, Tailândia e China conseguem criar personagens de destaque em meio a um mundo de homens: uma prova, infelizmente, ainda necessária de que é possível falar sobre homens sem menosprezar a existência de mulheres.

Ji-hye e Yu-na: Semantic Error (Coreia do Sul)

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Enquanto os protagonistas Jang Jae-Young (Park Seo-Ham) e Cho Sang-Woo (Park Jae-Chan) se resolvem entre o amor e o ódio, Ryu Ji-Hye — interpretada por Kim No-Jin — está às voltas com seu próprio dilema: confessar ou não seu interesse por Sang-Woo. Os dois estão no mesmo curso e, desde o começo da trama universitária, ela se aproxima com muita determinação do colega. Seus sentimentos são nítidos para os espectadores, mesmo que ela seja cautelosa na abordagem porque compreende os limites do rapaz, que é o último a perceber o que ela se interessa por ele.

Muitas vezes, as garotas interessadas por um dos protagonistas estão na trama apenas como alguém que será rejeitada quando o protagonista entende sua atração por outro rapaz. Este poderia ser o destino de Ji-Hye, mas ela tem um arco próprio: mesmo quando percebe que não é, nunca foi e nunca seria correspondida por Sang-Woo, ela se firma no propósito de se confessar a ele, porque sua intenção passa a ser não conquistá-lo, mas aprender a se expressar claramente quanto ao que quer. De maneira doce e corajosa, ela confessa seus sentimentos com uma dignidade que impressiona e inspira, sem se prender à rivalidade com Jang Jae-Young, o real interesse amoroso do rapaz por quem está apaixonada.

Do lado de Jae-Young temos uma melhor amiga que não só é compreensiva — mesmo tendo uma personalidade mais assertiva e comportamento mais descontraído —  como também compartilha com o rapaz o entendimento da sexualidade desviante do padrão. Na trama, não conhecemos muito da vida de Choi Yu-Na — vivida por Song Ji-Oh —, mas ela nunca julga o desejo de Jae-Young por Sang-Woo, o que mais tarde parece se dever ao fato de que ela também se sente atraída por um gênero diferente do que a sociedade determina. Além do mais, ela é bastante amigável e ajuda Sang-Woo a superar sua inexperiência amorosa, dando toques e interferindo para que o romance aconteça com seu melhor amigo. A complexidade de Yu-na mostra que é possível construir coadjuvantes com profundidade e camadas diferentes mesmo com pouco tempo de tela.

Embora não se encontrem durante os episódios, até por não estarem no mesmo núcleo, o fato de não conversarem sobre outros assuntos pode se dever mais à história que é compacta — sem muitos outros personagens, cenários ou mesmo desenvolvimento de outros núcleos. Com mais episódios ou tempo de duração deles, as duas poderiam ter mais desenvolvimento, mas independente do fato de que as personagens ainda estejam servindo à trama masculina, elas não são arquétipos óbvios ou vazios. Suas características são singulares, possuem individualidade e superam os limites que poderiam ter sido impostos a seus papéis e se tornam mais do que a garota não-escolhida e a melhor-amiga sábia. E, por terem construções humanas e complexas, se tornam memoráveis.

Ink e Pa: Bad Buddy (Tailândia)

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Inicialmente, as coadjuvantes de Bad Buddy parecem ser apenas personagens secundárias que servem ao romance principal. Pa, interpretada por Pattranite Limpatiyakorn, é a irmã de Pat (Pawat Chittsawangdee), um dos protagonistas. No começo, ela oferece à trama algumas indiretas sobre os papéis de gênero determinados pela família — o que parece apenas explicar como a origem do personagem o compõe. Ink, vivida por Pansa Vosbein, é uma personagem que aparece para provocar ciúmes em Pran (Korapat Kirdpan), protagonista que não admite abertamente seu sentimento pelo outro.

A partir do momento em que se conhecem, as duas passam no teste de Bechdel e ao invés de manter a conversa entre elas sobre o relacionamento dos protagonistas, passam a falar sobre outros assuntos que não os homens da série. Com o passar do episódios, começamos a conhecer um pouco mais sobre as garotas: Pa está prestes a entrar na faculdade, enquanto Ink é uma veterana de Pa cujo hobby é a fotografia, e sua amizade com Pat — o irmão de Pa — revela parte de como ela enxerga os relacionamentos afetivos. Em tempo, Pa começa a se relacionar com outras pessoas e sua reação diante desses afetos demonstra um pouco mais sobre quem ela é, para além da irmã que implica com o irmão privilegiado pelo gênero dentro de casa. O apoio de ambas para o romance dos protagonistas também tem um papel importante de demonstrar acolhimento e normalizar as relações não-heterossexuais.

Mais tarde, em um último ato da trama, Pa e Ink passam a ter as próprias questões em relação aos seus relacionamentos e à sexualidade: as duas começam a se envolver romanticamente e muitos de seus comportamentos anteriores passam a fazer mais sentido para a construção da narrativa. Diante da revelação do que sentem, elas vão delicadamente se aproximando e a história delas passa a ganhar mais tempo de tela, com direito a todos os clichês românticos que os garotos protagonistas deste e de outros BLs vivem. O sucesso do casal foi tanto que as atrizes ganharam seriado próprio, repetindo a química que deu certo em 23.5, produção do mesmo canal.

The Untamed (China)

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O caso de The Untamed é um pouco mais complicado: aqui, embora existam muitas mulheres na trama, cumprindo papéis diversos e em diferentes posições sociais, com construções complexas e cheias de camadas, seus destinos são majoritariamente cruéis ou indiferentes, e seus arcos dificilmente possuem uma conclusão satisfatória.

Em comparação com os livros da série em que se inspira (O Fundador da Cultivação Demoníaca, de Mo Xiang Tong Xiu), as mulheres ganham muito mais complexidade e destaque, e têm suas ações de fato reconhecidas como centro de grandes arcos e reviravoltas na trama. Nem a narrativa  original do romance, nem a da versão que analisamos aqui, a audiovisual live action (a série também foi adaptada para quadrinhos, animações diferentes e video-games) passam no teste de Bechdel. Mas é notável a força das personagens femininas que compõem este universo.

Na série, Wei Wuxian (Xiao Zhan)  e Lan Wangji (Wang Yibo) são ambos órfãos que vivem em clãs distintos de cultivadores — pessoas que dedicam a vida a trabalhar a energia vital para desenvolverem poderes —, mas na composição de suas personalidades opostas está sempre a sombra de quem foram suas mães. As personagens não têm cenas, mas ainda assim merecem ser comentadas porque toda a criação dos garotos — cujo crescimento acompanhamos dos 16 aos 30 anos — é determinada pela fama que suas mães tiveram, como se eles precisassem ser moldados a seguirem ou se afastarem de todo o poder que suas respectivas mães tiveram. Tudo que nós — e os filhos — sabem é com base no depoimento e comentários de quem conheceu as mulheres e isso torna o entendimento de quem foram cheio de nuances, que vão afetando as escolhas dos protagonistas.

A única mãe que de fato vemos em tela é Madame Yu, uma lutadora com muitas habilidades de luta e que demonstra de forma velada ciúme dos afetos de seu marido. Interpretada por Zhang Jing Tong, ela não demonstra muito carinho por ele e está sempre sendo seca e ríspida com os filhos biológicos e Wei Wuxian, adotado por seu marido e filho de uma mulher por quem o homem supostamente era apaixonado, mas cuja relação que de fato se sabe ter existido foi apenas de amizade. Ainda assim, Madame Yu luta pelo marido e defende seus filhos com a própria vida. Ainda que seja fria com os filhos, faz de tudo para protegê-los de forma indireta, o que acaba dando muita complexidade à personagem e gerando algumas das cenas mais dolorosas da trama — como quando salva seus filhos e até Wei Wuxian, a quem desprezava, do ataque de um clã inimigo, mesmo sabendo que a morte será seu destino.

Aparecem ainda algumas outras mães: aparentemente sempre em um papel tradicional do gênero, mas tendo — até mesmo por isso — habilidades para resolver questões políticas de um mundo de homens sem o confronto direto típico das resoluções masculinas. Os papéis de cuidadoras também aparecem de formas variadas nas irmãs mais velhas.

Jang Yanli, interpretada por Lulu Xuan, é irmã biológica de Jiang Cheng (Wang Zhuocheng) e adotou Wei Wuxian como irmão imediatamente, assim que ele foi trazido para casa. Seu papel conciliador e compreensivo ajuda a resolver conflitos entre os irmãos adotivos através da gentileza e do cuidado — que nenhum dos três recebeu de Madame Yu. Aparentemente, a personagem é fraca e construída como uma mulher em seu papel típico de cuidar e querer se casar e se tornar mãe. Mas ela acaba sendo um contraponto de carinho e acolhimento em um mundo que vai se mostrando cada vez mais hostil devido às disputas por poder. Seu destino trágico move a trama, mas é um dos finais mais injustos possíveis para uma personagem tão boa e bem construída.

Wen Qing, vivida por Meng Ziyi, tem a mesma função: proteger seu irmão mais novo, um garoto tímido e indefeso. Ela não mede esforços para salvá-lo, mas os pontos que a tornam mais complexa são justamente o tamanho de seu talento na medicina e seu pouco apego ao poder. Ela de fato só se interessa em estar viva e tranquila ao lado de sua única família restante, o irmão Wen Ning (Yu Bin), a ponto de rejeitar o romance proposto por Jiang Cheng.

Outras personagens têm algum destaque na trama e aparecem, inclusive, em papéis de grande poder, mas à exceção de Mian Mian, vivida por Wang Yi Fei, que abandona os clãs de cultivação por uma questão de princípios, e vai desenvolver seus poderes por conta própria e tem sua própria família, todas as outras mulheres têm finais terríveis ou sequer recebem um desfecho digno para seus arcos.

Representatividade importa?

A maior parte das histórias que conhecemos são sobre homens e sempre houve poucas mulheres com papéis relevantes na indústria do entretenimento mundial. Nos mundos ficcionais somos pouco representadas em nossa imensa diversidade e complexidade e esta desigualdade se reflete no mundo real: menos opções de trabalho, salários menores, pouco desenvolvimento das mulheres presentes no setor. Ademais, precisamos estar mais presentes nas narrativas sobre a comunidade LGBT+ ainda que como coadjuvantes, pois também no mundo real há um histórico de invisibilização de mulheres importantes para as causas da comunidade.

A vida imita a arte. Então, o mundo ficcional não ser composto só de homens dá mais espaço para que mulheres sejam representadas em pé de igualdade com aqueles que dominam há tanto tempo o protagonismo das nossas narrativas, e logo, na realidade, a igualdade também passa a se fazer mais presente. O público dos BLs segue sendo majoritariamente feminino, então é muito importante nos vermos em tela em boas personagens, e não apenas naquelas construídas apenas para reproduzir e incentivar velhas tramas de dominação feminina.