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Shadow and Bone, primeira temporada: o universo épico de Leigh Bardugo com novas camadas

Criado por Leigh Bardugo, o universo que começa com o livro Sombra e Ossos, conhecido pelos seus fãs também como Grishaverse, tem um mundo baseado na história da Rússia, começando pela autocracia tsarista e chegando até a Revolução de 1917. Com uma escrita que é detalhada, rica e interessante, conhecemos e acompanhamos aqueles que são chamados de Grishas, pessoas que nasceram com o dom de controlar a Pequena Ciência e manipular certos elementos (como água e fogo, por exemplo). Eles são divididos em três categorias: os Corporalki, a ordem do vivo e os mortos, composta por curandeiros ou sangradores; Etherealki, a ordem dos conjuradores, sendo que entre eles estão os aeros, infernais e hidros; e, por fim, os Materialki, também conhecidos como os fabricadores, que são os durastes e alquimistas.

Todos os Grishas vivem no Reino de Ravka e são parte do Segundo Exército, comandado por um dos personagens mais icônicos do mundo da fantasia jovem adulta, The Darkling. Entre os problemas de uma nação dividida e problemática, os Grishas são tratados com reverência pela realeza e com medo por aqueles que estão de fora, criando uma fantasia onde a política é parte intrínseca da narrativa — e dita muito sobre a dinâmica dos personagens em si. Se o romance de Bardugo é interessante por seu universo peculiar, é ainda melhor quando vai fundo na motivação dos seus personagens, que são reais e falhos, algo que ficou ainda mais em evidência quando ela lançou a duologia Six of Crows.

Combinar todos os elementos do universo de Bardugo era, talvez, o maior desafio da série da Netflix. Com um total de oito episódios, Shadow and Bone sofreu desde o início com uma expectativa injusta e, francamente, um pouco absurda: ser a nova Game of Thrones, um conceito que toda e qualquer plataforma de streaming procura alcançar hoje em dia. A Amazon, por exemplo, extrapolou seu orçamento em uma série sobre o universo de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, enquanto a Hulu anunciou recentemente que uma adaptação da saga popular Corte de Espinho e Rosas, de Sarah J. Maas, está sendo desenvolvida por Ronald D. Moore (um dos nomes mais proeminentes da ficção científica na TV atual). Até mesmo a própria HBO procura o próximo GoT e já anunciou um elenco recheado de estrelas para o spin-off House of Dragon, que estreia em algum momento de 2022. O tipo de sucesso que a série alcançou durante seus anos de exibição no horário nobre da TV não é fácil de replicar, ao mesmo tempo que é um desserviço exigir tal coisa do Grishaverse, que é já é popular, aclamado e amado por um grupo de fãs vocal e aberto nas suas discussões. Mais do que isso, a obra é especial por seus motivos próprios e se sustenta na dinâmica dos personagens para triunfar, e passar isso para as telas pode ser um trabalho árduo e difícil, à parte das expectativas alheias.

Mesmo assim, o resultado final não é decepcionante. Aos trancos e barrancos, Shadow and Bone mantém a essência da obra de Bardugo, assim como a teia de relações que nascem e são cultivadas entre os protagonistas das histórias. O contexto social, político e o universo de Ravka são um belo pano de fundo para a narrativa, que usa desses mesmos elementos para criar uma história que, quando está no seu melhor, é instigante e emocional, e no seu pior ainda consegue ser divertida e se firmar como um entretenimento sólido.

Atenção: este texto contém spoilers!

Shadow and Bone

Efetivamente, Shadow and Bone, desenvolvida para a televisão por Eric Heisserer, adapta o primeiro livro da saga e que dá nome à mesma, Sombra e Ossos. Na história, a protagonista Alina Starkov (Jessie Mei Li) cresceu em um orfanato com seu melhor amigo, Malyen Oretsev (Archie Renaux). Enquanto ela se tornou uma cartógrafa do exército, ele se transformou em um dos rastreadores mais promissores da sua geração, atraindo os olhares dos seus superiores com facilidade. Os dois lidam com questões normais do dia a dia e do trabalho, ao mesmo tempo que o mundo segue dividido por algo que eles chamam de A Dobra, uma grande massa de escuridão que separa a nação. Para atravessá-la, é necessário a ajuda dos Grishas e um cuidado extra para não chamar a atenção dos Volcras, criaturas que prosperaram dentro da Dobra. Quando Mal é convocado para atravessar A Dobra, Alina, com medo de perder seu melhor amigo, arma para que ela possa ir junto e, durante uma confusão, acaba descobrindo que ela é a Conjuradora do Sol.

A verdade é que A Dobra em si é pouco entendida pelas pessoas. Na medida em que a história vai se desenvolvendo, fica claro que esse fenômeno é responsabilidade de alguém que eles chamam de Herege Negro, um Grisha que saiu do controle. Segundo as lendas, apenas uma Grisha com o poder de conjurar a luz seria capaz de acabar com os problemas de Ravka e destruir A Dobra de vez — que é o que Alina consegue fazer durante sua primeira passagem pela Dobra, ao perceber que sua vida e a de Mal estão em perigo imediato.

Por causa do seu poder recém descoberto, ela é convocada pelo General Kirigan (Ben Barnes), descendente direto do Herege Negro, e vai parar no Pequeno Palácio, lar oficial de todos os Grisha e onde eles treinam, comem e dormem. Seu principal trabalho é treinar para desenvolver seu dom e entender porque ela o tinha reprimido para começo de conversa. E a partir deste momento, é possível analisar a trajetória de Alina por dois aspectos distintos, sendo um deles seu papel como Grisha e outro seu relacionamento com Mal e o General Kirigan, ainda que ambos estejam diretamente interligados.

Seu dom é descoberto pelo mundo e quando os boatos começam a correr por Ravka, Alina começa a ser considerada uma “Santa” e a pressão de ter que acabar com a Dobra é algo que pesa para a personagem, que não parece preparada para lidar nem com o seu poder, nem com a responsabilidade que ele joga nas suas costas (“com grandes poderes vem com grandes responsabilidades”, etc). É essa pressão que, no começo, acaba unindo Alina e ao General Kirigan, que confessa sentir um pouco dos seus medos, da sua solidão. A conexão, obviamente, é quase imediata. Não apenas porque os dois atores constroem uma ótima química, mas porque eles se entendem em níveis mais profundos. A dinâmica que surge é desenvolvida de forma apressada pela série, que usa de momentos roubados dos dois para criar o que parece o começo de um potencial romance. Até que é revelado, no capítulo cinco, “Show Me Who You Are”, que o General Kirigan é, na verdade, o próprio Herege Negro e não apenas seu descendente direto.

Shadow and Bone

O fato de que a série tem apenas oito episódios faz com que muitos detalhes pertinentes tenham que ser cortados da história. Por ser uma dinâmica chave, que dita grande parte da história, o relacionamento de Kirigan e Alina merecia ter sido explorado com mais calma, fazendo com que, consequentemente, a revelação de que ele é o grande vilão parecesse mais orgânica e natural, e não algo apressado. Se você identifica um plot twist isso quer dizer que, geralmente, a história foi bem contada, deixando pistas para que todos pudessem chegar a essa conclusão sozinhos. Mas esse não parece o caso de Shadow and Bone, e tanto a fuga de Alina do Pequeno Palácio quanto a revelação da verdade a respeito de Kirigan tem um impacto forte na trama e seus desdobramentos — um sentimento que não necessariamente é perpetuado pelo momento em que isso acontece, a cena em questão.

O relacionamento de Kirigan e Alina é ponto de discussões acaloradas dentro do fandom do Grishaverse. Existem muitas pessoas que gostam deles como um casal, e outros que dizem que a dinâmica em si é tóxica. O que não é necessariamente uma mentira, mas fico em algum lugar no meio do caminho. Muitas das pressões que Alina sente em relação aos seus poderes são compartilhadas pelo próprio Kirigan, sendo que os poderes de ambos funcionam como uma espécie de equilíbrio. Ele é a escuridão, ela é a luz. E isso é algo que fica claro não apenas quando eles usam suas habilidades como Grisha, mas também nos âmbitos mais pessoais da relação que nasce entre eles. O fato de que ele incentiva Alina a abraçar seu poder e parece entender melhor do que ninguém como ela se sente com o mesmo, ao contrário de Mal, que nos livros ignora e até mesmo menospreza os sentimentos da protagonista, faz com que, essencialmente, a natureza do relacionamento seja muito mais interessante de acompanhar. Principalmente levando em conta que a história faz pouca questão de mostrar porque, afinal, Alina e Mal se amam tanto. Sim, eles são melhores amigos e sempre tiveram um ao outro. Mas o que individualmente faz com que eles sejam atraídos um pelo outro? Com Kirigan e Alina essas linhas são traçadas de forma um pouco mais clara, mesmo que a sensação geral seja de que tudo ali poderia ter sido mais eficiente, mais épico e ambíguo.

Na série, alguns desses erros são reparados pela narrativa. O personagem de Mal, por exemplo, ganha o que pode ser considerado uma personalidade. Sombra e Ossos é um livro contado em primeira pessoa e, portanto, tudo que absorvemos da história é a perspectiva de Alina. Seus sentimentos, seu parecer sobre os outros personagens e os eventos ao seu redor. Mal, Darkling e o resto deles são vistos pela perspectiva de Alina e, portanto, nós também fazemos o mesmo. É possível analisar a história para além do viés da protagonista, obviamente, mas no final grande parte das limitações das obras de Bardugo vem justamente desse aspecto, inclusive seu relacionamento com Mal. Shadow and Bone, no entanto, expande o escopo da história e, pela primeira vez, podemos ver Mal correndo atrás de Alina, se preocupando com ela e mostrando que realmente se importa. Ele não tem medo dos seus poderes, ou menospreza a menina, pelo contrário. Os dois, aos poucos, são estabelecidos como o verdadeiro norte — um ponto de referência no céu escuro — do outro, o que é mostrado seja pela forma como eles se protegiam na infância, seja pelas cartas que eles trocam e aqui ganham forma e palavras, ainda que de forma breve.

Uma coisa que realmente incomoda no tropo best friends to lovers [melhores amigos a amantes] é o fato de que a maioria dessas histórias passam muito tempo falando sobre como essas duas pessoas, que agora estão apaixonadas, se conhecem e confiam uma na outra acima de qualquer coisa. Mas isso nunca é realmente mostrado, fazendo com que tudo pareça superficial. Além disso, essas tramas parecem não desenvolver direito a tensão que existe na pressão de levar esse relacionamento para um outro patamar (no caso, o romântico). Shadow and Bone acerta na primeira, mostrando a forma como os dois se importam um com o outro e sempre vão acabar achando um jeito de se encontrar, mas peca na segunda, fazendo com que todas as cenas de conflito sejam efetivamente diminuídas no decorrer dos episódios, que passam a priorizar a trama acima do desenvolvimento dos personagens.

Shadow and Bone

Mesmo assim, a história de Mal e Alina é um acerto da adaptação. Os dois atores tem química e a história parece ganhar um pouco mais de substância do que na versão original. Isso é o suficiente? Nem de perto. O seriado simplesmente não desenvolve a personalidade de ambos de forma individual. Alina precisa se conectar com seus poderes e o fato de ser Grisha — não de forma superficial e imediata, onde todos os caminhos apontam para a salvação do mundo, mas realmente entender o que é conjurar o sol, ter esse dom. Ela precisa tentar entender porque realmente cortou a mão quando criança para fugir do teste que a sinalizaria como Grisha e as consequências disso, como Alina vê Mal na sua vida e porque ele é uma figura tão importante para ela. Enquanto isso, Mal precisa saber qual é o seu papel na vida de Alina, mas também traçar seu próprio caminho. É suficiente para ele largar tudo para seguir Alina, protegê-la? Quais são as consequências desse ato altruísta para ele, para sua carreira como rastreador? Se a série realmente se empenhar e acertar, o arco individual dos personagens pode e deve andar de mãos dadas com o relacionamento deles que, apesar de claramente se tratar de uma história de amor, ainda parece nos estágios iniciais.

Existe uma cena no começo do segundo livro onde uma personagem aleatória implica com Alina e sugere que Mal é “muito bom” para estar preso com ela, ao passo que Mal responde algo que cala todos esses comentários. Isso faz Alina se sentir amada e validada, como deveria, mas também representa claramente porque o relacionamento de ambos no livro não funciona em nenhum nível. Alina está sempre se preocupando com o que Mal pensa, pisando em cascas de ovos para não ofendê-lo com seu poder ou fazendo de tudo para apaziguar suas frustrações. Quando ele demonstra qualquer migalha de afeto ou aceitação, ela responde com entusiasmo. E, acredite ou não, os dois ficam presos nessa dinâmica por toda a história, algo que se torna realmente cansativo, muito rápido. Analisando por esse ponto, não é tão difícil entender porque Darkling e Alina parecem ser mais populares nos livros, principalmente considerando que o conflito entre eles é muito mais profundo e interessante. E é por isso que ver essa trama apressada em Shadow and Bone é frustrante e decepcionante.

Com a oportunidade de acrescentar o ponto de vista do próprio General Kirigan e abordar mais o treinamento de Alina no Pequeno Palácio, as duas coisas são espremidas e, tirando algumas poucas cenas, não é possível se conectar tanto quanto seria esperado no caso. A traição e a manipulação de Kirigan não tem o impacto que deveria ter, e isso prejudica um pouco o andamento da série. Isso acontece não porque a “reviravolta” foi previsível, mas porque não é possível ligar os pontos que chegam até esse momento de forma satisfatória. Mas isso tão pouco quer dizer que o personagem não seja interessante. Darkling, ou o General Kirigan, é uma figura complexa, com motivações mais complexas ainda. Ben Barnes abraça o papel com maestria e sabe muito bem quando ser assustador e manipulador, mas também charmoso e convincente. Ele cria seus argumentos de forma que fica quase impossível para o público e Alina não comprarem sua história e, apesar de ser o grande vilão, a complexidade do personagem e a atuação do ator fazem com que ele seja um personagem muito mais complexo que Mal, e até mesmo Alina. Portanto, o público, que entende o personagem e aceita todas as suas nuances, acaba se aproximando mais do vilão do que da história dos mocinhos. Shadow and Bone tenta arrumar isso e até certo ponto consegue, mas daqui para frente a trajetória do Darkling, de Alina e Mal pode seguir qualquer direção, e é impossível prever o resultado.

“No mourners, no funerals”

Shadow and Bone

“Sem luto, sem funerais. Um outro jeito de dizer boa sorte. Mas era mais do que isso: uma piscadela sombria para o fato de que não haveria enterros caros para pessoas como eles, nenhuma lápide de mármore com seus nomes.” 

Relativamente fiel a Sombra e Ossos, com exceção de algumas mudanças que foram muito bem-vindas, a maior diferença da história original para Shadow and Bone é a inserção dos personagens de Six of Crows, que aqui foram introduzidos na mesma linha do tempo de Alina Starkov, criando algo diferente do que é visto nas obras de Bardugo. Nos livros da duologia, que é composta pelo já citado Six of Crows: Sangue e Mentiras (2015) e Crooked Kingdom: Vingança e Redenção (2016), os eventos acontecem em Ketterdam, capital de Kerch, e mais de dois anos depois do final da Trilogia Grisha, que chegou ao fim em 2014 com Ruína e Ascensão, seu terceiro livro. Na história, considerada uma Fantasy Heist (“fantasia de roubo”, em uma tradução livre), os cinco protagonistas (no futuro, seis) são unidos por um motivo bem diferente, enquanto na série os personagens estão em momentos diferentes de suas vidas e, portanto, são pessoas levemente distintas daqueles que já conhecemos. A essência de cada personagem é mantida, mas podemos ver pequenas mudanças nas dinâmicas que acompanhamos nos livros.

Os dois livros de Six of Crows são consideravelmente mais amados e queridos pelos fãs e o motivo disso é bem simples: os arcos dos personagens são mais complexos e satisfatórios, todos têm um passado rico em detalhes, as motivações são mais convincentes, assim como o romance e toda a característica de found family [família encontrada] presente nas páginas. É fácil se importar com um herói que joga tudo para o alto em prol de um “bem maior”, mas essa história em particular faz você se importar com aquelas figuras que passam despercebidas, com as pessoas que andam no limiar entre o certo e o errado, que lutam todos os dias com seu passado e com os demônios interiores que eles criaram. Tudo isso envolto na mitologia rica e detalhada de um universo fantasioso já bem estabelecido.

As figuras centrais dessa narrativa são Kaz Brekker (Freddy Carter), Inej (Amita Suman) e Jesper Fahey (Kit Young). Kaz é responsável por comandar um clube na parte mais pobre do Barril, sendo que Ketterdam é um lugar central quando se trata de tráfico e organizações criminosas. Tanto Inej quanto Jesper trabalham para Kaz, sendo que a primeira é uma espiã (com facilidade para passar despercebidas pelos lugares) e o outro é realmente bom em lidar com armas. No começo da série, eles são contratados para sequestrar Alina e levá-la para um comerciante importante de Ketterdam. Com o dinheiro que eles receberiam por esse trabalho, Inej planejou pagar sua dívida no bordel no qual trabalhava forçadamente antes de ser “contratada” por Kaz, além de aposentar os outros dois para sempre.

Justamente por ser uma história nova, que não está interligada com os livros, as coisas demoram um pouco para se encaixar. O roteiro flui muito bem quando os três estão juntos, não por causa da trama em si, mas porque a química entre os três atores não poderia ser mais evidente. Mesmo assim, todo o sequestro é uma tentativa frustrada atrás da outra, e fica difícil ver exatamente onde os corvos se encaixam. Quando finalmente conseguem pegar Alina, ela simplesmente escapa. O destino deles só entra em colisão direta no episódio final, quando os corvos ajudam Alina a parar o General Kirigan e impedir que ele expanda A Dobra ainda mais. Assim, todos eles seguem no mesmo navio. É difícil entender onde exatamente os roteiristas vão levar a história, mas tudo aponta que eventualmente Shadow and Bone abordará a trama da duologia — o que, se for verdade, faz com que toda a trama do sequestro seja uma forma de colocar a habilidade de cada um deles como prova, erro e acerto, para que possam ser bem sucedidos na próxima tarefa, colocando os personagens no ponto, mental e fisicamente, em que os conhecemos nos livros.

Em uma narrativa completamente paralela e sem relação com nenhum dos dois núcleos principais, conhecemos Nina Zenik (Danielle Galligan) e Matthias Helvar (Calahan Skogman). Enquanto Nina é uma Grisha sangradora, Matthias é um Drüskelle, como são chamados os soldados da nação de Fjerda. Ele trabalha caçando Grishas, fazendo com que eles enfrentem o tribunal do seu país por terem os seus poderes, já que acreditam que esses, por sua vez, são abominações, menos do que os humanos. É assim que ele conhece Nina. Ela é sequestrada por ele e jogada em um navio a caminho de Fjerda. No meio de uma tempestade, o navio afunda e os dois acabam se tornando os dois únicos sobreviventes, andando pela vastidão gelada para tentar encontrar abrigo e, obviamente, tendo que lidar com suas diferenças óbvias e gritantes.

Apesar de serem inimigos naturais, os dois aprendem a deixar as diferenças de lado com o propósito de sobreviver. Matthias, cria de uma cultura machista e preconceituosa, não consegue lidar com o jeito “escandaloso” de Nina, essa que, por sua vez, não parece nem um pouco preocupada em agradá-lo, além de forçá-lo a pensar no porque, afinal, seu país tem tanto problema com os Grishas. A dinâmica entre os dois funciona e o relacionamento se torna cada vez mais complexo com o desenrolar dos eventos, que envolve Nina tomando uma decisão difícil e acusando Matthias de ser um traficante de escravos para protegê-lo, e depois partindo em direção a Kerch, também o destino do resto dos personagens. Essa parte da história se desenvolve muito como a primeira temporada de The Expanse, que acompanha várias narrativas diferentes que acabam se interligando pelos personagens, no final. Em Shadow and Bone, no entanto, o êxito ainda está por vir.

Ainda assim, Nina é incrível. A decisão de colocar Galligan para interpretar Nina foi muito criticada porque a personagem é gorda e a atriz, apesar de não ser necessariamente magra como as outras figuras femininas, não é. Mesmo assim, Danielle se sente completamente à vontade como Nina e dá camadas a uma personagem que é cheia de personalidade e vida, leal e que faz sempre o que acredita ser o certo. Já Matthias tem um começo mais complicado, já que é impossível simpatizar logo de cara com uma figura tão cheia de preconceito, mas ele logo se redime não só aos olhos do público, mas também aos de Nina. O relacionamento deles com certeza ainda tem muitos elementos complicados, mas é impossível não ficar investido nas possibilidades.

Sei por um fato de que esses personagens, os corvos, tem uma construção incrivelmente rica dentro do universo dos livros, mas pouco disso é explorado pela série. Isso não quer dizer que a narrativa não deixe pistas sobre o que possivelmente vem a seguir. Como todo e qualquer seriado, o plano é estudar os protagonistas com a calma que uma produção com mais de duas horas pode oferecer, ao longo de temporadas, que possivelmente se tornarão anos. O que, se fizerem direito, vai acrescentar uma profundidade ainda maior para essa parte em específico de Shadow and Bone, além de fazer um paralelo direto com a história de Alina e os Grishas. Kaz, Inej e Jesper, três pessoas que vivem à margem, sempre cruzando a linha entre o certo e errado apenas para sobreviver e ver o sol nascer no dia seguinte, fazem um contraponto direto com Darkling e Alina, consumidos por uma narrativa cheia de poder. As duas tramas falam sobre corrupção de formas muito diferentes, mas explorar as consequências dos eventos que se desenrolam na série nesses dois núcleos pode fazer com que essa história adicional dos corvos, que não existe nos livros, seja muito bem justificada. Mais do que isso, pode fazer com ela se torne parte fundamental da obra em si, costurando os problemas dos Grishas com os de Ketterdam, fazendo um paralelo entre a forma como Alina vê seu poder com o jeito que Jesper aborda seu vício em jogos, e assim por diante.

Ainda assim, é possível apreciar um pouco das migalhas que a narrativa deixa quando se trata da história e do passado dos corvos. Inej, que ganha um pouco mais de atenção do que os outros dois, fala sobre seu irmão, sobre o que espera do seu futuro e dos seus sonhos e esperanças. Ainda não fica completamente claro o que aconteceu com ela no passado e como foi separada dos pais, mas a menção da sua dívida no bordel é uma motivação para seu trabalho com Kaz e um grande catalisador para o conflito que existe entre eles. Sua fé também aparece em pequenos detalhes e, apesar de não parecer, diz muito sobre a personagem, que é de origem Suli, e no que ela acredita. A personalidade de Jesper é desenvolvida da forma mais clara possível, ainda que também com pequenas sutilezas, abordando suas nuances humorísticas, sua sexualidade e até mesmo o que, no final, é a grande causa de todos os seus problemas: o vício. E, por fim, Kaz. Com o passado definitivamente mais complicado, suas problemáticas passam quase despercebidas mas ainda estão lá: o personagem, que também manca, nunca é visto sem suas luvas. A única vez que o público o vê tirando-as, a câmera não foca nas suas mãos nuas, mas desliza aos poucos para fora de cena. Um pequeno detalhe da cinematografia, mas que deixa claro o cuidado em tratar dessa trama, uma das mais marcantes da história dos corvos.

Outro fator que vale a pena mencionar é o relacionamento que existe entre Inej e Kaz. De longe o casal mais popular do Grishaverse, o par que ficou conhecido como Kanej, tem o que pode ser considerado o melhor romance de todos os livros de Bardugo e isso acontece porque ambos são incrivelmente bem desenvolvidos de forma individual e como casal. Unidos pelo trauma e motivados pela vida difícil com que lidam diariamente no Barril, os  dois tinham tudo para desenvolver um relacionamento tóxico e, apesar de com certeza existir várias complicações na dinâmica, é interessante perceber como os dois geralmente resgatam a vulnerabilidade que existe dentro de cada um.

Kaz diz mais uma vez que Inej é apenas um investimento, mas a verdade é que ele só é realmente vulnerável ao redor dela, quando precisa se abrir um pouco para pedir que ela não vá embora ou fazer com que se sinta segura. Inej força Kaz a olhar para dentro de si e sair da sua zona conforto, algo que é mostrado de forma clara quando ela faz perguntas diretas e ele é obrigado a devolver uma resposta digna. “No que você acredita?”, ela pergunta. E ele responde dizendo que acredita nela, acima de tudo. Ao mesmo tempo, Inej oferece uma lealdade comovente e quando mata pela primeira vez, é para proteger Kaz. A relação é desenvolvida como um slow burn sutil e cheio de pequenos detalhes, entre olhares silenciosos e conversas difíceis,  assim como todos os bons romances. Mais do que isso, o relacionamento dos dois oferece uma pequena subversão no tropo da menina que salva o homem errado, amoral. Inej não é uma salvadora. Ela incentiva Kaz a ser melhor, com certeza, mas ele tem uma influência tão grande nela, quanto ela tem nele. O que faz tudo ser ainda mais interessante de acompanhar.

“Nenhum santo cuidou de mim. Não como você”

A verdade é que o relacionamento deles em Shadow and Bone está longe de ser “canônico”, mas a essência dos personagens e da dinâmica em si foi transportada com sucesso das páginas para as telas, o que me faz acreditar que acompanhar e investir nessa jornada será satisfatório e, no final, terá valido a pena.

Grande parte do apelo de Six of Crows é o fato de que os livros representam aquilo que Leigh Bardugo aprendeu a fazer de melhor com o passar do tempo: criar personagens que são reais, falhos e que trazem todo tipo de representatividade para a fantasia, um gênero que foi durante tempo demais dominado por homens brancos. Cada um dos Crows (“corvos”, como eles são chamados por Kaz) tem um desenvolvimento importante e um passado rico em detalhes explorado pela narrativa. O que une os cinco é a necessidade de sobrevivência em um mundo que nem sempre foi muito gentil com eles. E o que prende o público de maneira fiel e apaixonada aos personagens e essa história é justamente a conexão que nasce entre eles com o tempo, de maneira orgânica e profunda. Ao longo dos dois livros, Six of Crows explora vícios, tráfico sexual, trauma e estresse pós-traumático. Mas também fala sobre amizade e sobre encontrar seu lugar no mundo.

“Eu acredito em mim mesmo. E em você. E no Jesper. Meus corvos. Corvos não se lembram apenas de quem errou com eles, mas também daqueles que foram gentis. Eles contam uns aos outros sobre quem é para tomar cuidado e de quem cuidar.”

Uma subtrama que não funciona

Shadow and Bone

Quando vendeu os direitos de Shadow and Bone para a Netflix, Leigh Bardugo fez da sua missão pessoal trazer mais representatividade para a Trilogia Grisha, que peca nesse aspecto. A decisão de colocar Jessie Mei Li como Alina é um grande acerto da série, sendo que a atriz não só desenvolve uma química excelente com o resto do elenco, como também parece bem à vontade no papel. Ao contrário da história original, aqui Alina é parte Shu, lugar que faz divisa com Ravka. O único problema é que, como se a trama já não fosse complexa o suficiente, os roteiristas decidiram acrescentar uma subtrama de racismo que simplesmente não funciona.

Durante os episódios, Alina sofre racismo por causa da sua descendência e aparência, mas a série não parece muito interessada em desenvolver o assunto, apenas mencioná-lo. Ao tratar de um assunto importante como esse, é preciso não apenas jogá-lo na narrativa, mas destrinchar as ações e consequências do mesmo — o que não acontece. Inclusive, uma personagem como a Zoya (Sujaya Dasgupta), que tem um papel importante no futuro da saga, tem atitudes claramente preconceituosas e racistas para com a protagonista, e nada é dito sobre isso.

No começo dos livros, Zoya é uma personagem superficial. Uma mean girl [menina malvada] que até certo ponto inferniza a vida de Alina e serve como catalisadora para conflito entre a protagonista e Mal. Mas com o tempo ela vai se desenvolvendo e se tornando algo mais. Zoya faz a coisa certa, cresce e se torna parte fundamental do universo no qual está inserida. Muitas pessoas amam a personagem, com razão. Mas como consertar uma falha de caráter tão grande quanto uma fala racista?

É quase impossível tentar decifrar o motivo de acrescentar essa subtrama na série. Não é como se o roteiro já não abordasse o preconceito. Apesar do universo de Bardugo não ter, por exemplo, homofobia, existe toda uma estrutura que perpetua estereótipos e problemáticas, algo que pode ser visto não só por meio da narrativa de Nina e Matthias e toda a questão dos Grishas e dos Drüskelle, mas também com a história de Genya (Daisy Head), uma artesã que sofre não apenas abuso da família real de Ravka, como também é ignorada e maltratada pelos seus colegas, considerada inferior pelos seus poderes, fazendo com que ela se alie ao Darkling — uma das poucas pessoas que ficam ao seu lado, mesmo que fique claro, mais tarde, que tudo é parte de uma manipulação. As consequências dessa trama incluem a traição de Alina (que é sua amiga) e marcas profundas na personagem, que devem ser exploradas nas próximas temporadas.

A estrutura de Shadow and Bone já havia sido montada para abordar o preconceito de formas bem distintas entre si. Escalar uma atriz não-branca em uma série como essa é um grande avanço, mas seria ainda mais se não tivesse a necessidade de avançar a história com uma trama que não apenas parece rasa e mal feita, mas que também faz um desserviço a Alina.

Abandonando todas as expectativas que uma adaptação como essa carrega, Shadow and Bone apresenta uma boa primeira temporada, mesmo com alguns erros que insistem em aparecer na narrativa ao decorrer dos oito episódios. Instantaneamente popular e chamando atenção de um novo público, pessoas que não leram os livros ou não necessariamente são grandes fãs de fantasia, o seriado dá um tratamento de classe para uma obra escrita e criada por uma mulher, provando mais uma vez que existe espaço para tramas complexas e universos bem construídos coexistirem com arcos bem trabalhados e até mesmo romance. Apesar da série ainda não ter sido renovada para uma segunda temporada, o desejo geral é que as dinâmicas pré-estabelecidas possam continuar a florescer dentro do escopo da produção, assim como novas possam nascer e ser cultivadas, além de ir mais fundo no que motiva e move esses personagens.