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Carolina Maria de Jesus em quadrinhos

Carolina (Veneta, 2017), de João Pinheiro e Sirlene Barbosa, retrata em quadrinhos a história de amor de Carolina Maria de Jesus pela literatura. Trata-se de uma breve biografia da autora, que surgiu da observação de que a sua obra ainda é pouco valorizada no Brasil. Em 2013, Sirlene Barbosa, doutoranda em Educação, professora e roteirista de Carolina, realizou uma pesquisa onde trabalhava: de 40 professores, somente cinco afirmaram conhecer Carolina Maria de Jesus. Porém, nenhum deles a tinha abordado em sala de aula. Em sua escola chegavam caixas com 40 livros de Gullar, mas dois ou quatro de Quarto de Despejo, obras de escritoras negras eram escassas. Isso tendo em vista que, desde 2003, o ensino de história e cultura afro-brasileira é obrigatório no ensino fundamental e médio.

Dividida em três partes — “Muito bem, Carolina”, “Escrevivências” e “Vedete da favela” —, a graphic novel narra o cotidiano de Carolina na favela do Canindé, o auge, com a publicação de Quarto de Despejo, infância e esquecimento.

Na capa, os autores escolheram retratar Carolina fazendo aquilo que dava sentido à sua existência: bem vestida, de cabelo à mostra, ela autografa um livro. A literatura tinha centralidade em sua vida, a ponto de não conseguir dormir sem ler e com lápis e papel debaixo do travesseiro. São muitos os momentos em que ela relata interromper o cuidado com a casa, o trabalho pesado como coletora de material reciclável, e até mesmo o sono, durante a madrugada, para escrever. Recusou diversos pedidos de casamento porque temia que um marido embaraçasse o seu propósito.

Muitas das fotografias da época retratavam Carolina com um lenço nos cabelos, em meio à favela, com a expressão fechada. Porém, como a própria Carolina disse, adorava seus cabelos crespos. A imagem propagada pela imprensa diferencia-se daquela que Audálio Dantas e Vera Eunice tinham de Carolina: uma mulher negra alta, imponente, com o olhar firme, bem articulada.

João Pinheiro, ilustrador (também autor das HQs sobre Kerouac e Burroughs), se baseou em fotografias da época, descrições de Carolina e na viagem que fez a Sacramento, Minas Gerais, onde ela nasceu e viveu durante parte de sua vida. Teve contato com o acervo de Carolina naquela cidade, originais e objetos particulares. Segundo ele, houve dificuldade em encontrar desenhos que representassem a favela e a periferia, sendo que uma de suas referências foi o filme A Margem (1967), de Ozualdo Candeias.

Uma das partes mais comoventes é a ilustração da passagem de Quarto de Despejo em que Carolina sonha o seguinte: “eu era um anjo. Meu vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso.” No próximo quadro, o jornalista Audálio Dantas questiona Carolina sobre o que ela achou da publicação de Quarto de Despejo. Ela diz que sempre quis ver seu nome na capa de um livro.

Talvez as duas das características principais da obra de Carolina Maria de Jesus sejam a sua escrevivência e o seu pretuguês. A escrevivência, termo cunhado por Conceição Evaristo, é a escrita que capta a fruição da vida. Nos seus mais de 20 cadernos, coletados do lixo, Carolina registrava o dia a dia na favela do Canindé. Certa vez, foi questionada por um sapateiro se o seu livro era comunista. Ela respondeu que era realista, e o sapateiro interpelou que não é aconselhável escrever a realidade. Mas a escrita de Carolina era insubmissa. Acrescento o que disse Conceição Evaristo: “A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.”

Embora tenha estudado apenas até o segundo ano da escola primária, Carolina sabia manejar figuras de linguagem como pouco se viu: “A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.” No entanto, a reedição de sua obra pela Companhia das Letras reacendeu a velha discussão sobre a ortografia e gramática de Carolina, que não teria seguido a norma padrão da língua portuguesa. Segundo Conceição Evaristo, coordenadora do projeto, o conselho foi unânime em optar por não intervir no texto de Carolina, do ponto de vista da ortografia, gramática e conteúdo.

O objetivo é propor uma reflexão sobre o preconceito linguístico e como os sujeitos negros, indígenas e as classes populares se apropriam da língua portuguesa. Nesse sentido, Lélia Gonzales denomina o português brasileiro de pretuguês, tamanha a contribuição das línguas africanas para a sua formação. Ela cita a troca do “r” pelo “l”, por exemplo, em “framengo”, muito estigmatizada na nossa sociedade, que nada mais é do que a marca linguística de um idioma africano em que o ‘l’ não existe. “Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. […] Afinal, quem é o ignorante?”

Conceição Evaristo utiliza como exemplo Guimarães Rosa, tido como conhecedor da norma padrão da língua portuguesa, por isso, com a faculdade de “brincar” com a língua, modificá-la e criar neologismos. Por outro lado, Carolina Maria era julgada como desconhecedora da norma padrão, logo, não era tida com essa liberdade, sua escrita era considerada como permeada de erros. Nesse contexto, Conceição Evaristo propõe as seguintes chaves de interpretação da obra de Carolina Maria de Jesus, as quais também servem para contextualizar a sua biografia em quadrinhos: de que Português estamos falando? O que é o Português correto? E, principalmente: quem define que uma língua é correta ou não?

Afora a recente reedição da obra de Carolina Maria de Jesus pela Companhia das Letras, atualmente Carolina é tema da exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”, enredo da escola de samba Colorado do Brás e doutora honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Diante disso, para as novas gerações, Carolina é uma porta para aqueles que desejam adentrar no universo da autora. Também é uma experiência agradável para aqueles que já conhecem a obra da autora, que terão uma representação visual dos ali cenários descritos. A HQ foi premiada pelo Festival de Quadrinhos de Angoulême, indicada ao prêmio Jabuti e ao Troféu HQ Mix.

Para além do Quarto de Despejo, Carolina passeou por quase todos os gêneros, pôs em questão o cânone literário. A imprensa e elite intelectual da época quiseram confiná-la no estereótipo de escritora favelada, mas, desde logo, ela advertiu: “Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida. […] Digam ao povo brasileiro que meu sonho era ser escritora”. Ela recusava amarras, segundo Conceição Evaristo, a “sua errância é a das pessoas que não aceitam a pequenez da vida, querem mais”. A fome de que ela falava não era somente física, mas, também, existencial. De se saber mulher, preta, mãe, escritora, intelectual, visível, possível.

Referências
BARBOSA, Sirelne; PINHEIRO, João. Carolina. São Paulo: Veneta, 2018.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs,  p. 223-244, 1984.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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