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Queer Eye: derrubando a masculinidade tóxica, um corte de cabelo por vez

O modelo do programa já é conhecido: uma pessoa em crise com a própria vida é indicada para ter sua existência transformada por profissionais e a experiência registrada para a televisão. Pela própria natureza da premissa, os reality shows de makeover, ou de transformação, frequentemente são um pouco maldosos e superficiais — com julgamentos sobre as roupas, a aparência, os modos ou a casa da “vítima” da vez, tudo facilmente resolvido com compras adequadas ao que é visto como “normal” e “correto”. Acrescente algumas cenas dramáticas em que os participantes choram porque nunca souberam ser “normais” e “corretos” e agora têm finalmente a oportunidade e um hit da televisão. Até Queer Eye.

Queer Eye, a nova iteração do reality Queer Eye for the Straight Guy (que durou 100 episódios, de 2003 a 2007), pega a estrutura dos programas de transformação e a subverte. A superfície continua lá — a visita ao cabeleireiro, compras de roupas em lojas que os personagens não conhecem, dramas pessoais e familiares —, mas o programa vai muito além: em seu cerne está uma valorização da vulnerabilidade, do amor próprio, da individualidade de expressão e de um modelo de masculinidade menos tóxico.

O fab five, os cinco profissionais responsáveis pela transformação, são Bobby Berk (design), Antoni Porowski (comida), Jonathan Van Ness (beleza), Tan France (moda) e Karamo Brown (cultura), um grupo de homens gays que representa um espectro variado de experiências pessoais. Os escolhidos para a transformação em cada um dos oito episódios da primeira temporada também são diversos — inclusive, fazendo jus à transformação do título, que perdeu o foco no “straight guy” [o “cara hétero”], um deles é gay também. Essa valorização de possibilidades múltiplas e não homogêneas de masculinidade (tanto hétero quanto gay) é o que eleva o reality a um nível transformador no gênero.

Os episódios mais marcantes da temporada (e que mais repercutiram com a crítica) são o terceiro, “Dega Don’t”, e o quarto,“To Gay or Not Too Gay”. “To Gay or Not Too Gay”, o episódio que fez todo mundo chorar, é focado em AJ, um jovem negro e gay que procura a coragem para se assumir para a madrasta, sua família mais próxima desde a morte do pai. As transformações de superfície acontecem como sempre: Bobby redecora o apartamento, Tan compra roupas novas, Jonathan corta barba e cabelo, Antoni ensina uma receita e Karamo pratica uma atividade exagerada, mas simbólica (no caso, uma trilha com tirolesas para que AJ crie coragem). No entanto, em meio às atividades, AJ e os membros do fab five conversam sobre o processo de se assumir para família, estereótipos estéticos na comunidade gay, a dor de perder o pai e as pressões específicas e interseccionais sobre homens negros e gays.

Queer Eye

Em vez do trabalho habitual de explicar para um homem hétero o que é ser gay, os apresentadores têm a oportunidade de conversar de igual para igual sobre experiências pessoais e culturais em comum — um dos pontos altos do episódio, na minha opinião, é quando eles encontram acessórios de couro no armário de AJ (que AJ veste e modela para eles mais à frente no episódio) e identificam como marcadores identitários e culturais, sem rejeitar ou escondê-los em prol de uma percepção higienista de “normalidade”. É claro que o ponto mais alto do episódio, no entanto, é o momento final, em que AJ finalmente se assume para a madrasta — as lágrimas de AJ, da madrasta e dos fab five são genuínas e emocionadas com um momento de tal importância.

“Dega Don’t” é marcante por outro motivo: o escolhido da vez é Cory, um policial branco conservador e eleitor de Donald Trump. O episódio começa de forma assustadora: a habitual cena inicial, em que o fab five conversa no carro a caminho da casa do eleito, é interrompida por uma viatura de polícia. Quem está dirigindo é Karamo, o único homem negro do grupo, e a tensão da situação é imediatamente aparente — até a hora em que o policial se revela como um amigo de Cory, que parou o carro só como uma pegadinha. As risadas de simultâneo pânico e alívio que se seguem ao momento ditam o tom do conflito constante no episódio, mas não são ignoradas ou disfarçadas pelo programa. O desconforto dos cinco experts, particularmente de Karamo, é presente a cada passo, incluindo a descoberta de acessórios de campanha de Donald Trump, como o icônico boné vermelho com o slogan “Make America Great Again”. Isto é, até o confronto entre Cory e Karamo: mais uma vez em um carro, Karamo expõe seu medo, sua raiva, sua desconfiança, e Cory expõe seus próprios medos, raivas e desconfianças; a conversa gira em torno de violência policial e racismo e as palavras “black lives matter” são ditas pelos dois lados com a seriedade merecida.

Segundo Karamo, ele e Cory ficaram amigos e trocam mensagens regularmente, um final inesperadamente conciliador. Ao ver o episódio, o grau de conciliação me deixou até desconfortável — não sou adepta, especialmente no momento político em que vivemos, da ideia de que crenças conservadoras são combatidas com amizade (e, especialmente, com o esforço de um homem negro e gay ter que ensinar a um policial branco conservador os básicos da realidade da violência policial); mas é nesses momentos que Queer Eye revela seu real poder transformador: com uma generosidade genuína, mesmo que não merecida; com um cuidado quase didático com o que importa para aquelas pessoas; com a valorização da vulnerabilidade de se abrir e a recíproca de permitir a mesma vulnerabilidade ao outro.

Ao longo dos oito episódios, o fab five toca a vida desses homens de forma mais emocional e profunda do que eles esperavam. Lágrimas são uma constante, assim como abraços e declarações de amor. Quando confrontados com si próprios por trás das máscaras e armadilhas superficiais da masculinidade — como a falta de cuidado estético, a entrega do espaço doméstico para as mulheres, a vergonha do desempenho profissional, a heterossexualidade viril —, eles encontram a possibilidade de criar relações melhores, de participar da vida doméstica e familiar de outras formas, de se construir e identificar como indivíduo e não só como “homem”, de lidar com os traumas e os medos que os acompanharam até a vida adulta. De passo em passo, o fab five derruba paredes emocionais com a ajuda de roupas bonitas, discursos motivacionais, guacamole, sofás novos e produtos de cabelo, desmantelando aos pouquinhos as amarras da masculinidade tóxica.