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Todas as histórias, no fim, são sobre amor

É difícil definir o significado absoluto da palavra amor. Dentro deste substantivo masculino de quatro letras cabem tantos tipos e formas, nuances e sentimentos, tantos desdobramentos e sentires que tornam uma palavra tão curta em algo que transpassa toda a experiência humana, desde o florescer de sua existência até a dar significado ao viver e estar no cerne do que nós move, seja pro bem ou pro mal. Guerras foram travadas em seu nome. Impérios construídos e destruídos por sua causa. Vidas salvas ou arruinadas por seu existir. Romeu e Julieta. Tristão e Isolda. Rose e Jack. Se sofremos por causa do amor, é porque a realidade é muito pior sem ele; vazia, oca, sem peso.

“Não existe segurança nenhuma na prática do amor. Nos arriscamos se perder, se machucar, e sentir dor”. É o que proclama bell hooks em seu livro Tudo Sobre o Amor. Ela também nos mostra que não precisamos amar, mas escolhemos fazê-lo, e neste precioso momento de escolha nos movemos contra a dominação, a opressão e em direção à liberdade. O amor, o ato de amar, é político. “All you need is love”, cantam os Beatles, e nos lembram como a música, assim como a poesia, é o meio perfeito para externar os percalços e louros do amor ao mesmo tempo que criam um mantra para nos dizer que, utopicamente, tudo é supérfluo diante do amor.

O amor é um ato de coragem. Um que alimenta a alma e se desmembra em mil outros sentimentos, que tem o poder de transmutar-se em afeto, carinho, apoio, consolo, presença. Amar é abrir-se, é enfrentar o terror de fazer-se vulnerável, é, como diz o filme Lisbela e o Prisioneiro, “um precipício, a gente se joga nele e torce para o chão nunca chegar”. Talvez, por isso, acreditar no amor, ser romântica, é um escolha ousada. Amar o amor, gostar de ver, assistir, sentir, presenciar, viver este sentimento em tempos em que predomina o cinismo, o ceticismo, a efemeridade e rapidez das engrenagens sociais que ditam nosso existir, é ser subestimado, desprezado. Sobretudo, se você é mulher.

amor - Lisbela e o Prisioneiro

Não é preciso entrar mérito das relações reais, de um indivíduo com o outro e todas as problemáticas de gênero e raça que atravessam este sentir: basta voltar o olhar analítico para como são julgadas e taxadas as relações de mulheres com produtos, especialmente da cultura pop, que tem o amor, sobretudo o romântico, como ponto central. Livros, filmes e séries que abordam o romance, sejam clássicos como os de Jane Austen, ou comédias românticas contemporâneas, e livros que caem na categoria, nomenclatura agora felizmente deixada no passado, “chick-lit”, são considerados bobos, fúteis, superficiais e sem grande valor cultural. Tudo porque relatam a experiência de mulheres navegando pela vida, enquanto tentam encontrar e vivenciar o amor romântico, tendo como principal público-alvo mulheres.

Uma mulher que canta sobre a experiência de amar, se machucar, ter esperança em ser amada de volta, para uma multidão de mulheres, em sua maioria adolescentes, ainda por cima? Merece desdém e ataques misóginos. Suas fãs que, provavelmente, também gostam de boybands com garotos que performam masculinidade gentil e cantam sobre amar a si mesmo e como elas são lindas mesmo sem saber, também são alvos de atitudes sexistas e que desqualificam seus gostos, suas paixões, seu amor pelo amor.

Mulheres são fracas, histórias sobre amor são rasas e previsíveis, clichês, nada originais, é o que dizem. Gostar de ver final feliz atrás de final feliz é ordinário. Mas, já dizia o padre (Andrew Scott) de Fleabag “o amor não é algo para os fracos. Ser romântico requer muita esperança. Acho que o que quer dizer é que quando você encontra alguém que ama, você sente esperança”. Me parece que, no fim, não apenas escolher o amor em si, mas também gostar de contá-lo e consumir histórias que tentam desvendar a experiência humana ao senti-lo, é um ato de resistência.

amor - Fleabag

O erro daqueles que desdenham é atribuir o título de “histórias sobre amor” somente àquelas que contam com o amor romântico. Mesmo que seja o tipo de amor mais comentado e, provavelmente, mais intencionalmente buscado, também o que integra as produções mais desdenhadas e vista como femininas, a presença do amor em uma trama não a condiciona, necessariamente, a ser um romance. Mas, acontece que, no fim, todas as histórias são sobre amor. Às vezes, não explicitamente, e não somente sobre ele; todavia, certamente o amor, seja qual for sua faceta, será um dos alicerces que a move. E, caso queira, toda trama pode ser, sim, um romance. Deixe Jane Austen orgulhosa e tenha essa visão.

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, por exemplo, tão malhado pela crítica, particularmente foi um filme delicioso de assistir e até me fez chorar, romântica que sou. O amor está, claro, inerentemente presente no enredo de Wanda (Elizabeth Olsen). Ou, mais precisamente, na perda dele: no luto por Visão, afinal o que é o pesar senão um fruto do amor que sentimos?; e na separação de seus filhos, o antídoto temporário que injeta amor no espaço que Visão deixou. Mas mais do que isso, o longa que reserva parte do tempo para Sephen Strange (Benedict Cumberbatch) e Christine Palmer (Rachel McAdams) é uma história de amor — uma triste. Ainda apaixonado pela médica, o super-herói abriu mão de viver sua paixão por um bem maior. Agora precisa assistir ela seguir em frente, enquanto ele fica para trás, ainda carregando os sentimentos. Pior, descobre que todas as suas versões Multiverso afora são apaixonadas por Christine, e nenhuma delas conseguiu ser feliz e desfrutar plenamente deste amor.

“Eu te amo. Eu te amo em cada universo. Não é que eu não queira me importar com alguém ou ter alguém que se importe comigo. É que…eu fico com medo”.

Existe experiência mais visceralmente humana que essa?

amor - Dark

Como Interestelar bem nos ensinou, o amor é a única coisa que percebemos que atravessa o tempo e o espaço. Doctor Who nos mostra isso de variadas formas e repetidamente, sem nunca deixar de nos maravilhar e emocionar com a vivência do amor fraterno, o amor por um planeta natal que lhe vira as costas, o amor por uma caixa grande e azul que é lar, às vezes também, o amor romântico, mas em especial o amor pela raça humana e sua singularidade, o amor pela aventura e por aqueles que nos fazem sentir especiais.

Dark, com seus conceitos temporais complexos e físicos, com os plots twists, a melancolia sombria e os mistérios, também é uma história de amor. Por causa de Jonas (Louis Hofmann) e Martha (Lisa Vicari), mas muito mais do que só por isso. Todos, em algum nível, são reféns de seu desejo e do amor que vem com ele e isso define seus destinos. Supernatural, com um público-alvo majoritariamente masculino, foi sustentando por 15 temporadas pelo amor entre irmãos de Sam (Jared Padalecki) e Dean (Jensen Ackles). Com diferentes histórias a cada episódio, no centro de tudo sempre esteve o afeto entre os Winchesters e como isso moldava suas atitudes e o rumo que tomavam. Bobby (Jim Beaver), um velho amigo, que após a morte de John (Jeffrey Dean Morgan), pai biológico dos irmãos, se tornou uma figura paterna forte para ambos, também deixava claro em cada fala preocupada e anseio de proteção o quanto amava Sam e Dean.

Neste sentido, a franquia Velozes e Furiosos, com seu roteiro simples de um policial infiltrado em um grupo que participa de rachas de carro, acabou por transformar-se em uma ode à amizade e aos laços forjados pela vida que nos ajudam a encontrar uma segunda família. Afinal, a amizade é uma das formas mais puras e sinceras de amar alguém. Ter amigos é ter a solidão de ser humano aplacada, encontrar em outro indivíduo compreensão e acolhida. Stranger Things nos ensina logo no começo o que são amigos, como eles não mentem e nunca nos abandonam, e que as diferenças podem ser conciliadas. Nos k-dramas Lutando pelo meu Caminho e Porque esta é a minha Primeira Vida os grupos de amigos apoiam os sonhos uns dos outros, mesmo que destoem daquilo que acreditam, e confiam uns nos outros para mostrar suas tristezas, frustrações e receber apoio e conforto em troca.

“Entender a solidão de alguém… Bem, para mim, esse é o começo do amor”

Mesmo as histórias sobre vingança, em sua essência, são sobre amor. Assim, como o luto vem da perda de alguém que amamos, o sentimento de vingança também. A solidão tem muitas origens, uma delas é a destruição de algo querido. A última história de vingança que assisti que, na verdade, sempre foi uma história de amor, é o k-drama Call It Love. Como bem aponta essa resenha incrível do blog Dramas e Algo Mais,  a vingança pode ser a força motriz da trama, mas quem dita o ritmo é o amor. O amor nasce da compreensão da solidão, da empatia, de ver no outro fragmentos de si, das injustiças, mágoas e dores infligidas.

Em outro espectro de tramas com vingança, a de John Wick nasce do amor que tinha pela esposa e pelo cachorro que ela lhe presenteou como uma lembrança póstuma. Algo ainda vivo, que lhe trazia conforto e a presença do amor vivido, que diminuía a solidão, até que foi assassinado. A história de Frank Castle, o Justiceiro, é semelhante, de certa forma. Também um homem com treinamento, que tem aqueles que mais ama tirados de si, perdendo o sentido da vida que construiu e, assim, decide ser um arauto da perda e infligir dor aos outros.

“Uma vida sem amor não é vida nenhuma” — Leonardo Da Vinci

Em suma, o amor é tão vasto e cheio de incógnitas como a existência humana. Julgar algumas das histórias que se dedicam a explorar este universo de sentires como banais é questionável. Ainda mais quando, muito provavelmente, a sua história de ficção favorita, no fim, é sobre amor.

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