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Grishaverse: representatividade entre sombras e ossos

A neblina está baixa, o sol ainda não nasceu, talvez nem chegue a nascer. Os corvos conversam por entre as sombras e um exército capaz de feitos inimagináveis começa a se levantar contra uma ameaça misteriosa que pode ser definida como a própria escuridão. Há quilômetros de distância e alguns meses depois, em um cenário fantasmagórico semelhante, uma gangue de marginalizados se prepara para o golpe de suas vidas. Os sussurros dos espiões, as traições, as adagas voando pelos telhados e os segredos dos poderosos geram arrepios nos cidadãos de uma cidade guiada pelo dinheiro e traumatizada por uma antiga peste.

Os dois enredos resumidos brevemente acima fazem parte do Grishaverse, universo criado por Leigh Bardugo em suas duas coleções complementares: Trilogia Grisha, iniciada em 2012 e finalizada em 2014, e seu spin-off sequência, a duologia Six of Crows, com o primeiro livro sendo lançado em 2015 e o segundo em 2016. E agora as sombras de Bardugo estão prestes a ganhar novos tons: no dia 2 de outubro deste ano, a autora anunciou em suas redes sociais os rostos que darão vida aos seus personagens na adaptação das duas obras do Grishaverse, feita em parceria com a Netflix e com Ben Barnes como um dos protagonistas.

O processo de casting de Sombra e Ossos, nome escolhido para série, foi demorado e já estava deixando os fãs aflitos, porém, por um ótimo motivo: Leigh Bardugo fazia questão de que seus personagens repletos de diversidade fossem representados também por atores diversos. E tudo indica que a missão foi cumprida.

A transformação da Trilogia Grisha e Six of Crows em uma série da Netflix tem deixado o fandom curioso. Afinal, ao que parece, duas histórias que se cruzam pouco nos livros, com tempos e cenários distintos, vão se mesclar totalmente na tela do computador, e passar a dividir um mesmo enredo. O Grishaverse nunca esteve tão denso e tão excitante, pronto para uma nova expansão.

Grishaverse: o universo de Leigh Bardugo

O pontapé inicial na Trilogia Grisha, com Sombra e Ossos, no ano de 2012, levou Bardugo diretamente para a lista de mais vendidos do The New York Times em sua estreia como escritora. Nos dois anos seguintes, foram lançados Sol e Tormenta e Ruína e Ascensão, completando a primeira parte do mundo criado pela autora, que pouco tempo depois viria a ser chamado de Grishaverse (o Universo Grisha).

Bardugo, nascida em Jerusalém e vivendo boa parte de sua vida na Califórnia, coloca que a grande inspiração para sua primeira obra — um sopro de ar fresco no universo da fantasia, sobretudo no recorte literário Jovem Adulto — veio da autocracia tsarista que predominou com muita pompa e estruturas sociais características na Rússia até a Revolução de 1917. Bardugo, inclusive, cunhou um termo para definir toda a estética e construção deste mundo: Tsarpunk, uma junção das palavras Tsarist (Czarista, em inglês) e Steampunk. A definição cai como uma luva para a história, que evoca suntuosos castelos, vestimentas e trejeitos sociais e os mistura com um toque ciência (para explicar toda a magia que move tal universo e seus personagens), forças bélicas e tecnologia.

Neste mundo criativamente inventivo e ricamente descrito, somos apresentados a um novo conceito de magia e das pessoas que são agraciadas com esses dons, os Grishas, e de todo um reino, Ravka, construído e com a glória mantida pelo Segundo Exército — composto pelos Grishas com diferentes poderes, que podem variar desde controle sobre o corpo de outra pessoa, dos elementos da natureza a materiais e, muito raramente, controle da luz solar.

No meio de tudo isso se encontra Alina Starkov, uma órfã de guerra e aprendiz de cartografia do Primeiro Exército, composto por seres humanos comuns, e que não poderia considerar sua existência mais banal e insignificante, o que, para seu desapontamento, influencia diretamente no seu relacionamento com seu melhor amigo Maly, um dos melhores rastreadores que Ravka já conheceu, que apenas a vê como uma amiga, mesmo que Alina deseje mais. Mas tudo muda quando seu regimento atravessa a Dobra das Sombras, um lugar cercado por escuridão e moradia de terríveis e cruéis animais conhecidos como volcras, e que, segundo as lendas locais, foi criada por um Grisha malévolo com poderes absurdos.

Como ainda estamos falando de um livro que recorre a alguns bons e velhos clichês do gênero, obviamente o grupo de Alina é atacado e em meio a gritos de dor, desespero e escuridão impenetrável, ela acaba se revelando uma Grisha, talvez uma das mais poderosas a existir nos últimos séculos, capaz de manipular a luz do sol. E é assim que ela vai parar no Palácio Real, sob o comando e treinamento do Darkling, líder misterioso do Segundo Exército.

A partir daí, intrigas e reviravoltas não faltam. Somos apresentados a uma mitologia rica, repleta de simbolismos interessantes, um triângulo amoroso cercado por questões políticas e sociais, uma guerra impossível, conflitos morais, segredos que envolvem a origem do mal que aflige o reino e a adoração de uma garota que num piscar de olhos, passa de um status ordinário para a santidade. Com a conclusão da história de Alina, Maly e do Darkling em 2014, os fãs não tiveram muito tempo para sentir falta da incrível narrativa de Bardugo ou de sua habilidade em envolver os leitores criando personagens reais, humanos e complexos.

Logo no ano seguinte, fomos agraciados com o lançamento de Six of Crows, primeiro livro de uma duologia homônima que expande o mundo criado por Bardugo para além das fronteiras de Ravka e dá, assim, uma vida propriamente dita ao Grishaverse. Desta vez, nos encontramos anos após a Guerra de Ravka, na cidade de Ketterdam (inspirada em Amsterdam), no reino de Kerch. Lá, acompanhamos Kaz e seu grupo de anti-heróis que planejam um assalto a uma das fortalezas mais seguras do mundo. A princípio, a ligação com o mundo ravkano pode parecer tênue, mas ao longo das páginas Bardugo consegue costurar perfeitamente as duas realidades, seja com a aparição de personagens já conhecidos da Trilogia Grisha, ou a adição de novos e a apresentação de outros lugares e culturas que perpassam o mundo que já conhecemos.

O tom desta nova aventura da autora, embora conserve alguns elementos de seu primeiro trabalho como já destacado, impressiona pela visível versatilidade de sua escrita e da capacidade em navegar entre diferentes segmentos literários, ainda que dentro do gênero fantasia. Neste caso, Six of Crows surge como um livro de heist fantasy (fantasia de roubo, em tradução livre), categoria que entrega uma história de planejamento e execução de um grande assalto, algo que a autora cumpre com excelência.

O que faz essa premissa ficar tão fascinante e apelativamente interessante é o modo como a visão narrativa e escrita amadurecida de Bardugo coloca todos os pingos nos is e nos mostra uma dinâmica totalmente diferente do que conhecemos nos livros anteriores, e que se sobressai, e muito, em questão de qualidade e construção de trama, personagens e relações amorosas e fraternais. É visível como Bardugo aperfeiçoou seu processo de contar histórias e transformou o que já era bom em algo genial e estupendamente maravilhoso.

E é com todo esse material em mãos que a Netflix tem o grande desafio de produzir uma série que transporte para a tela toda a magia e o degradê de sombras presentes nas páginas dos livros idealizados por Bardugo. Até agora, o streaming parece estar se saindo bem, acertando ao escalar Ben Barnes como Darkling, imaginado como dreamcast por boa parte do fandom desde 2012, e mantendo personagens escritos como não-brancos como tais. É claro, sabemos que aqui os produtores merecem o selo “não fez mais do que sua obrigação”. Porém, com o vasto histórico de produções que sofrem whitewashing ou nas quais os escritores precisam lutar para manter as características essenciais de seus personagens, o alívio é digno de nota.

A grande novidade fica por conta da revelação da atriz que interpretará a protagonista Alina, Jessie Mei Li, metade asiática. Nos livros, Alina não tem sua etnia especificada e em abril deste ano Leigh Bardugo e o showrunner, Eric Heisserer‏, anunciaram que, após muito debate, haviam concordado que na série a personagem da série seria metade Shu (território fictício que faz fronteira com Ravka, cuja população apresenta semelhanças com a etnia chinesa), decisão que se confirmou com o anúncio de Jessie para o papel.

A presença de personagens canonicamente não-brancos na literatura é de extrema importância e a transposição da diversidade para as telas é ainda mais relevante. O impacto de cada vez mais personagens em papéis de liderança serem interpretadas e ganharem vida através de pessoas não-brancas é algo de medida incomensurável.

Diversidade como peça fundamental

Quem já teve qualquer contato com os livros da escritora, sobretudo com a duologia Six of Crows, sabe muito bem que temas pertinentes, atuais e relevantes não faltam em sua narrativa. No Grishaverse, por exemplo, a homofobia é algo que não existe. O fato, confirmado pela própria Bardugo em entrevista a Germ Magazine, define muito bem o tom e mensagens que a autora busca passar com suas obras, que não hesita em falar sobre assuntos como tráfico sexual, as consequências das guerras e das decisões danosas e irresponsáveis tomadas por aqueles no poder, relacionamentos homoafetivos, deficiência física, e transtornos psicológicos como estresse pós-traumático e transtorno de déficit de atenção, só para citar alguns, além da apresentação de personagens canonicamente bissexuais.

Além de sua evolução em torno da construção narrativa de uma história, Bardugo reconhece seu crescimento em relação a escrever um mundo mais diverso e representativo, derrubando por terra os estereótipos em que se alicerçam as obras de fantasia: de que os personagens precisam ser brancos, heterossexuais e majoritariamente masculinos.

“My first book, Shadow and Bone, is a very straight, very white book, and I think that’s because I was a new author echoing a lot of the fantasy I’d read. But when we write books populated only with straight, white, cisgendered, able-bodied characters, we’re doing actual damage. We’re reinforcing the idea that adventure and romance and revolution only belong to a very specific group of people, and that’s not something I want to be a part of.”

“Meu primeiro livro, Sombra e Ossos, e um livro muito hétero, muito branco, e eu acho que o motivo para isso é que eu era uma autora nova ecoando os muitos livros de fantasia que eu lia. Mas quando você escreve livros cheios apenas de pessoas héteros, brancas, cisgêneros e saudáveis, você está fazendo um verdadeiro dano. Estamos reforçando a ideia que aventuras e romance e revolução apenas pertencem a um grupo muito específico de pessoas, e isso não é algo que eu quero fazer parte.”

Um dos grandes destaques de Six of Crows é Kaz, o mais misterioso dos protagonistas. Com um trágico passado, ele comanda as ruas do Barril, bairro dominado por gangues da cidade de Ketterdam, e faz quem cruza seu caminho se arrepender, afinal Mãos Sujas, apelido carinhoso que recebeu nas ruas por sempre ser visto usando luvas, não deixa uma dívida ou ameaça passar batida. Para Bardugo, escrever Kaz foi um processo quase catártico e pelo qual ela teve a possibilidade de transmitir algumas de suas vivências para que mais pessoas tivessem a oportunidade de se sentirem vistas e válidas.

A autora sofre de osteonecrose, doença degenerativa que afeta os ossos, e precisa usar uma bengala para facilitar sua locomoção. Já Kaz manca de uma perna devido a uma fratura mal curada, e para ele a bengala é uma espécie de arma, escudo e a marca registrada, que juntamente com suas luvas pretas, torna Mãos Sujas tão temível e misterioso, tudo ao mesmo tempo. “I wanted to write someone disabled and ferocious, because that’s how I wanted to feel” [“Eu queria escrever alguém deficiente e feroz, porque era assim que eu queria me sentir”], disse Bardugo para o site Disability in Kidlit.

Claro que com tal representação, Bardugo já teve que escutar muitos absurdos, muito deles baseados no argumento de que uma pessoa com deficiência em um livro de fantasia não é algo crível, prático ou realista. Para isso ela tem a resposta perfeita: “‘It’s a fantasy world!’ isn’t an excuse to run roughshod over marginalized voices” [“‘É um mundo de fantasia!’ não é uma desculpa para apagar vozes marginalizadas”].

No decorrer de Six of Crows somos apresentados a mais nuances de cada um dos seis protagonistas, todos de construção invejável e diferentes tipos de forças e fraquezas. O relacionamento e a amizade entre eles se constitui de forma ciente de todos os defeitos, funções, objetivos, talentos e particularidades de cada um, fazendo de suas diferenças algo imprescindível para sua união. Mesmo que Kaz deseje a objetividade e o distanciamento necessário para as operações orquestradas por ele, “No mourners, no funerals” [“Sem luto, sem funerais”], lema da gangue, passa a fazer ainda mais sentido quando percebemos que cada um ali daria a vida um pelo outro.

Apesar de, como citamos anteriormente, homofobia não estar presente na história de Bardugo, não é como se a sociedades apresentadas nesse universo sejam perfeitas. Ainda existem diferentes preconceitos no Grishaverse, como a xenofobia e o racismo, que fica evidente em determinados momentos. Em suas interações, os protagonistas questionam e negam esses ideais, tudo de forma muito bem colocada na história, quase sutil, mas extremamente necessária.

Diferente da Trilogia Grisha, em que somos apresentados a Ravka, um país que se organiza incluindo os Grisha como parte importante da sociedade, em Six of Crows somos introduzidos a diferentes realidades. Enquanto em Ketterdam os Grisha são vistos apenas como mais uma pessoa para prestar serviços, também conhecemos a realidade de Fjerda, terra natal de Matthias, um dos protagonistas da duologia. O país se encontra ao norte de Ravka e é conhecida por ver os Grisha como seres perigosos, bruxos e bruxas diabólicos que vão contra o reino de seu deus.

Intolerância e caça às bruxas

É com esses ideais em mente que Matthias, de Fjerda, conhece Nina, de Ravka, tempos antes do enredo de Six of Crows se iniciar e os fantasmas do passado compartilhados por eles ditam boa parte da história. O rapaz fez parte do exército de sua nação, e tem como missão perseguir e assassinar Grishas. A garota, por sua vez, é uma poderosa Grisha membro do Segundo Exército de seu país.

A caça às bruxas do povo de Fjerda e as guerras contra ou a favor do Grishas são a potência motriz do enredo de Six of Crows, ultrapassando as fronteiras de Kerch e fazendo parte de uma crise política internacional, além de uma importante questão sociocultural e religiosa, muito bem construída e articulada por Leigh Bardugo. É neste contexto que se encontra o relacionamento de Matthias e Nina, passando por altos e baixos no decorrer da história. Mesmo assim, é um daqueles relacionamentos que nos dão esperança: a cada troca, a cada interação, as barreiras preconceituosas de Matthias vão se quebrando e se abrindo, ao mesmo tempo em que Nina se torna mais simpática a criação do rapaz, e compreende ao menos um pouco o lado dele da história.

Neste sentido, Six of Crows também nos apresenta uma relação menos intolerante e conturbada com a religião na figura de Inej e sua descendência Suli, povo fictício do Grishaverse. A personagem está sempre recitando provérbios e seguindo um código moral que guia suas ações como indivíduo baseado nos ensinamentos e tradições passadas à ela por seus antepassados. Outra prova de sua fé são suas facas, todas nomeadas em homenagem a santos, e que não servem apenas para protegê-la, mas das quais ela também tira sua força e coragem.

A capacidade de rever crenças, se abrir para o novo, ser curioso a respeito de diferenças culturas e respeitá-las é um alívio necessário e inspiracional no Grishaverse. Mesmo entre sombras e ossos, bruxas, santas, marginais, ricos e políticos, encontramos, ao menos entre os protagonistas, uma importante base de tolerância, amizade, respeito e amor, todas características necessárias também no mundo real.

Texto escrito em parceria por Débora e Isadora.


** A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!