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Sociedade Secreta e os lugares de mulher

Em Um Teto Todo Seu, Virginia Woolf dá voz a uma tal de “Mary Beton, Mary Seton, Mary Carmichael, ou qualquer nome que lhe agrade — não é uma questão de importância alguma”, a quem é dada a missão de escrever sobre o tema “mulheres e ficção”. Mary é impedida de caminhar pelo gramado da universidade de “Oxbridge” — seu lugar, como mulher (e, portanto, definitivamente não uma estudante da instituição), é o cascalho.

Quando Mary se dirige até a porta da biblioteca, é novamente barrada. Mulheres só são aceitas lá se “acompanhadas por um fellow (um membro, consequentemente um homem) ou munidas de uma carta de apresentação”.

“Foi assim que me vi caminhando com extrema rapidez por um gramado. Instantaneamente o vulto de um homem surgiu para interceptar-me. A princípio, não compreendi que as gesticulações do objeto de aparência curiosa, vestindo fraque e camisa forma, era direcionadas a mim. Seu rosto expressava horror e indignação. O instinto, e não a razão, veio a meu socorro. Ele era um Bedel; eu era uma mulher. Este era o gramado; lá estava o caminho. Somente os Membros do Conselho e Acadêmicos são permitidos aqui; o cascalho é meu lugar.

(…) mas, na realidade, aqui estava eu, na porta que leva à biblioteca. Devo tê-la aberto, pois instantaneamente surgiu, como um anjo da guarda bloqueando o caminho com o esvoaçar de uma beca preta ao invés do de asas brancas, um cavalheiro depreciativo, grisalho e amável, que lamentava numa voz baixa, enquanto me mandava embora, que as damas só são admitidas na biblioteca se acompanhadas por um Membro do Conselho da Faculdade ou munidas de uma carta de apresentação.”

Um Teto Todo Seu foi publicado em 1929 e, desde lá, as coisas mudaram um pouco. Foi mais ou menos nos anos 1970, me conta a Wikipedia, que as muitas faculdades exclusivas para homens de Oxford e Cambridge começaram a aceitar também mulheres (assim como as poucas, mas não todas, as faculdades exclusivas para mulheres, surgidas com vários séculos de atraso, começaram a aceitar homens). Parece que hoje quase cinquenta por cento do corpo discente é constituído por mulheres.

sociedade secreta

Sociedade Secreta – Rosa & Túmulo, livro de estreia de Diana Peterfreund, publicado em 2006, se passa várias décadas depois da narrativa de Virginia Woolf. Ele não oferece uma data exata, mas as referências à cultura pop e à tecnologia, além dos costumes de um modo geral, deixam claro que o momento é mais ou menos o do presente da época da publicação. O livro é narrado por Amy Haskel, aluna do terceiro ano da fictícia Universidade de Eli (claramente inspirada em Yale, onde a autora se formou), uma das melhores do país. (Uma curiosidade: Yale acabou com as restrições de sexo para candidatos em 1969 — mais ou menos junto com “Oxbridge”). Eli é casa da mais importante sociedade secreta dos Estados Unidos, a fictícia Rosa & Túmulo (aparentemente inspirada na Skull & Bones, que é real e tem ex-presidentes como membros).

Sociedades secretas são comuns nos campi universitários americanos. São organizações estudantis, assim como o sistema de irmandades e fraternidades, que possibilitam principalmente contatos e experiências para seus membros. Mas sociedades secretas são, claro, secretas, e o segredo envolve várias teorias conspiratórias — que estão envolvidos no governo, na polícia, que controlam o país, e podem destruir (ou fazer) as vidas de seus membros ou de seus inimigos.

O romance começa com Amy sendo convidada a participar da Rosa & Túmulo, coisa de que ela duvida por muito tempo, afinal, nas palavras da própria, “Rosa & Túmulo não aceita mulheres. Só futuros presidentes da República” (não é maravilhoso que o mundo siga em mudança e hoje exista uma pré-candidata mulher à presidência dos Estados Unidos?). E é verdade. Rosa & Túmulo não aceitava mulheres — até aquele ano, em que a turma de veteranos decidiu convocá-las. Mas a convocação e iniciação de mulheres na sociedade foi feita sem o apoio dos membros da Junta. Eles não aceitam a mudança. “É uma acusação de estupro esperando para acontecer”, diz um dos patriarcas (nome dado aos membros já formados) — ênfase na palavra acusação. Eles não têm nenhum preconceito contra mulheres, diz outro, eles só não veem motivo para inclui-las no clube. “A inclusão de mulheres iria alterar permanentemente a estrutura da sociedade” — e, aqui, podemos pensar na Rosa & Túmulo como uma pequena representação da sociedade como um todo.

Os patriarcas afirmam que simplesmente não veem nenhum motivo para começar a incluir mulheres num espaço que sempre foi tradicionalmente masculino, afirmando e reafirmando que elas são livres para começar a sociedade que quiserem. Mas não é isso que elas querem. Elas querem mudar a estrutura de dentro. Porque, afinal, as sociedades são tradicionalmente masculinas porque as universidades eram tradicionalmente masculinas. O voto era tradicionalmente masculino. O mercado de trabalho era tradicionalmente masculino. Os patriarcas seguem não enxergando boas razões para abrir a convocação às mulheres, ainda que elas tenham tanto para oferecer à Sociedade quanto os convocados homens (uma tem nome, uma é um gênio da informática, uma tem contatos, uma tem engajamento político e voz nas causas sociais, uma é especialista em texto). O que as garotas questionam é por que eles teriam um motivo para não ver nenhum motivo, ou por que eles precisam de uma justificativa além do simples fato de que isso os ajudaria a entrar no século XXI (ou mesmo no XX).

As cinco mulheres convocadas são infinitamente diferentes, mas se veem quase que obrigadas a unirem-se, porque precisam. Porque uma voz não fala tão alto quanto cinco. E porque fizeram um juramento de lealdade — juramento esse que começa a ser desrespeitado por alguns de seus colegas assim que o deles entra na reta. Só que elas não permitem que seus futuros sejam decididos por outras pessoas, que os discutem como se elas nem mesmo estivessem ali, presentes, ouvindo tudo. Elas não aceitam a nada disso caladas.

Rosa & Túmulo inicia uma série de quatro livros que mergulham cada vez mais fundo (e de modo cada vez mais envolvente) na atmosfera de paranoia e conspiração das sociedades secretas. Por trás da paranoia e das conspirações, a série como um todo carrega sempre o peso desse incômodo que muitos ainda sentem vendo mulheres ocuparem espaços que um dia foram proibidos a elas, em geral de um modo muito arbitrário. O livro, em termos literários, tem alguns problemas: a narrativa às vezes é meio truncada, os personagens — que são muitos — nem sempre são muito bem explorados, e a voz da Amy Haskel demora um pouco para se estabelecer. Mas Sociedade Secreta é um ótimo lembrete, um lembrete de dez anos atrás de que precisamos levantar nossas vozes, juntas. Porque os bedéis, ou patriarcas, ou o nome que tiverem, seguem no nosso caminho. Mas nosso lugar definitivamente não é o cascalho.


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4 comentários

  1. Eu fico muito triste que Sociedade Secreta não tenha feito tanto sucesso no Brasil. Como você disse, a narrativa tem alguns problemas, mas a representatividade é maravilhosa.
    Eu li há uns cinco anos e, por coincidência ou não, foi exatamente quando eu comecei a me envolver com o feminismo e aprendi muito sobre sororidade junto à Amy e as outras meninas da Rosa e Tumulo.

    1. Também acho! É uma pena que os livros custem tão caro, sei que isso afasta bastante gente 🙁 Quando li o livro, ainda não estava nada envolvida com o feminismo – ainda assim, a mensagem ficou gravada com força. Foi muito interessante olhar de novo para ele agora e, mesmo com os problemas, dá ainda mais vontade de recomendar.

  2. Amoooooooo essa série. É a minha favorita de todas.
    Adoro a Amy, pena que esses livros não sejam tão conhecidos e não tenham a publicidade que merece. Seria uma série de filmes imperdível, uma pena.
    Li ano passado, acho, e uma das coisas que mais gostei foi a personalidade inconformada dela, enfrentando tudo e todos e impondo sua voz.

    1. Também adoro a Amy! A personalidade dela e o fato de ela não se calar são muito inspiradoras, né? E concordo que dariam ótimos filmes – ou série. Quem dera!

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