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O Irlandês: muito mais que um filme de máfia

Tão logo a imagem preta se dissolve na televisão, a câmera nos apresenta um plano-sequência de um asilo ao som de “In The Still of The Night”, uma canção de 1956. A partir do primeiro frame, já sabemos que O Irlandês, filme mais recente de Martin Scorsese, será diferente.

Quando o filme termina com o mesmo plano-sequência e trilha sonora, após três horas e meia de duração, temos a confirmação de que Marty criou, talvez, seu filme mais maduro, a reflexão final do universo de gângster e máfia que ele ajudou a alimentar. Apesar dos elementos clássicos dos filmes de máfia, até mesmo a presença de atores consagrados do gênero, como Al Pacino e Robert De Niro, O Irlandês é um filme de máfia, mas nem tanto assim. Ele usa a história real de Frank Sheeran (Robert De Niro) para, na verdade, nos contar uma história emocionante sobre memória e de como as coisas mudaram radicalmente.

Além disso, O Irlandês também é uma história de metalinguagens. Ali está Joe Pesci, ator que havia trabalhado com Marty em Cassino e Os Bons Companheiros, sepultando a era de um cinema. A era de Scorsese morreu, e o filme fala muito sobre isso. São três horas e meia de uma carta de amor ao cinema que o cineasta ajudou a criar — e cuja morte ele lentamente assiste.

Um filme de máfia, mas nem tanto

Há quem pense que os filmes de máfia retratam tão somente a violência e servem como mais um veículo para a violência que domina Hollywood. No entanto, se olharmos a história do gênero, perceberemos que não é bem assim. Em diversos momentos da história do cinema, os filmes de gângster ou máfia fizeram uma dura crítica social.

De acordo com Fran Mason, a história do gênero gângster começou ainda na era muda do cinema. Filmes como The Musketeers of Pig Alley, de D.H Griffith, e Regeneration, de Raoul Walsh, ajudaram a definir as primeiras linhas do gênero. Nesse momento, esses filmes ainda continham uma boa pitada de melodrama e pouca crítica social. A inserção do som no cinema ajudou a criar parte do imaginário do universo de gângster, no entanto. Isso porque, para que o filme funcionasse visualmente, era preciso que houvesse o som de tiros, da cidade que esmaga o protagonista, elementos que criaram a sensação de estar preso em uma gaiola. Foi com os filmes Alma no Lodo, Scarface e Inimigo Público que o gênero gângster se consolidou, e não por acaso: a Warner Brothers, estúdio que idealizou todos esses filmes, era conhecido pelos produtos de baixo orçamento. Os filmes de gângster custavam mais barato e, ironicamente, fizeram com que a Warner virasse um estúdio grande da noite para o dia.

Por trás do som das armas, havia a crítica social, e esses filmes versavam sobre corrupção, a Grande Depressão e a ambição. O gângster era um herói trágico, um personagem bom e ruim ao mesmo tempo. James Cagney e Edward J. Robinson, dois atores do gênero, representaram como ninguém tais contradições. Um dos elementos mais sociais dos filmes dessa época é a oposição entre a família, o maior bem de uma pessoa, e a gangue, ou seja, a oportunidade de ir além e ultrapassar barreiras sociais. Era uma espécie de inversão do Sonho Americano.

Dos anos 1930 para cá, muitas coisas mudaram. Martin Scorsese foi um dos responsáveis por reinventar fórmulas e continuar o legado de um dos gêneros mais populares do cinema. Em Os Bons Companheiros, de 1990, por exemplo, a crítica social reside na forma como Marty retrata a máfia. Ao contrário da romantização de O Poderoso Chefão, na qual os homens matavam pela honra, Os Bons Companheiros mostra quem eram os homens dentro da máfia: eles gostavam de matar por matar e eram sanguinários. A história do protagonista Henry Hill (Ray Liotta) se confunde com a dos próprios EUA, imersos em uma cultura de consumo desenfreado.

Dessa forma, não parece surpresa nenhuma que O Irlandês não seja exatamente sobre máfia. A história de Frank Sheeran, um simples entregador de carne que se torna matador de aluguel, é muito mais sobre memória, embora haja sangue o suficiente ao longo das três horas e meia de duração. Temos o protagonista em um asilo refletindo sobre sua vida, nos contando a história em dois momentos diferentes: o passado, nos anos 1950, e o presente, nos anos 1990.

Sheeran foi um dos últimos sobreviventes de uma era praticamente morta nos EUA, aquela em que Little Italy era o reduto de carcamanos que mandavam e desmandavam em todas as cidades norte-americanas. Ele contou sua história ao FBI e ela foi transformada, posteriormente, em um livro chamado I Heard You Paint Houses (“Ouvi Dizer que Você Pinta Casas”, em tradução livre), inspiração para O Irlandês. A questão da memória no filme é trabalhada de inúmeras formas. É o caso de Marty fazer questão de, cada vez que um novo personagem aparece, inserir um texto na tela explicando o fim daquela pessoa. Assim, o espectador percebe que quase todos morreram, não sobrou nenhum, o que corrobora a ideia de que uma era está lentamente escorrendo pelos dedos de Frank.

O fato de O Irlandês se passar em três tempos diferentes, o do asilo, o da viagem de carro e da própria trajetória de Frank, é um recurso muito interessante. Nas mãos de qualquer outro cineasta, poderia ser exaustivo, ainda mais pelo fato de a narrativa ter três horas e meia. Porém, Marty contou com o trabalho caprichoso e fantástico da montadora Thelma  Schoonmaker, que montou o filme pensando nas três histórias que se entrelaçam. Assim, a montagem torna o filme muito fluído, e a questão da memória vai pesando cada vez mais à medida em que a viagem se desenrola.

Vivemos em um momento em que as coisas acontecem rápido demais. O sucesso de hoje é o ocaso de amanhã em uma velocidade absurda. Ao se propor três horas e meia de memórias de um idoso, O Irlandês está desafiando o tempo e a disposição do espectador para lhe mostrar a importância da memória. Precisamos passar três horas ao lado de Frank Sheeran para entender o peso de sua trajetória, menos do que isso seria loucura. Como poderíamos entender o clímax do filme em uma hora e meia? É impossível. Marty sempre gostou de rodar filmes compridos. Cassino, de 1995, tem duas horas e meia, mas pertence a outra época. Nós queremos informação rápida, e o filme contém a mensagem da memória em sua própria duração. Não é um entretenimento rápido.

A questão da memória também está presente na escolha de, no tempo do asilo, Frank falar diretamente com o espectador, representado pela câmera. Ele tece comentários, é como se um amigo querido estivesse nos contando a história com exclusividade. Gosto muito da quebra da quarta parede, pois ela estabelece uma conexão imediata com o espectador. Quando Frank se dirige a nós, é difícil não se encantar com sua trajetória, ainda que ela seja permeada de violência. Embora não seja um filme sobre violência, O Irlandês consegue ter a qualidade essencial de um bom filme de gângster: ele tem facetas, e não é possível classificar seus personagens como bons ou maus.

Sheeran precisa nos contar sua trajetória porque foi esquecido. Sua esposa morreu e suas filhas o desprezam. Quando ele fala, ele aciona a memória, porque relembrar é viver. Idosos, em geral, precisam conviver com o descaso da família, e com Frank não foi diferente. Quando Swann comeu a famigerada Madeleine, em No Caminho de Swann, aquilo acionou diversas lembranças, levando a um processo catártico. Ao relembrar de seu passado como matador de aluguel, é como se ele comesse Madeleine diante do espectador. Indo além, é como se o espectador fosse Madeleine, já que é ele quem desencadeia o processo catártico do personagem.

Um filme sobre os laços indissociáveis da amizade

Além da memória, também podemos analisar O Irlandês como um filme sobre amizade. Não é um tema novo nos filmes de máfia, na verdade, a amizade é uma característica quase indissociável desses filmes. Lembro-me de Era Uma Vez na América, filme de Sergio Leone, que versa sobre a amizade enquanto os protagonistas ascendem no mundo da máfia.

Frank Sheeran começa sua trajetória no mundo da máfia após um encontro casual com Russell Bufalino (Joe Pesci). Russ ajuda Sheeran a consertar seu caminhão de carne. Depois de ser despedido e enfrentar um processo, já que foi acusado de roubar carne, o caminho deles volta a se cruzar. Frank tinha sido assessorado por Bill Bufalino (Ray Romano), primo de Russ, que viu no entregador de carnes a pessoa ideal para prestar pequenos serviços para a máfia.

O sistema da máfia é interessante. Você prova sua lealdades a eles cumprindo ordens. Se lhe mandam matar, você mata. As relações de confiança funcionam à base do cumprimento de ordens sem contestar. Frank era o homem ideal e leal para a máfia, pois havia servido durante a Segunda Guerra Mundial. Ele matou muita gente sem sentir muita coisa, afinal eram ordens. A banalidade do mal.

Frank conquistou a afeição de Russ cumprindo ordens. Em um momento determinante para o filme, a cena em que tomam café da manhã, Russ diz à Frank que fez o que fez porque eram eles ou entregar outra pessoa. A maior prova de amor, por mais torta que fosse, foi a ação de Russ a favor de Frank, mesmo que isso significasse a ruína deste. Russ e Frank têm grandes momentos de afeto ao longo do filme. Um deles, o meu preferido, é quando molham o pão no vinho e comem. Esse momento é repetido quando eles já não têm o mesmo prestígio de antes, e é incrível perceber como Marty constrói a amizade entre os dois. Outro momento de afeto importante é quando Russ dá um anel de presente a Frank. É o símbolo máximo de lealdade que um homem pode conquistar.

Não é apenas a amizade entre Russ e Frank que atravessa o filme. Lá pelas tantas, Jimmy Hoffa aparece na trama, e a conexão entre eles é imediata. Frank começa prestando alguns serviços para o líder sindicalista, até se tornar indispensável na vida dele. Hoffa ocupa uma posição tão privilegiada que é até íntimo da esposa de Hoffa. No entanto, há um problema: em um determinado momento do filme, Frank precisa escolher entre esses dois amigos. O que ele faz, o maior plot twist do filme, é uma das cenas mais tensas e bem construídas que vi nos últimos tempos. Por meio da montagem de Schoonmaker, o filme vai crescendo, à medida em que a escolha vai se tornando cada vez mais palpável. Sabemos qual amigo Frank escolherá.

O Irlandês me destruiu por conta disso. Até que ponto vale a amizade? Talvez, no mundo da máfia, o que vale é agir conforme as circunstâncias. Sheeran, ao se deparar com o dilema da história, percebe que ele é apenas uma máquina a serviço de algo muito maior: a máfia. Não importa o que ele pensa.

Ao contrário de tantos outros filmes sobre a máfia, percebemos que a escolha de Frank é dura. Quando ele chora ao telefone, quase sem ar, é como se você pudesse sentir que ele sabe o peso do que acabara de fazer. Como não queria fazer o que nos leva ao destino final do filme. O maior acerto de O Irlandês é mostrar a humanidade dos idosos mafiosos. A câmera de Scorsese trabalha o tempo inteiro ligada à emoção dos personagens.

Apesar de parecer um filme de máfia, O Irlandês fala muito sobre sentimentos. É até engraçado, pois você não espera isso de um filme do gênero. Porém, está lá, a amizade de uma vida despedaçada está lá. A violência do filme explode em momentos pontuais para mostrar esse rasgo. É uma violência seca e crua.

O fim de uma era no cinema

Por fim, O Irlandês versa sobre o fim de uma forma de se fazer cinema. Scorsese entrou em um debate muito acalorado, declarando que a Marvel não podia ser classificada como cinema. Ele declarou que tais filmes eram como um parque de diversões. Concordando ou não com a afirmação, uma coisa é certa: precisamos discutir a forma como estamos fazendo cinema hoje e o futuro da indústria.

A ascensão de filmes da Marvel e da DC me lembra muito o sistema de estúdio na Hollywood Clássica. Naquela época, existiam fórmulas, ou seja, um filme acabava se parecendo muito com o outro. Judy Garland, por exemplo, rodou diversos filmes adolescentes com a seguinte fórmula: dois adolescentes decidem montar um musical e provar seu valor enquanto artistas. Foram cinco ou seis filmes assim.

Transferindo para os dias de hoje, é inegável que fórmulas persistem. As franquias são o maior exemplo disso. Muitas vezes não é necessária uma continuação, mas o estúdio decide por ela, já que é mais rentável. Uma fórmula atrás da outra nos impossibilita de pensar. E acredito que essa tenha sido a crítica de Scorsese. Ao rodar um filme de três horas e meia, Marty está mandando uma banana para as fórmulas, digamos assim. Como disse anteriormente, é um tipo de entretenimento que exige muito de nós. Não é porque ele tem três horas e meia, mas sim porque a profundidade de seus personagens não é algo simples de ser apreciado.

A crítica de Scorsese aos filmes da Marvel também reside no fato de que os cinemas do mundo inteiro estão dominados apenas por filmes de super-heróis. Isso é um problema, porque impossibilita as pessoas de terem outras opções de filmes. Quem não se lembra de quando Vingadores: Ultimato estreou ocupando 80% das salas de cinema do Brasil? Para ser exata, o filme ocupou 2.700 salas de cinema, de um total de 3.556. Que tipo de narrativa queremos veicular? Que filmes queremos apreciar? Acredito que O Irlandês tenha seus méritos por levantar essa discussão.

Além disso, O Irlandês simboliza o fim de uma era no cinema porque o diretor teve dificuldades para financiar o filme. Em um mundo real, como é possível que Scorsese, um diretor premiado e renomado, tenha dificuldades? Bem, talvez porque histórias como a de O Irlandês já não interessem tanto. Em entrevista para a Entertainment, o diretor declarou:

“As pessoas simplesmente não estavam interessadas, e isso foi antes do CGI (tecnologia para rejuvenescer os personagens digitalmente). Ninguém queria nos dar o dinheiro. Só que eu realmente senti que eu e o De Niro tínhamos que rodar pelo menos mais um filme, e ele se conectou muito ao personagem.”

Um grande player do mercado, a Netflix, entrou na jogada para financiar o filme. Essa parece ser a tendência do futuro, já que Roma, de Alfonso Cuarón, teve uma história bastante parecida. Para além da discussão sobre a regulamentação dos streamings, o que fica é que o cinema parece estar cada vez mais interessado apenas em blockbusters, apostas seguras.

Me chama atenção o fato de que O Irlandês não tenha tido o buzz que realmente merecia. O nome Martin Scorsese é desconhecido por muitas pessoas da minha geração. Acho um ato de resistência Marty ainda estar fazendo cinema, especialmente com nomes tão pesados do entretenimento, que parecem esquecidos por Hollywood. É um ato de resistência, de homens brancos e heterossexuais mas, ainda assim, idosos que parecem cristalizados em Entrando Numa Fria e O Poderoso Chefão.

Talvez O Irlandês não leve nenhum prêmio na noite do Oscar, mas é provável sua maior qualidade seja estar a um clique de distância dos espectadores. A qualquer momento é possível conectar-se à trajetória de Russ Bufalino e Frank Sheeran, já que o cinema parece estar se fechando cada vez mais em copas.

O Irlandês recebeu 10 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Diretor (Martin Scorsese), Melhor Ator Coadjuvante (Al Pacino e Joe Pesci), Melhor Roteiro Adaptado (Steven Zaillian), Melhor Fotografia (Rodrigo Prieto), Melhor Direção de Arte (Bob Shaw e Regina Graves), Melhor Figurino (Sandy Powell e Christopher Peterson), Melhor Edição (Thelma Schoonmaker) e Melhores Efeitos Visuais (Pablo Helman, Leandro Estebecorena, Nelson Sepulveda-Fauser e Stephane Grabli).

oscar 2020