Categorias: CINEMA

Rustin: uma luz sobre um nome esquecido

Em 1963, os Estados Unidos parou quando Martin Luther King Jr. liderou a Marcha sobre Washington, o maior protesto pacífico da história até os dias atuais, quando mais de 250.000 pessoas se reuniram na cidade em defesa dos direitos civis e pela igualdade racial. Rustin, da Netflix, adentra os bastidores do evento pela perspectiva do ativista Bayard Rustin, interpretado por Colman Domingo.

Quando se estuda a Marcha sobre Washington, as motivações e os movimentos políticos e sociais, que levaram a um acontecimento tão poderoso e marcante, que resultou em uma verdadeira mudança legislativa no país, não se imagina que a história de sua idealização seja tão rica quanto o evento em si. Rustin chega, portanto, para mostrar que há muito para contar e sobre quem contar, basta direcionar o holofote para o lugar certo, após a injusta invisibilidade preconceituosa sob a qual o ativista foi relegado por muito tempo.

Dirigido por George C. Wolf, de A Voz Suprema do Blues, o filme não se intimida pela controvérsia de Bayard, um homem abertamente gay que enfrentou a discriminação de parte dos próprios correligionários em meio a sua busca por igualdade e justiça racial. Ao contrário, confere vida a um personagem que parece saltar da tela, tal é a interpretação de Domingo.

Rustin

O ator, envolvido em A Lenda de Candyman (2021) e na releitura de A Cor Púrpura (2023), visivelmente compreende todas as suas nuances, desde a extensa filosofia por trás de citações de fácil compreensão até os traumas relativos à segregação violenta e, infelizmente, legal que tomou o país com a vigência de uma legislação racista, que separava brancos e negros de maneira literal, especialmente em espaços públicos, como ônibus, banheiros e estabelecimentos comerciais. Assim, o único traço sobre o qual o Rustin de Domingo se mostra verdadeiramente seguro, além das próprias convicções políticas, é a sua sexualidade, uma evolução na narrativa de pessoas LGBTQA+, já que o personagem não enfrenta qualquer dúvida ou conflito interno sobre quem é neste sentido.

“No dia que eu nasci negro, eu também nasci homossexual. Ou eles acreditam em liberdade e justiça para todos, ou não acreditam.”

Além da organização da Marcha sobre Washington e, é claro, do racismo diário enfrentado pelos negros, mesmo aqueles em posição de poder para negociar com os brancos, o maior conflito imposto pelo filme é o enfrentamento da discriminação pelos próprios colegas de causa, aprofundando de maneira natural em como a opressão age nas estrelinhas de todas as relações sociais, prejudicando a verdadeira união em nome de uma causa maior em comum, o que ressoa até os tempos atuais, visto a óbvia divisão existente entre minorias que demandam questões diferentes — ainda que válidas.

Rustin

Tornar Rustin e seus temores o eixo do filme, que acompanha a organização prática e demais negociações políticas em torno do evento que eternizou Martin Luther King Jr. como um dos maiores ativistas da história, traz um senso de frescor e novidade a um tema frequentemente revisitado em produções como Selma (Ava DuVarnay), o que é plausível, haja vista que, ainda que as leis tenham mudado, não é possível afirmar que o núcleo central da sociedade estadunidense o tenha feito em tão curto espaço de tempo.

Além disso, por se tratar de uma história tão bem contada, muito em razão de um roteiro que sabe equilibrar perfeitamente os momentos de evolução do personagem e dinâmica com os demais, Rustin, a pessoa, se mostra fascinante e inspirador, especialmente por não se deixar abalar com facilidade. Mesmo vivendo sob tantos aspectos definitivamente exigentes, opressores e empobrecedores de espírito, o ativista é bem construído a ponto de não se perder na exigência narrativa do conflito apresentado, mesmo que a pressão para uma reação violenta fique quase no limite.

“É sexta-feira à noite. Já fui chamado de coisa pior.” 

Rustin

No filme, no entanto, o mesmo subverte as expectativas e faz jus ao que se sabe sobre si mesmo e a sustentação de uma ideologia de resistência pacífica, que sabidamente influenciou o próprio Luther King em um belo estudo de personagem mais uma vez desenvolvido pelo diretor, que também colocou todas as luzes sobre cantora de blues, Ma Rainey, em uma atuação esplêndida de Viola Davis.

“Sou eu quem prega resistência passiva desde antes de você nascer. O pacifista se opõe ao uso da violência, mas deve estar pronto para recebê-la. Bata do lado esquerdo. Um policial em 1942 já acabou com o lado direito.”  

Na busca de Bayard Rustin por sua própria autonomia, singular em sua sexualidade, e pela liberdade de seu povo, tanto que não se perde na própria política e filosofia, fazendo dela um dos pontos altos do personagem, o filme se torna muito bem sucedido no que se propõe, diferente de outros do chamado “gênero cinebiográfico” — como caso de Maestro, dirigido e estrelado por Bradley Cooper, que se perde em enredo, propósito e ego.

Rustin, portanto, se mostra mais uma produção bem sucedida da Higher Ground Productions, produtora do casal Michelle e Barack Obama. Focados na contação de histórias de pessoas negras a fim de conferir real representatividade em espaços onde estas são amplamente invisibilizadas, o filme chega na temporada de premiações tão forte quanto American Factory, documentário vencedor do Oscar em 2020, quanto a qualidade, mas, infelizmente, sem o alarde, peso e propaganda de outras produções da própria Netflix.

Além de sobressair na temporada de premiações com uma trilha-sonora embalada por Lenny Kravitz com a canção original, “Road to Freedom”, como no caso de Viola Davis, é possível que Colman Domingo se sobressaia no Oscar após figurar em premiações de relevância como o Critic’s Choice Awards e o SAG Awards, uma vez que carrega todo o brilho embutido a um homem descrito como verdadeiramente carismático, pois só um que despertasse a indignação e as paixões alheias poderia ser capaz de reunir todas aquelas pessoas em Washington naquele 28 de Agosto de 1963.

Rustin recebeu 1 indicação ao Oscar na categoria de: Melhor Ator (Colman Domingo). 

2 comentários

  1. Fiquei muito interessada!! Vou pegar no fim de semana pra ver e realmente mesmo com a indicação ao Oscar que você mencionou no texto a Netflix não fez questão de divulgar o filme né? Uma pena!
    Vejo que várias boas produções da Netflix tem esse problema de descaso deles.

    1. Então, pra mim é muito injusto a Netflix ter investido tanto na promoção de Maestro, especialmente por conta dos nomes por trás quando havia tanto potencial em Rustin e, com a temporada, é visto que o Colman Domingo tá passando meio que batido, apesar de ter sido indicado em muita coisa.

      Que bom que se interessou pelo filme e espero que tenha gostado, se já viu. Pra mim, todos deveriam ver!

Fechado para novos comentários.