Categorias: CINEMA, LITERATURA

A Noite dos Desesperados

A Quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, fez com que os Estados Unidos mergulhassem em um período de crise extrema, de modo que a década de 1930 foi marcada pelo desemprego e pela fome. A vulnerabilidade social abriu espaço para a popularização de uma prática cruel e exploradora: as maratonas de dança. Iniciadas em 1923 como concursos simples e curtos, durante a Grande Depressão elas se tornaram eventos com meses de duração.

O mais longo deles, a Maratona do Milhão de Dólares no Cais, chegou a durar 73 dias e aconteceu em Atlantic City no ano de 1932. Em geral, as maratonas ofereciam como prêmio entre 1 e 5 mil dólares. Considerando que a média salarial anual dos EUA nesta época era equivalente a mil dólares, não é difícil compreender porque os inscritos eram atraídos por algo que desafiava a sua saúde física e mental. As maratonas de dança eram desenhadas para atrair pessoas sem muitas alternativas, que passavam a enxergar na degradação uma esperança. Durante a sua participação nos eventos, os inscritos sabiam quando seria a sua próxima refeição e tinham a certeza de um lugar para dormir.

A Noite dos Desesperados

Este é exatamente o pano de fundo de Mas Não se Matam Cavalos?, romance de Horace McCoy. Publicada em 1935, a obra ganhou notoriedade quando as maratonas ainda eram aceitas no território estadunidense — a prática somente seria proibida, de modo gradual, nos anos finais da década de 1930 e após muitas mortes. Narrado em primeira pessoa, Mas Não se Matam Cavalos? acompanha Robert, um rapaz que tem o sonho de se tornar diretor de cinema e se inscreve em uma maratona de dança acompanhado por Gloria, uma aspirante a atriz que conheceu por um golpe do acaso.

Esse fiapo de história se desdobra em uma análise profunda dos personagens, que deixam claras as tensões sociais dos Estados Unidos da época devido às marcas que carregam na própria carne. Assim, quem lê observa de perto do declínio irremediável de sujeitos quebrados, moralmente ambíguos e que parecem constantemente à beira do abismo. À medida que o relógio da maratona soma mais horas, aquelas pessoas se despem de qualquer dignidade para, quem sabe, ter uma chance — em um sentido amplo porque, aqui, a palavra fala tanto sobre sobrevivência quanto sobre uma vitória no concurso.

Três décadas após o lançamento de Mas Não se Matam Cavalos?, Sydney Pollack levou às telas a adaptação da obra de McCoy, que no Brasil recebeu o acertado título de A Noite dos Desesperados. Estrelado por Jane Fonda e Michael Sarrazin, A Noite dos Desesperados é o retrato de uma juventude sem perspectivas de futuro, mas que tenta desesperadamente se agarrar a qualquer ponta de esperança. Ser “a última pessoa em pé” representa mais do que uma vitória em um concurso: significa superar uma situação desenhada para a falha, o que espelha o mundo externo, pronto para engolir e oprimir. Embora pouco seja dito sobre o passado daquelas personagens, muito pode ser compreendido através da sua forma de se colocar na pista de dança.

A Noite dos Desesperados

A dureza e o tom impositivo de Gloria (Fonda) revelam desamparo. A sua insistência para que Ruby (Bonnie Bedelia) não tenha um bebê diz muito mais sobre os seus próprios medos. E, talvez, seja um vislumbre de um passado de abusos, hipótese corroborada pelas suas constantes fugas ao redor do Texas antes da sua chegada a maratona. Defendida com ferocidade por uma Jane Fonda com menos de 10 anos de carreira, Gloria é a síntese de uma juventude que viu e viveu o pior, mas vai até as últimas consequências movida pelo instinto de sobrevivência. E é por isso que a última cena de A Noite dos Desesperados é tão cruel. Ela representa o momento que as primeiras sequências e o título original do filme fazem sentido.

Nas primeiras cenas, observamos um garoto, um homem mais velho e um cavalo correndo. O animal cai em um buraco e quebra pata. Posteriormente, ele é morto pelo homem enquanto o garoto assiste. Neste contexto, matar um cavalo com a pata quebrada pode ser um gesto de humanidade por trazer alívio imediato para uma dor que se prolongaria sem necessidade porque não existiam perspectivas de cura. Assim, livrar o bicho do sofrimento através da morte o impediria de suportar muito mais do que a pata quebrada, visto que a dor não ficaria localizada nesta parte do corpo, mas se espalharia corroendo tudo, como um veneno de ação lenta.

E é isso que gradualmente o jogo sádico das maratonas faz com aqueles sujeitos. Quando Rocky (Gig Young), o organizador, dispara em tom cínico que “as pessoas estão aqui para ver um pouco de sofrimento e se sentir melhor”, o caráter de espetáculo mórbido dos concursos se torna mais claro. Além disso, a fala deixa evidente que, após passar pela porta do salão, independente de ser ou não a última pessoa de pé, todos os participantes automaticamente perderam algo que não poderão recuperar. No longa, os Estados Unidos estão em escombros e o seu espirito de valorização do sucesso financeiro foi esmagado. A Noite dos Desesperados ilustra esse período obscuro da história do país e expõe as raízes de hábitos culturais que persistem até hoje, ainda que em uma roupagem mais palatável.


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