Categorias: TV

Teresa Lisbon, ofuscamento e o papel feminino em duplas televisivas

Teresa Lisbon (Robin Tunney) segue uma longa tradição de personagens sensatas “ao lado” de gênios indomáveis. Na série The Mentalist (CBS), Lisbon ocupa o papel principal feminino, sendo a chefe da equipe e do protagonista Patrick Jane (Simon Baker). Ao longo de sete temporadas, ela tenta dar ordens e sermões ao protagonista, conserta seus erros e ainda o defende de tudo e todos. Qualquer semelhança com uma mãe não é coincidência, afinal o complexo de Édipo jamais descansa no entretenimento. A detetive também é o interesse amoroso, mesmo que isso não se desenvolva na maioria das temporadas.

Essa receita de dinâmica entre duplas de protagonistas já está mais do que batida. House é um exemplo memorável, considerando o relacionamento turbulento do protagonista com Lisa Cuddy (Lisa Edelstein). Porém, o caso de Lisbon é ainda mais incômodo. A série insiste em não permitir que a personagem mostre seu potencial. Apesar de ser a chefe da equipe e liderá-la com mestria, The Mentalist não permite que a personagem seja independente e se desenvolva. Apesar de ser creditada como uma detetive de sucesso, ela não resolve mistérios e casos durante a série, geralmente aparecendo apenas para coordenar a equipe, acatar as instruções de Jane e nos momentos de ação, geralmente com um distintivo e uma arma na mão.

Teresa Lisbon

O episódio “Vinho Barato”, na quarta temporada, se destaca nesse aspecto. Lisbon lidera a investigação sem Patrick e tudo indica que a personagem finalmente vai brilhar, conseguir uma confissão e resolver o caso. Não é o caso. Quando tudo parece sem solução, Jane retorna e soluciona o problema nos últimos minutos com seu conhecimento de Shakespeare e da mente humana. Em uma única ocasião ao longo de sete temporadas, a personagem ganha um adversário de destaque, efetivamente resolvendo e insistindo em um caso. Ainda assim, a cada momento que ela fica insegura, liga para Jane e pede conselhos.

A personagem é relegada cada vez mais à sombra de Jane durante o desenvolvimento da série, ao invés de evoluir. Ela aceita cada vez mais as ideias do protagonista, chegando ao ponto de nem questionar, por mais malucas e perigosas que elas sejam. Desta forma, até sua atuação como chefe fica apagada, sendo questionada inclusive no enredo da série. Em certo ponto, a impressão é de que Lisbon passa a apenas concordar, lamentar e pedir desculpas.

Um exemplo memorável ocorre em determinado momento durante a caçada a Red John (Xander Berkeley), o vilão da série. Teresa, como chefe da equipe, toma uma decisão da qual Jane discorda. Além de precisar se defender e justificar, o próprio roteiro mostra que ela estava errada. Inclusive, é comum na relação entre os personagens a condescendência, mostrando sempre que ele está à frente dela. A situação nas últimas temporadas chega ao ponto de Jane armar uma investigação e encenar que não está conseguindo resolver um mistério para que Teresa possa resolver, de forma a manipulá-la. Essa situação leva o espectador a crer que a personagem só é capaz de resolver mistérios já resolvidos ou armados por Jane.

Teresa Lisbon

Também nas últimas temporadas, após a descoberta e assassinato de Red John, a personagem diminui ainda mais. Trabalhando no FBI, seu cargo fica incerto, atuando mais como dupla de Jane e sendo relegada ao posto de interesse amoroso. Em certo ponto, ela se vê envolvida em um triângulo amoroso. É justo dizer que neste ponto a série inteira se perdeu, tendo descambado para casos isolados e um mistério de última hora, sem uma trama principal para conectar os episódios. Nessa altura, acredito que The Mentalist se manteve apenas para unir os dois personagens e satisfazer o público.

Ao longo de toda a série, o objetivo do roteiro de destacar Jane e suas habilidades é óbvio. Ele é o protagonista, o herói, e o roteiro precisa colocá-lo em um patamar inalcançável. Caso contrário, a série perderia seu mote principal, afinal são as habilidades quase sobrenaturais de Jane que o tornam interessante e indispensável. Mas sacrificar Lisbon para isso é um grande erro. A personagem é complexa, inteligente e divertida. Além disso, seria plausível que uma detetive no ponto em que ela se encontra na carreira fosse capaz de desvendar pistas e resolver casos sozinha.

Ao invés disso, The Mentalist prefere relegá-la ao posto de ajudante do protagonista, o braço direito de Jane. Esse já é um lugar comum nas séries, principalmente policiais e de ação. A curta Forever, que durou apenas uma ótima temporada, era bastante similar a The Mentalist em diversos aspectos, inclusive nessa problemática. Até mesmo Law and Order: SVU, hoje celebrada pelo protagonismo feminino, tentou seguir essa fórmula em suas primeiras temporadas, sendo vencida pelo talento de Mariska Hargitay e o clamor popular por Olivia Benson.

Teresa Lisbon

Analisando a dinâmica entre os protagonistas masculinos e femininos nos primeiros episódios de diversas séries, incluindo The Mentalist, um artigo acadêmico¹  conclui que as protagonistas femininas são exibidas como inferiores, subordinadas e necessitadas de ajuda. Essa conclusão valida uma impressão fácil de ser percebida assistindo a esses programas, que refletem o mundo real e ainda reforçam papéis de gênero comuns em locais de trabalho e nas relações entre homens e mulheres.

Esses exemplos também mostram que colocar mulheres em posições de poder em produtos audiovisuais não basta para que eles realmente tenham algum impacto positivo, apesar de já representar certo avanço em relação ao passado. Lisbon, assim como Lisa Cuddy e tantas outras, estão em posições mais elevadas do que os protagonistas. Isso, no entanto, não basta para serem respeitadas dentro e fora das telas.

The Mentalist foi exibida entre 2008 e 2015. Alguns podem dizer que eram outros tempos, que a sociedade e a televisão evoluíram. Particularmente acredito que não se passou tanto tempo e que pouco mudou. É raro vermos a dinâmica invertida e duplas como Jane e Lisbon seguem pipocando nos canais e streamings. Claro que temos algumas Wandinhas pelo caminho, mas de forma geral, pouco mudou no mundinho televisivo e seguimos repetindo os mesmos papéis secundários, maternais e românticos de sempre.


¹ DRUMMOND, T.; WILDFEUER, J. The Multimodal Annotation of Gender Differences in Contemporary TV Series. Combining Qualitative Questions and Quantitative Results. Annotations in Scholarly Editions and Research, Functions, Differentiations, Systematization/ed. by J. Nantke, F. Schlupkohten. Berlin: de Gruyter, 2020.

2 comentários

  1. Estou revendo Bones, e é consolador como esta dinâmica não se repete na série, mesmo sendo da mesma época!
    Não só com a personagem principal, mas também com a chefe Camille Saroyan…

  2. Eu até gosto da ideia do texto, mas como fã incondicional do The Mentalist, posso dizer com segurança que a série foi pensada para ter 1 protagonista : o mentalista.
    Todas os episódios são conduzidos para mostrar a capacidade do Patrick Jane em resolver os casos e sua equipe , toda, são apenas coadjuvantes. Inclusive Teresa Lisbon.
    Isso, na minha visão, não diminui a personagem, tão pouco a atriz. Apenas mostra que o foco da série é um homem reconstruindo a vida após uma tragédia, com a ajuda de uma equipe coesa que está disposta a fazer as coisas por eles.
    Acho que isso é tão bem resolvido na série que nunca ouve uma troca dos 5 personagens principais, briga vazada de bastidores.
    A série é leve e apenas quer te fazer acreditar que poderes de observação são capazes de solucionar crimes.
    É uma proposta diferente de Law and Order, ou mesmo Arquivo X, onde o drama dos personagens centrais, ambos, são trazidos ao centro. Em The Mentalist não, sabemos pouco ou quase nada da equipe toda que acompanha Jane. Tudo é centrado nele.
    Aí não acho que Lisbon seja menor, acho apenas que a série foi concebida para 1 personagem principal.
    de minha parte, gosto muito da relaçao Jane e Lisbon. Apesar dele ser indisciplinado, é aquela equipe que parece mesmo uma família que o ajuda a se tornar humano de novo. E no caso da Teresa, faz ele ter coragem até de recomeçar a vida amorosa.

Fechado para novos comentários.