Categorias: LITERATURA

Anatomia de Um Quase Corpo: o livro das rupturas

Uma leitura atenta de Anatomia de Um Quase Corpo permite constatar que um sinal gráfico constantemente presente ao longo das páginas é  “/”. A barra pode até passar despercebida por alguns leitores, mas passa a ser um símbolo evidente do livro, publicado originalmente de forma independente pela Amazon e agora disponível em versão física em edição artesanal da editora Arpillera. A divisória aparece em diversos momentos do texto cuidadosamente pensado por Yara Fers, e marca algumas rupturas do próprio fluxo da leitura. Em outros momentos, o sinal vem para dividir a consciência da narradora, que passa por momentos e emoções críticos e transformadores na trama. Quando conseguimos perceber essa divisória constantemente presente, notamos outros detalhes inseridos para construir sentidos poéticos diversos que nos apontam claramente sobre o que se trata o livro da poeta experiente, estreando nos romances: rupturas.

Concorrente ao prêmio Kindle, o livro conta a história de Bárbara, uma operária que tem o braço devorado por uma das máquinas que opera e a partir daí tem que reaprender a viver com aquela nova ausência. Se a primeira ruptura parece óbvia, outras menos evidentes vão se desenrolando à medida que a personagem narra sua história, em um diário incentivado para sua recuperação do acidente.

Talvez o primeiro rompimento que Bárbara vive, antes da amputação do braço, tenha sido com a norma: a protagonista é uma mulher LGBT+ e, junto com o romance que vive com sua professora de violão, percebemos que a operária também quebra as expectativas do sistema de divisão do trabalho típicas do capitalismo. Pessoas com profissões tão físicas e mecânicas quanto trabalhadores do chão de fábrica normalmente são enxergadas como seres brutos, por consequência da própria classe da qual vêm, a qual não se costuma pensar como capaz das sutilezas da racionalidade ou da delicadeza da expressão pela arte. Bárbara é apaixonada pela música, e esse encantamento com o som gera cenas muito bonitas ao longo da narrativa. O que é roubado da classe trabalhadora, o tempo para ser não-produtivo e cultivar a arte, aparece nas frestas da rotina operária dando vida a cada personagem e fugindo da lógica de que a vida “útil” é a que é realmente válida. A vida, de fato, se dá nas folgas, no compartilhar da refeição com os colegas, nas melodias de instrumentos musicais entre os gritos e rangidos das máquinas devoradoras de corpos humanos — no sentido figurado e literal.

Anatomia de um quase corpo

Se a personagem se envolve com música e vemos um retrato da arte entranhada no corpo mecânico da fábrica e permitindo ligações mais fortes de outros personagens à protagonista, é porque a autora ousa um pensamento que quebra com esse padrão ainda muito reproduzido de uma divisão entre intelectuais, artistas e o proletariado. De forma similar, a escrita não apenas como relato mas também como arte vem na poesia entranhada ao diário de Bárbara. A criação de Yara Fers usa imagens, metáforas e até a sonoridade construídas pelas palavras da narradora que beiram o sublime, tanto por serem uma representação muito nítida da realidade, quanto por transcender o realismo. Vale ressaltar também, que os títulos do capítulos formam um poema que conversa com o texto principal, e a edição física do livro possui haikais (poemas curtos) que também complementam a leitura do romance. O texto de Anatomia de Um Quase Corpo poderia ser o ponto mais forte da narrativa, mas é difícil qualificá-lo assim quando toda a história é inteira uma obra-prima.

É com um pensamento tão abrangente, delicado e humano sobre a personagem que Yara nos mostra através de suas palavras várias camadas mais sutis e delicadas da protagonista: Bárbara tem que lidar com a opressão sutil e disfarçada da fábrica, sempre retratada como um corpo cujos órgãos são seus funcionários — que acabam por ser peças-órgãos de gestar e parir os produtos tidos pela sociedade como mais humanos que os próprios que os produzem: a mercadoria. Nesse sentido, a palavra corpo é visto por muitos ângulos ao longo das páginas: tanto a fábrica é personificada, quanto os humanos são objetificados pelo sistema de trabalho, mas além disso, as pessoas são capazes de criar um corpo unido que supera a mecânica da máquina, e a leitura se enriquece ainda mais quando percebemos que há sempre esse jogo de sentido com a corporeidade das coisas e pessoas.

Além da conexão da operária com a fábrica e seus colegas de linha de produção, acompanhamos também a relação entre a protagonista e sua mãe, a sociedade e todos os desdobramentos psicológicos e práticos na vida de Bárbara enquanto vive o luto por seu braço perdido e à adaptação a uma nova anatomia. No entanto, através da trabalhadora contando sua história, também acompanhamos em segundo plano uma outra trama se desdobrando: as reflexões da protagonista vão sempre tocando na consciência de seus colegas.

Se o livro promete uma visão aparentemente desesperadora do mundo quando a personagem principal perde seu braço e fica impossibilitada de trabalhar, sobreviver e viver aquilo que transforma sua vida em mais do que o trabalho — a arte —, a trama quebra nossas expectativas e vai  nos levando a outro caminho. Uma aparente mudança de rota que na verdade engrandece o significado da obra de Fers, pois, com esperança e sensibilidade, a consciência coletiva dos funcionários daquela fábrica vai, aos poucos, transformando a realidade de trabalho daquelas pessoas. E a história deixa de ser apenas de Bárbara e a relação com seu corpo mutilado e passa ser também uma história coletiva de resistência dos operários.

Tanta sutileza só é possível porque o primeiro romance da escritora é uma prosa poética que toma muito cuidado quanto à estética e à linguagem, para que elas também componham novos significados e possam romper com o que esperamos dele. Ao invés de uma morte simbólica representada pela perda do braço, Bárbara e seus companheiros conseguem um renascimento — mostrando de forma emocionante e potente a vida que (r)esiste no chão de fábrica, por mais que ela devore partes de quem trabalha nela. A potência e a delicadeza criam um livro que não é abertamente panfletário e, talvez por isso mesmo, é muito marcante.

Yara consegue, afinal, oferecer aos leitores uma reflexão profunda e de certo modo inesperado sobre a relação entre trabalhadores e as demandas do capitalismo impostas pelo trabalho alienado e as relações sociais entre patrões e empregados. A esperança de mobilização e união construída gradualmente ao longo da trama também mostra como é possível resistir e criar nova vida mesmo dentro de um corpo que abusa dos outros organismos que o alimentam — a própria fábrica, que pode representar também o sistema em si.

De forma bela, sublime, delicada e realista, a trama também oferece saídas humanas e construídas com o afeto para um drama que afeta a todas as pessoas que trabalham: é possível ser mais do que uma peça no corpo-máquina do capitalismo? Se a realidade parece não oferecer resposta satisfatória e possível, o livro nos dá inspiração para encontrar as nossas próprias maneiras de responder ao dilema: há mais saídas que se podem realizar em união. E Bárbara testemunha e participa de uma dessas soluções, deixando leitores com os corações cheios de possibilidades

Anatomia de Um Quase Corpo é uma das melhores representações possíveis de um ideal de mobilização dos trabalhadores para uma ruptura necessária e urgente para a própria sobrevivência humana: o fim de um sistema tão cruel em que estamos vivendo. A arte de Yara Fers, que nos guia para imaginar outros mundos, segue exatamente o que Ursula K. Le Guin define como o papel da escrita em seu discurso ao receber o prêmio National Book Award em 2014:

“Livros, vocês sabem, não são apenas mercadorias. A motivação pelo lucro está frequentemente em conflito com os objetivos da arte. Vivemos no capitalismo. O seu poder parece ser inevitável. Assim era o poder divino dos reis. Os seres humanos podem resistir a qualquer poder humano e mudá-lo. A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte, e muitas vezes mais na nossa arte — a arte das palavras.”


Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes, que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados.  Se interessou pelo livro? Clique aqui e compre direto pelo site da Amazon!