Categorias: CINEMA

Shirkers: Sandi Tan ressignifica o passado e reclama sua voz

Quantos homens egoístas já roubaram as criações e trabalhos de mulheres brilhantes? Quantos filmes, livros, invenções e projetos foram perdidos ao longo dos anos por causa de um homem orgulhoso? A resposta varia: os casos que conhecemos são muitos, e para cada um deles existem incontáveis outros que nunca tomaremos conhecimento. Shirkers – O Filme Roubado (2018), atualmente disponível na Netflix, foi ganhador do prêmio de Melhor Direção de Documentário na edição do ano passado do Festival Sundance e conta mais uma dessas histórias.

Diretora e roteirista do projeto, a singapurense Sandi Tan sempre foi uma criança meio estranha, dessas com que nós imediatamente nos identificamos. Gostava de filmes e músicas que ninguém conhecia e tinha sonhos mirabolantes de criar sua própria arte. No seu caso, um road movie pretensioso sobre uma assassina de 16 anos chamada “S”. Diferente de muitas crianças estranhas, que acabam tendo seus sonhos podados pela vida, Sandi Tan foi lá e fez o filme que queria, mas as coisas não saíram como planejado. O Filme Roubado é a história dessa aventura.

A escritora, com 19 anos na época, teve o incentivo do seu professor de cinema e amigo, Georges Cardona, e contou com a ajuda de suas melhores amigas, Jasmine Ng e Sophia Siddique. Shirkers, o original de 1992, foi filmado durante o verão, antes das garotas voltarem para suas respectivas faculdades em cidades e países diferentes. Sandi, além de escrever o roteiro, interpreta a personagem principal, Cardona foi o diretor, Sophia era a produtora executiva e Jasmine iria editar. As garotas contribuíram com tudo o que puderam para que o filme ganhasse vida, desde usar todas as suas economias para financiá-lo até levar escondido um cachorro gigante do supermercado, passando por fingir desmaios para atrair multidões e roubar velhinhos do asilo (e depois devolvê-los).

Com o fim do verão e das filmagens, cada uma partiu em direção ao seu futuro e Cardona ficou com as latas de filme 16mm para processar. O que ninguém esperava era que esse homem, até então um amigo e mentor, sumiria com tudo e pelos próximos 20 anos seu paradeiro seria um mistério.

Virginia Woolf uma vez escreveu: “Não é preciso ter grandes habilidades em psicologia para afirmar que qualquer garota muito talentosa que tenha tentado usar seu dom para a poesia teria sido tão impedida e inibida por outras pessoas, tão torturada e feita em pedaços por seus próprios instintos contrários, que deve ter perdido a saúde e a sanidade, com certeza.” A frase foi dita décadas antes de Sandi, Jasmine e Sophia ousarem ser garotas talentosas e criarem seu próprio tipo de poesia. Contudo, apesar do tempo passado, o fim acabou sendo o mesmo de tantas outras: as amigas foram inibidas, impedidas, roubadas. Quando Cardona sumiu com os 70 rolos de filmes, ele deixou um buraco impossível de ser preenchido na vida daquelas garotas; suas relações sofreram e tudo aquilo que Shirkers representava não importava mais.

Então, como continuar? O que fazer depois que um homem egoísta e desprezível simplesmente leva teu esforço, dinheiro, tempo e talento embora? Perde-se a saúde e a sanidade. Ou, na melhor das hipóteses, segue-se em frente com uma ferida aberta, que nunca cicatriza e sempre volta a doer, que sempre lembra o que poderia ter sido.

E foi isso o que elas fizeram, cada uma por um caminho diferente, até que um dia em 2011 Sandi recebeu um e-mail da viúva de George informando que ela havia encontrado os rolos de Shirkers em perfeito estado. A partir daí foram precisos mais três anos para que a roteirista reunisse a coragem e dinheiro necessários para digitalizar as filmagens e, no fim, descobrir que todo o áudio estava perdido. A metáfora veio pronta: elas foram silenciadas pelo homem que ousaram confiar mesmo depois de sua morte.

Mais do que um documentário sobre um filme roubado, a versão mais atual de Shirkers é a cura de feridas antigas, uma espécie libertação dos “e se?” e das possibilidades perdidas. Como a própria diretora falou para o The Guardian: “Esse filme é um enorme e atrasado truque para juntar minhas amigas novamente, e conversar sobre essa coisa que eu não conseguia falar a respeito por um longo tempo”. Shirkers também é a retomada do caos que foram os anos seguintes ao acontecimento. O próprio documentário, composto por entrevistas, animações, fotografias, recortes, ilustrações e cenas do filme roubado, além de novas filmagens, reforça tudo isso. O resultado final é como se todas as partes espalhadas fossem colocadas numa grande pilha para ser, aos poucos, organizadas novamente de um jeito diferente. Em meio às peças perdidas e danificadas, o resultado não é o mesmo que o filme original, mas a nova versão faz sentido e ganha um novo propósito a partir desse resgate.

Outro ponto interessante é como o documentário humaniza os personagens, mostrando nuances e camadas de todos os envolvidos. Georges nunca foi um monstro, pelo contrário — ele era charmoso, tinha lábia e sabia envolver os outros nas suas histórias. Sandi Tan também é complexa, por vezes orgulhosa e teimosa demais, cega aos conselhos e críticas de suas amigas e muito mais que uma vítima. Em algumas cenas há contradições explícitas entre a narração dela e as entrevistas de Jasmine e Sophia, que falam, sem rodeios, verdades duras sobre o passado.

Minhas referências pessoais relacionam automaticamente esse processo ao jornalismo. Nesse meio, muito se fala sobre a utópica imparcialidade. Sempre que ouço alguém falar que uma mídia é enviesada como forma de crítica, lembro do professor de filosofia perguntando o que era verdade e mostrando que até mesmo isso é subjetivo. No momento em que escolhemos as palavras para contar algo, o relato deixa de ser imparcial, querendo ou não, e sempre colocamos um pouco do que acreditamos e somos em qualquer discurso. O que me fascinou em Shirkers, o documentário, é como Sand reconhece e ignora essa subjetividade ao mesmo tempo, principalmente no começo da narração. Na minha cabeça, é como se ela falasse: “Ok, vocês lembram de um jeito diferente? Tudo bem, entendo e respeito, mas vou continuar contando como eu quero”. Assim, Tan retoma sua voz roubada anos antes e ressignifica todo um acontecimento que impactou profundamente a vida das três amigas e faz dessa trauma algo diferente. Cardona pode ter sabotado seu sonho de fazer um filme independente, mas esse documentário agora é dela, e ele é só mais uma peça — assim como tantas outras pessoas que impactaram sua vida — e não seu foco principal.

Shirkers é extremamente pessoal e tocante, mas sua vulnerabilidade vem revestida por uma armadura construída durante mais de 20 anos. Diria que até meio punk, tal como as músicas que elas ouviam ilegalmente na adolescência. Ele não evoca pena, mas encanto pelo poder de criação daquelas mulheres, além de raiva, muita raiva. Por fim, outro grande contraste do documentário é entre a Singapura colorida e vibrante de 1992 e as imagens das câmeras digitais. Em 2018 a cidade já não é mais a mesma, e muito menos Jasmine, Sophia ou Sandi.