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O nordeste gótico de Cristhiano Aguiar

O folclore brasileiro é recheado de lendas e figuras míticas que servem de inspiração para diversas obras do mainstream, como a série de TV infantil Sítio do Picapau Amarelo e a produção Cidade Invisível, original Netflix. Em Gótico Nordestino, essa atmosfera sobrenatural da cultura popular é novamente escolhida como cenário e se mescla com referências da cultura pop ao longo de nove contos escritos por Cristhiano Aguiar, autor nascido em Campina Grande (PB). O livro foi lançado em 2022 pela editora Alfaguara, do Grupo Companhia das Letras.

Usando elementos do realismo fantástico, narrativas de terror e ficção científica, Gótico Nordestino traz histórias que vão desde o período do cangaço, passando pela ditadura militar, até um futuro distópico. A escrita de Cristhiano remonta à literatura do século XIX ao mesmo tempo em que dialoga com narrativas  típicas dos quadrinhos, videogames, séries e cinema. O título, inclusive, vem da HQ Gótico Americano, de Alan Moore.

Assim como o folclore brasileiro, o gótico  também é fonte inesgotável de referência para várias produções, entre elas O Corvo, de Edgar Allan Poe, e Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo. O termo é originalmente associado aos Godos, um povo germânico considerado bárbaro porque não fazia parte do Império Romano. Eles dominaram a península Ibérica e também a Itália.

A partir do século XII, gótico passou a designar um estilo arquitetônico, cujas características são a verticalização das estruturas, construções muito altas, com grandes vitrais para facilitar a entrada de luz e arcos ogivais. Na literatura, o estilo surgiu justamente por influência da arquitetura, derivado do romantismo. No fim do século XVIII, houve na Inglaterra um movimento de resgate da arquitetura gótica, num período chamado de neogótico. Isso se estendeu pelo século XIX. Esse resgate também inspirou produções escritas ambientados nesse tipo de espaço.

O romance O Castelo de Otranto (1765), de Horace Walpole, é considerado a primeira delas. Além da arquitetura do castelo em si, a história narra uma série de acontecimentos sem explicação racional, que movimentam intensamente a emoção dos personagens.  Esses elementos típicos do gênero fazem parte da configuração de Gótico Nordestino, mesmo que a arquitetura tradicionalmente europeia e medieval não apareça como cenário. De fato, ela nem faria sentido dentro do recorte dessa região do país. Mas Cristhiano consegue trazer outras particularidades do estilo.

É o caso do último conto, “Vampiro”, onde a criatura mitológica e folclórica ganha novos contornos devido a um enredo ambientado numa cidadezinha do interior, árida e com forte influência religiosa. Ele se integra ao imaginário popular dos moradores do mesmo modo que as lendas originalmente brasileiras fazem parte do cotidiano dos moradores de várias regiões, cada uma com suas próprias lendas e lugares assombrados.  O leitor acompanha como aquela cidade se organizou em torno da presença desse ser sobrenatural, onde o extraordinário passa a fazer parte da rotina:

“É de conhecimento público que na nossa cidadezinha habita, há anos, um vampiro. E todos: a imortalidade cobra seu preço, assim como cobram um preço o amor e o assassinato.”

Os sentimentos provocados pela literatura gótica são sentimentos da gama do horror, como angústia, medo e apreensão despertados por acontecimentos que são induzidos e reforçados pelo ambiente. Em “A mulher dos pés molhados” esse ambiente é a carcaça de um navio que emerge após vários anos. Nesse processo, ele traz de volta conflitos familiares, além de uma iminente maldição passada de geração em geração.

Loucura, morte, crimes e até carnificina também aparecem como pano de fundo nos contos. Em “As onças”, um vilarejo é tomado por animais felinos, onde os moradores se veem acuados por medo de ataques e só conseguem sair de casa à noite. Em “Lázaro”, os mortos voltam à vida, numa releitura dos famosos zumbis, com inspiração na pandemia da covid-19. Segundo o autor, o livro começou a ser escrito em 2018, mas o processo continuou ao longo de 2020 e 2021.

Em cada conto, o autor consegue criar um novo universo que escapa à expectativa do leitor. Para o bem ou para o mal. Isso porque quem espera sentir medo com as histórias talvez se frustre com a leitura. Mas quem estiver entregue à descoberta, vai mergulhar com mais facilidade nas propostas e aproveitar muito bem cada uma delas.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


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