O Dicionário Oxford define masculinidade como “um conjunto de qualidades ou atributos considerados como características de homens”. A sociedade atual e, portanto, o meio midiático, tende a conceituar tais características masculinas de uma forma, geralmente, heteronormativa, agressiva e misógina, baseadas em noções “tradicionais” sobre a maneira que um homem deve performar em sociedade. A perpetuação desses estereótipos, sob esses termos, não prejudica só aqueles em contato com tais homens tóxicos, em especial as mulheres e homossexuais, mas também os próprios homens, que restam presos em um processo de estigmatização e padronização comportamental. Contudo, a masculinidade não é universal, e a ascensão da representação de homens como figuras mais “gentis” ou “vulneráveis” é uma das marcas dos anos 2010.
É nesse contexto que entram os Jonas Brothers, expoentes há quase duas décadas do que passou a ser conhecido como masculinidade soft.
Os Jonas Brothers são uma banda de pop-rock estadunidense formada pelos irmãos Kevin, Joe e Nick Jonas. Os irmãos alcançaram sucesso após estrelarem uma série infanto-juvenil no Disney Channel, e os álbuns lançados com a assinatura da gravadora Hollywood Records (afiliada ao grupo Disney) catapultaram os irmãos Jonas a um êxito artístico que incluiu três shows seguidos lotados no Madison Square Garden, álbuns debutando em primeiro lugar na Billboard Hot 200 e uma indicação ao Grammy de Artista Revelação. Todo esse sucesso veio ao fim em 2013, quando, durante uma turnê pela América do Norte, os irmãos anunciaram o encerramento das atividades do grupo devido a “divergências musicais irreparáveis”.
No meio tempo, Nick tornou-se um sex symbol, seguindo uma carreira solo indubitavelmente pop, mais próxima de artistas como Justin Timberlake, Beyoncé e Zayn; Joe, o integrante mais excêntrico do grupo, juntou-se com amigos instrumentistas para criar a banda de crazy pop DNCE, alcançando sucesso com o single “Cake by the Ocean“; já Kevin, o mais velho dos irmãos, afastou-se da cena musical: teve duas filhas, Alena e Valentina, e fundou uma agência imobiliária que leva seu nome. Apesar de terem havido reuniões singulares entre os irmãos, relembrando o período que triunfaram juntos nos palcos, seu relacionamento pós-disband era, alegadamente, tempestuoso e cauteloso; por isso, esperanças por parte das fãs de que um dia os três irmãos pudessem se reunir como Jonas Brothers outra vez eram escassas e até mesmo oníricas — até a tarde de 28 de fevereiro deste ano, quando a conta da banda no Twitter anunciou, em meio a rumores de uma possível reunião, a volta do grupo de uma vez por todas.
O single “Sucker“, primeira música inédita dos Jonas Brothers após seis anos, encontra os três irmãos num cenário régio-moderno pós-A Favorita. No clipe, Nick, Joe e Kevin obedecem aos mandos e desmandos de suas respectivas esposas, Pryianka Chopra, Sophie Turner e Danielle Jonas, as rainhas inegáveis do castelo que é cenário para o vídeo. No universo jocoso que constrói a narrativa do clipe, Joe é amarrado ao teto por Sophie, toda a família toma banho em banheiras de espuma enquanto chupam pirulitos, e Danielle é a líder de uma tropa de corgis — tudo isso enquanto os irmãos entoam que são “muito tolos” por suas amadas.
Essa propensão a uma submissão cômica e divertida, além da disposição de se auto-declarar abertamente apaixonado, é um dos fatores que transforma esse comeback dos irmãos numa carta aberta à subversão da masculinidade tóxica, e, acima de tudo, em uma espécie de ode aos sentimentos. Quando, em “Hesitate”, Joe Jonas canta que sua amada “o salvou uma vez e agora ele vai salvá-la, também”, fica claro que o álbum Happiness Begins representa, além de um novo mergulho à unidade musical entre os irmãos, um espaço-seguro para a demonstração de vulnerabilidade, ternura e amor, características que, historicamente, homens tentam evitar sob o medo de parecerem menos… homens.
A masculinidade tóxica é uma representação reduzida e repressiva da virilidade, definindo a existência masculina com base na violência, no sexo, na agressão e no status social. É a representação cultural do que significa ser macho, em que a agressividade, a força física e a sexualidade são tudo, ao passo que a representação sentimental — associada às mulheres e, portanto, sinônimo de fraqueza — é algo que poderia desmerecer o homem, fazê-lo deixar de ser um espécime autêntico. Nesse contexto, ser “soft”, sem dúvidas, dificilmente seria o arquétipo ideal da masculinidade. É nesse sentido que cria-se a ideia de “bateria da masculinidade”, como se a construção simbólica do que é ser homem perpassasse altos e baixos, tal qual uma bateria que precisa ser recarregada constantemente ou começa a pifar — e o homem, consequentemente, vai deixando de ser homem no processo. Assim, criam-se os mitos acerca da vivência masculina: não pode chorar, não pode gostar de rosa, não pode demonstrar sentimentos; senão, não é mais homem.
Mas a masculinidade, assim como a feminilidade, é um conceito inventado, usado para preencher as demandas de dominação de grupos específicos que recaem, novamente, na mesma tríade: heterossexuais, brancos, misóginos. É o psiquiatra Carl Jung que disserta sobre isso quando teoriza acerca dos arquétipos e da psique humana. De acordo com ele, o funcionamento da nossa mente não se baseia apenas na experiência pessoal, mas sim em elementos da realidade que são universais e comuns para todos: os arquétipos. São eles, consequentemente, que revelam a existência de uma memória prevalente na nossa cabeça ao longo da história que resultou na criação de uma consciência coletiva. A persistência da masculinidade agressiva e do patriarcalismo, por exemplo, são algumas consciências coletivas que perpetuaram na história e na cultura do mundo.
Na contemporaneidade, a mídia faz o papel de disseminador das consciências coletivas. O ideal do macho alfa — oposto polar ao “homem fraco” ou ao “homossexual afeminado” — permeia a televisão (em séries como Two and a Half Men, Californication, How I Met Your Mother, Breaking Bad e Game of Thrones) e o mundo da música (com cantores como Liam Payne e Drake), reforçando a ideia de que homens só podem sentir três emoções: alegria, raiva ou tesão. Essa pressão social a qual os homens são submetidos impede a expressão de sentimentos genuínos e complexos, pautados em expressões mais vulneráveis e gentis.
O momento ápice do documentário Chasing Happiness, que narra a ascensão, o declínio e a volta dos Jonas Brothers, retrata exatamente a heterogeneidade sentimental que os irmãos tentam exibir. É durante um drinking game de perguntas e respostas acerca dos problemas e frustrações de cada um quanto à banda e à relação uns com os outros que os três irmãos Jonas acessam os sentimentos que a “tradição patriarcal” ensina a esconder, recorrendo ao diálogo e à franqueza ao invés da agressividade e da evasão como forma de resolução de conflitos. São frequentes, ao longo do documentário, os momentos em que os irmãos simplesmente sentam para conversar e deixar as cartas sobre a mesa, expondo os traumas que carregam desde os dias de artistas infantojuvenis, e é reconfortante perceber a compreensão e o companheirismo que eles demonstram uns com os outros. Para a superação da masculinidade tóxica, é essencial a existência de homens que apoiem outros homens de forma saudável, e não de maneiras que descreditem, machuquem ou diminuam.
Por terem crescido sob o olhar atento do público, a proteção gerada pela própria família e pela Disney impediu, de certa forma, que os irmãos Jonas “aloprassem” assim que chegaram à maturidade, como aconteceu com outros artistas da emissora. A valorização das relações familiares e religiosas (os três cresceram dentro de uma igreja presbiteriana que tinha seu pai como pastor), ainda que de forma irônica, por ir de contra ao que se espera hoje, foi essencial para moldar um caráter introspectivo, respeitoso e anti-misógino nos Jonas, algo que foi reforçado com mais intensidade graças ao seu contato com o mundo da arte desde a infância. Por causa disso, eles passam uma impressão de veracidade quando elogiam mulheres e declaram-se apaixonados. Caso Justin Bieber, Shawn Mendes ou Zayn fossem os cantores de “Lovebug“, “When You Look Me in the Eyes“ ou “Please Be Mine“, seria difícil não pensar que era só uma jogada de marketing para atrair fãs adolescentes, mas, por serem os Jonas Brothers, acreditar que ali estão seus verdadeiros sentimentos é muito mais fácil.
Contudo, seria mentira dizer que eles passaram suas vidas intocados pela masculinidade tóxica. No início da ascensão do grupo, os irmãos usavam anéis de pureza como uma promessa religiosa de não fazer sexo antes do casamento. Assim que a mídia descobriu a relação entre os anéis e a — inexistente — vida sexual dos meninos (na época, com 15, 17 e 19 anos), tornou-os motivo de piada, desgastando comentários acerca de seus namoros e suas virgindades mesmo que ainda fossem menores de idade. O estigma desse ideal de pureza sexual e uma pressão da sociedade por homens que sejam viris e luxuriosos manifestaram-se logo em seguida na vida dos Jonas: eles retiraram os anéis e Joe e Nick rapidamente tornaram-se womanizers, engatando namoros com estrelas como Demi Lovato, Taylor Swift e Selena Gomez; em sua carreira solo, o “artifício de venda” de Nick era sua sensualidade e a capacidade de fazer as mulheres desejarem ficar com ele, e seus singles “Jealous“ e “Chains“ são exemplos disso.
A masculinidade, como qualquer tendência social, é capaz de ser definida em três fases: a percepção de suas próprias características, as expectativas sobre si mesmo e a representação desses aspectos em agentes similares. Desse modo, assim que os irmãos se enxergam como diferentes na dinâmica social da sexualidade, percebem uma expectativa externa para que eles adentrem no mundo-comum ultrassexual e observam como essa tendência do homem pegador é vista de forma natural no ambiente em que estão socializados, tendem a assimilar esse processo e reproduzirem as mesmas características da massa. Ou seja, acabam reforçando os arquétipos.
É claro que, por serem os Jonas homens brancos, héteros e cisgênero, existe um sistema de suporte diferenciado quanto à representação de sua masculinidade e à possibilidade de se desprender desse molde. É mais fácil para Harry Styles, Ezra Miller e Timothée Chalamet ultrapassarem os padrões de gênero do que para Terry Crews e Jaden Smith, por exemplo. As pressões que assolam homens de cor, homossexuais e transgênero são muito mais intensificadas e, geralmente, baseadas na agressão física e psicológica.
Para homens asiáticos, por exemplo, a representação de sua masculinidade está intimamente ligada ao tamanho do seu órgão genital. Processo similar acontece com o homem negro, com, ainda, a adição de estereótipos de força, animalização e sexualização de seus corpos. A ausência ou presença de certas estruturas penianas é o que delimita quem é ou não é um homem judeu, da mesma forma que um ideal de agressividade, estoicismo e não-submissão é o que rege a masculinidade árabe e muçulmana. Para homens trans, como ter orgulho de seu gênero quando a própria definição do que é ser homem está pautada em regras que oprimem, diminuem e machucam eles mesmos?
É por isso que boas representações midiáticas que ressignifiquem o que é ser homem e que ocupem espaços dominados por homens são importantes. A agressividade e o machismo do Homem de Ferro e do Batman são combatidos, hoje, pelo Aquaman, o Pantera Negra, o Capitão América e o Luke Cage: todos os quatro valorizam as mulheres em sua vida para além dos relacionamentos amorosos que mantêm com elas, além de priorizarem a auto-preservação, o trabalho em grupo e a empatia em detrimento do isolamento, da ironia agressiva e da violência. Filmes como Moonlight, Me Chame Pelo Seu Nome e Baby Driver são opostos polares de filmes como Clube da Luta, Beleza Americana e Laranja Mecânica, e o ideal de protagonista ultrassexual e agressivo já não é o mais requerido pelos espectadores nem pelos diretores e roteiristas.
Nas séries de TV, Queer Eye talvez seja a mais inovadora e saudável nesse aspecto, celebrando a masculinidade genuína, que valoriza a responsabilidade, a introspecção e a empatia, e não aquela fabricada pela consciência coletiva. Logo depois vem Brooklyn Nine-Nine, que apresenta personagens masculinos divertidos e complexos que ultrapassam as caixas misóginas pré-estabelecidas, totalmente diferente dos homens de Friends, de How I Met Your Mother ou de The Big Bang Theory. Na música, Harry Styles, Troye Sivan, Kevin Abstract e Frank Ocean continuam o legado deixado por David Bowie, Freddie Mercury e Prince, não tendo medo de abraçar e exaltar suas próprias feminilidades.
Concepções como “not all men” [nem todos os homens] e “boys will be boys” [garotos serão garotos] devem sumir do pensamento social e do vocabulário coletivo, pois perpetuam a toxicidade de uma interação entre homens e mulheres e entre os homens em si que não pode mais existir. A masculinidade tóxica mata homens e mulheres, seja pela pressão social de atender a expectativas, seja por um senso de direito autoritário que transforma os corpos femininos em objetos de submissão. É entre homens a maior taxa de suicídio, e tiroteios e massacres são cometidos, em sua imensa maioria, também, por homens brancos movidos por uma teoria irreal de superioridade. São os homens os maiores perpetradores de violências físicas e morais como bullying, assédios e agressões (ou até mesmo violências mais sutis, como mansplainng e manterrupting) e não é preciso nenhum comercial da Gilette pra mostrar como a concepção de masculinidade da contemporaneidade é profundamente falha.
É em “Happy When I’m Sad”, a nona faixa de Happiness Begins — e em praticamente todo o documentário Chasing Happiness —, que fica mais clara a expressão sentimental como pilar da carreira dos Jonas. A eles, é permitido chorar, é permitido celebrar seu casamento com diversas cerimônias bem-elaboradas ou fazer um “elopement wedding” em Las Vegas enquanto seu amigo faz uma live no Instagram; são permitidos choros, vulnerabilidades, alegrias, orgulho de ser pai e orgulho de ser casado. Nesse sentido, fica muito mais claro em que reside o caminho até a felicidade tão procurado pelos irmãos Jonas: na liberdade de ser quem é, sem amarras sociais, sem arquétipos e, inevitavelmente, sem toxicidade.
Parabéns pelo artigo, muito interessante e muito bem articulado. É perceptível o nível de desconstrução social em relação à masculinidade tóxica.
Eu gosto dos Jonas desde pequena, mas nunca soube exatamente o que me atraia neles. Assim como eles se separaram, eu também me distanciei da música deles e da vida pessoal de cada um. Essa volta deles fez com que eu me sentisse orgulhosa de quem se tornaram e me fez sentir todo o amor que eu senti quando era criança. É estranho dizer que me sinto extremamente feliz em tê-los de volta na minha vida, mesmo que eu nem os conheça pessoalmente. Lendo o artigo eu soube exatamente porque eles sempre me chamaram a atenção e porque agora eles se tornaram ainda mais importantes para mim. Só tenho a agradecer por esse texto lindo!
Caramba.. vc escreve muito bem! Não só em conteúdo mas tb em forma! Parabéns!
Acho que um dos melhores textos que já li aqui – entre muitos bons. Eu sempre gostei dos Jonas, mais pela série e pelos filmes, que pela música. É interessante ter crescido vendo, em alum nível, o amadurecimento que eles tiveram para chegar até esse novo álbum, que eu me identifico mais musicalmente do que os da adolescência. De forma alguma tinha parado pra pensar neles sob essa perspectiva do texto e faz realmente muito sentido que a gente se identifique as pessoas que eles foram/são agora, fora a memória afetiva. É algo que não tenho com Justin Bieber, por exemplo. Muito bom!