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O Boca a Boca de Esmir Filho

Se a transmissão de sentimentos fosse possível ela certamente se daria pela boca. Já que a empatia é uma escolha psíquica do indivíduo, esse tipo de simbiose sentimental fica a cargo da ficção. Deixando de lado doenças reais transmitidas pela saliva (herpes, mononucleose, caxumba, entre outras), Boca a Boca, seriado da Netflix, traz um cenário epidêmico de uma doença misteriosa passada pelo beijo.

Atenção: este texto contém spoilers!

Na pequena cidade fictícia de Progresso, presumidamente interior de Goiás, Fran (Iza Moreira) acorda na cama de sua melhor amiga, Bel (Luana Nastas), sozinha. A dona do quarto está no banheiro, desesperada, a boca preta parecendo em processo de putrefação. É a partir daí que os eventos do fim de semana passado vão se desenrolando para a audiência enquanto paralelamente ocorre a busca de Fran, Alex (Caio Horowicz) e Chico (Michel Joelsas) pela verdade do que está acontecendo com Bel e se eles mesmos serão os próximos.

Adultos sinistros e/ou alienados, lugares obscuros e muito mato. São as características que Esmir Filho, criador e diretor, usa para passar ao espectador um estranhamento rural que dá a ambientação do seriado. Se em seu primeiro longa, Os Famosos e os Duendes da Morte (de 2009, concebido juntamente com Ismael Caneppele), essas características já estavam presentes, em Boca a Boca, Esmir substitui a névoa e o frio do extremo sul do país pela figura da boiada para ajudar a exprimir uma sensação de claustrofobia comunitária. Uma espécie de pano de fundo que amarra igualmente as duas cidadezinhas nelas mesmas e que faz com que os protagonistas adolescentes se sintam deslocados de suas origens.

Enquanto Chico é o garoto novo, Fran e Alex o ajudam, mesmo relutantemente, a navegar o restrito mundo de Progresso e da única escola de Ensino Médio da cidade, o colégio agrotécnico Escola Modelo. A alusão ao romance de Chico Buarque, Fazenda Modelo não poderia ser mais clara. No livro, o autor descreve uma fazenda pecuarista durante décadas, passando por gerações de gados — os personagens principais — e sua “domesticação” em relação às tecnologias de reprodução que surgem com o tempo.

Em Boca a Boca, o uso da tecnologia não vem para aprisionar os jovens, mas, ao contrário, para libertá-los da visão única daquela comunidade. É por meio de mensagens e redes sociais que se descobre e é espalhada a origem da doença: a festa dada pela aldeia, um grupo místico relegado à mata que cerca a cidade e visto com maus olhos pelos moradores de Progresso. Quem aceita participar da festa da aldeia/seita corre o risco de ser infectado pela doença misteriosa, mas também está disposto a abrir seu mundo para novas experiências interpessoais, sexuais e narco-alucinatórias.

Assim como o protagonista sem nome de Os Famosos, a internet é usada pelos personagens do seriado para expandir o restrito mundo adolescente rural. É como se usa o que se tem em mãos que está em cheque em Progresso. Se há 10 anos atrás Tambourine Man e Jingle Jangle usavam seus blogs como um escape da realidade interiorana sem que adultos tomassem conhecimento algum, agora adultos não sabem bem o que são as redes sociais ainda, mas já têm uma noção do poder de comunicação dos jovens por meio delas. É pela internet que os mistérios da doença, da infecção e da festa vão se desvendando.

É também pelas redes sociais que começa a ocorrer uma caça às bruxas, logo após ser revelado o Mapa do Beijo criado pelos protagonistas. Os três são tão ligados a sua comunidade, ou com uma vontade de pertencer a ela (no caso de Chico), que a primeira ideia de transmissão é justamente ligada à culpa sexual. Fran, Alex e Chico não chegam a considerar que a transmissão possa ser dada por nada além do beijo. O Mapa é carregado de culpa cristã-sexual, juntamente a um julgamento de certo e errado herdado dos pais conservadores.

Chico: opressão externa

Por ter crescido longe de Progresso, Chico parece ser o único a não carregar essas pré-noções e assim não estar sendo afetado pela doença em si. Suas questões são externas, seus problemas são, na verdade, os outros terem um problema com sua liberdade. Talvez por isso ele não desenvolva a doença em momento algum. Apesar do que poderia parecer, Chico não se sente deslocado do mundo em que vive, não se sente solitário. É interessante pensar nesse sentimento em relação ao seu pai, cristão conservador, que mesmo com os entraves e as repercussões do vídeo vazado, do bullying e da agressão física, após errar e se arrepender do erro, mostrou-se um ser humano que “está tentando” nas palavras do próprio adolescente para a mãe.

Além da família e dos amigos, Chico também tem Maurílio (Thomas Aquino), talvez o relacionamento mais complicado da série, com nuances pesadas. A romantização do caso entre um homem adulto já formado e um garoto adolescente é pesada na mão e a narrativa é construída de forma a se acreditar que é Chico quem seduz Maurílio. Apesar de problemático e cheio de questões éticas sobre relacionamentos amorosos entre adultos e menores de idade, é além disso uma questão homossexual. A normalização desse tipo de relacionamento no meio gay é dada pela marginalização de uma comunidade relegada às sombras no interior rural brasileiro.

Assumidamente queer (embora seu pai não pareça saber), Chico tem orgulho em ser o que é. Já Maurílio não parece estar no armário, como tampouco propaga sua orientação sexual. Num mundo restrito de uma comunidade claustrofóbica, quando duas pessoas queer se encontram, não é de se admirar que surja desse encontro um relacionamento. A série não nos faz questionar se esse relacionamento é ou não baseado em um abuso de poder (sendo Maurílio tão mais velho). Não há tempo para se entrar em detalhes, mas há para romantizar algo já romantizado pela sociedade.

Alex: opressão interna

Chico não reprime seus sentimentos e desejos pois não cresceu em Progresso. Ao contrário, é aberto e franco sobre eles. O oposto ocorre com Alex. Sendo um dos herdeiros da principal fazenda da cidade, tudo o que ele tinha feito até o momento que a doença aparece era se reprimir. Ele vai à festa da aldeia e consome o alucinógeno, mas parece fazer de uma maneira controlada. E é o único que não beija ninguém.

É conforme vai entrando mais na pesquisa sobre a doença e vendo mais o mundo ao seu redor que Alex vai se permitindo sentir. É por meio da tecnologia que vemos o garoto demonstrar o que sente ao se masturbar em conjunto com Da’Mask, moça misteriosa que faz vídeos na internet usando uma máscara. Alex a havia conhecido na festa e começa a desenvolver uma quase obsessão com os vídeos. Impossível não pensar no protagonista de Os Famosos assistindo aos vídeos de Jingle Jangle, porém, ao contrário do longa, aqui Alex não sabia antes quem é Da’Mask, sempre usando uma máscara de plástico quando ele está por perto.

O plástico tem uma simbologia forte. Não é a primeira vez que Esmir Filho se utiliza dessa metáfora para enriquecer visualmente suas tramas. Em Saliva, um curta seu de 2007, Marina, uma menina de 12 anos, dará seu primeiro beijo. Antes do fatídico momento ela se preocupa com a troca de fluídos entre as bocas e se imagina protegida da chuva deles por um plástico. Mesmo plástico que ela e sua amiga haviam usado anteriormente para treinar o beijo. Interessante pensar que já em 2007 o diretor pensava na ideia de uma “camisinha para a boca” no sentido da proteção dos fluídos trocados entre o beijo. As máscaras plásticas distribuídas na segunda festa após o surto iniciar se encaixam perfeitamente na metáfora do diretor de uma barreira contra a transmissão de sentimentos de boca em boca.

Já para Alex em específico, o plástico tem esse significado inicial de proteção, mas com o tempo se transforma em sufocamento. O que remete à cena marcante de um vídeo de Jingle Jangle, onde a garota tem a cabeça envolta por um plástico enquanto seu namorado o prende em seu pescoço. Assim como a garota confia totalmente em Julian e vice versa, Alex confia cegamente em Da’Mask. Tanto que, ao descobrir quem ela é de verdade, acaba por deixar o plástico de lado e se relacionar verdadeiramente com ela, inclusive tendo sua primeira relação sexual.

Seguindo a presunção de que a doença é realmente transmitida pelo beijo, apesar de ter ido na fatídica festa, Alex não teria o perigo de estar no Mapa pois não beijou ninguém. A provável demissexualidade do garoto não figura em importância na série. Enquanto a doença afeta os outros adolescentes na apatia e desaparecimento de qualquer tipo de emoção, o sufocamento sentimental sentido por Alex só começa a aparecer quando ele toma conhecimento dos outros a sua volta, da vida de Fran e dos colonos e de sobre quem é de verdade seu pai.

Fran: opressão socio-racial

Já Fran tem perfeita noção de onde a colocaram no mundo, e não está nem conformada nem feliz com isso. É assim que ela acaba sendo a primeira do trio a apresentar os sintomas da doença. O arrependimento de não ter conseguido dizer à melhor amiga o que verdadeiramente sentia por ela antes de Bel falecer, a culpa por estar viva enquanto sua irmã gêmea se foi e a opressão pela vida incerta na fazenda seriam suficientes para que Fran tivesse desenvolvido a doença mais cedo.

Mas a situação ambígua com a própria mãe, onde ela se sente sufocada por cuidar não só da doença da mãe como também a substituir na fazenda, é algo que tanto a segurou quanto a levou aos sintomas. Fran, garota negra, filha de uma funcionária da fazenda, está a ponto de perder tudo, de ter que deixar o mundo que conhece, à beira de um abismo metafórico. A doença dá a ela perspectiva e coragem para dizer ao patrão da mãe tudo o que precisa. Não só isso, mas mostrar para a própria mãe qual seu papel: é ela quem deveria estar protegendo Fran, não o contrário.

É essa mudança que traz a cura para os adolescentes de Progresso. É por meio da infecção de Fran que sua mãe assume seu lugar devido e ajuda a filha a se curar. Não só isso, mas também ajuda os outros pais a curarem seus filhos. E ao final as duas enfrentam seus problemas juntas, mais fortes, se libertando do ambiente hostil em que viviam.

Doença: boi ou beijo?

O primeiro longa de Esmir Filho, Os Famosos e os Duendes da Morte, é um filme sobre depressão, mas também sobre se sentir deslocado no lugar em que se nasceu. Com forte base na realidade, tem seus momentos de simbolismo onde direção e fotografia se juntam para levar o espectador a duvidar do que está acontecendo com o protagonista. Passado e presente se misturam, mas o fato é que a ambientação é um lugar real o que torna a trama também mais próxima à realidade. O Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, onde Famosos é ambientado — e também a cidade natal do criador do filme, Caneppele — vem tendo durante décadas um dos maiores índices de suicídio do país. Uma das causas pode ser traçada ao uso de agrotóxico nas lavouras de fumo, cultivo comum na região.

No universo de Boca a Boca a metáfora é mais complexa que agrotóxicos ou hormônios. Um “supergado” criado geneticamente em laboratório é a grande revelação. Sem saber do uso de suas pesquisas, a irmã de Alex cria uma nova espécie de boi misturando o gado nelore (que realmente existe) a uma outra espécie extinta. Interessante observar que ao final é mostrado que esses gados estavam vagando pela mata ao redor de Progresso no mesmo momento em que a doença começou a se espalhar. A infecção em Alex também parece estar intimamente ligada à descoberta da atrocidade genética criada pela ganância de seu pai.

Uma das influências no desenvolvimento da trama da série, segundo o criador, foi a graphic novel Black Hole, de Charles Burns, publicada entre 1995 e 2005. No quadrinho, uma doença inexplicável começa a se espalhar pelos adolescentes de um subúrbio de Seatle, nos Estados Unidos, em 1970. Essa doença, transmitida pela relação sexual, é marcada pelo aparecimento de mutações nos portadores, podendo essas serem visíveis e absurdas ou não.

Millennials mais jovens, centennials e a geração Z cresceram em um mundo já familiarizado com a AIDS. Aulas de educação sexual nas escolas e camisinhas distribuídas de graça nos postos de saúde foram algumas das respostas dos educadores e da saúde pública para uma epidemia sem precedentes. Mas para millennials mais velhos deve ter sido particularmente traumatizante ver nas manchetes grandes ídolos (Freddie Mercury, Cazuza, Renato Russo) sucumbindo a essa doença sem cura que na época era tão misteriosa quanto a infecção de Boca a Boca. O amor não era mais tão livre, havia agora uma doença fatal pairando por quem ousasse desviar da norma. Quando surgiu, a epidemia de AIDS era relegada ao submundo LGBTQI+, na época ainda empurrado no armário. Agora, generalizada e desestigmatizada, volta a assombrar uma juventude, que, por não ter presenciado seu surgimento, parece não entender verdadeiramente sua gravidade.

A cura: o amor basta?

Como a ponte na cidade de Os Famosos e os Duendes da Morte — que simboliza uma escolha entre duas saídas distintas —, a fitoterapia da aldeia é o único caminho para a libertação dos jovens afetados. Antes disso, a aldeia já se faz presente com suas festas como caminho de libertação para quem não acredita na doutrinação de Progresso. Como metáfora para AIDS, a cura fitoterápica tem que ser mantida constantemente em alguns afetados, que só com alguns tratamentos não se curam totalmente. Como metáfora para depressão, o “relapso” é esperado, embora temido. A cicatriz que fica não está ali apenas para mostrar do que se curou, mas também como lembrete perpétuo de uma possível reincidência da doença. Não há cura total, mas se vive normalmente com aquela infecção, sem saber se ou quando seus sintomas reaparecerão.

É difícil pensar na potencialidade de apenas seis episódios quando o primeiro deles é tão confuso. Embora com excelente atuação, direção e produção, o roteiro parece genérico. Sem as dualidades sociais brasileiras presentes nos episódios seguintes, sem o latifúndio pecuário e sem um sistema de ensino mais brasileiro, é impossível reconhecer nosso país ali. Poderia se passar em qualquer cidadezinha rural dos Estados Unidos, sem precisar mudar fala alguma.

Talvez uma estratégia para que a série tenha apelo no mercado internacional, o primeiro episódio parece deslocado em qualidade com os demais da temporada. Interessante observar que quem assina o roteiro do episódio é Juliana Rojas (juntamente com Thais Guisasola), cineasta veterana que já assinou três longas de terror anteriormente, ambos brasileiríssimos e altamente aclamados (As Boas Maneiras de 2017, Sinfonia da Necrópole de 2014 e Trabalhar Cansa de 2011). Passando esse deslize, é possível observar uma produção de qualidade, tanto na trama como na direção — tanto de cena e atores como de fotografia — impecáveis, dialogando entre si a todo momento.

Numa impressão inicial, de forma rasa, Boca a Boca parece querer homenagear Corrente do Mal (2014) e Euphoria (2019). Com uma análise mais profunda é possível perceber que a quem Esmir Filho faz a maior referência é aos seus próprios trabalhos passados. O seriado é uma evolução progressiva tão clara das temáticas apresentadas em Saliva e Os Famosos e os Duendes da Morte que a impressão internacionalizada inicial cai por terra durante a temporada e nos é apresentado algo novo. Nem vira-lata nem ufanista, mas tipicamente Esmir Filho.

2 comentários

  1. Série maravilhosa, me deixou sem fôlego, uma das melhores brasileiras na Netflix. Espero que tenha muito reconhecimento. Achei a direção de arte perfeita! Gostei muito também dos conflitos no personagem do Chico, o trio principal é bom demais.

  2. Acabei de conhecer a série e vi alguns capítulos. Chico se apaixona pelo Maurilio e o Maurilio está apaixonado pelo Chico. Acho que para o diretor a idade não é o conflito neste seriado e sim a sustentação do próprio desejo. Quando o Maurílio chega no quarto do hospital onde está ferido Chico, o pai se afasta. Vai embora. Parece um seriado interessante.

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